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A Educação Física (EF), enquanto componente curricular do sistema de ensino, reflete a sociedade em que está inserida. Nossa interação com alunos/as do ensino fundamental nos faz inferir que eles/as, ao egressarem da escola, passam a reproduzir e perpetuar falsas crenças sobre o universo da prática corporal, por não possuírem conhecimentos necessários para se tornarem consumidores críticos da cultura corporal do movimento. Esta situação nos faz refletir sobre a atuação desta disciplina na escola e questionar se atingimos a visibilidade necessária em relação ao componente curricular, aspecto a ser considerado pelos professores durante o processo de ensino, construído na interação cotidiana com os alunos, a direção da instituição e os demais professores, com vistas a desencadear mudanças neste cenário.

Neste contexto, valorizar e enriquecer o processo educacional são metas desafiadoras de professores conscientes do seu papel na educação e na sociedade, que, de forma consciente ou não, têm recorrido a novas metodologias de ensino, capazes de proporcionar aos alunos um aprendizado significativo dos conteúdos, relacionando-os com sua realidade social.

Diante disto, o texto que ora apresento, resume o trabalho desenvolvido no contexto do universo escolar no qual estou inserida: o Centro Integrado de Educação Pública Roquete Pinto, localizado no município de Queimados/RJ. Baseada em minha prática pedagógica na rede estadual de educação do Rio de Janeiro, tento aqui relatar minha experiência com planejamento, proposta temática e avaliação nas aulas de educação física escolar.

Trabalhando os conteúdos através de temáticas

Coaduno com a proposta de conteúdos do Coletivo de Autores (1992), a de que os jogos, as brincadeiras, a dança, os esportes, as ginásticas e as lutas são constituintes da cultura corporal do movimento. Articulando-se com esses conteúdos, apresentarei algumas temáticas para discussão, as quais têm estado articuladas no projeto político-pedagógico de minha prática com turmas do ensino fundamental. Importa destacar que os temas apresentados neste relato não pretendem esgotar-se em si mesmos, pois, em razão da realidade dos alunos (idade, sexo, classe social, localidade da escola, realidade institucional etc.), pode-se trabalhar com outras temáticas.

O primeiro tema que proponho é a Promoção da. Saúde (Faria Júnior, 1991), considerada como um conjunto de idéias capaz de ampliar a discussão do binômio exercício-saúde, de reconhecer o seu conceito multifatorial e a sua relação com a prática regular de atividade física, além de possibilitar à educação física um papel na educação para a saúde dos alunos, um dos aspectos principais a ser tratado na Educação Física escolar (Mota, 1992).

A História é um dos aspectos relevantes no trato de qualquer conteúdo da EF escolar. Por possibilitar a apresentação dos antecedentes que originaram as formas atuais constituintes da cultura corporal do movimento, esclarecer os significados que estas formas tiveram ao longo do tempo, discutir quais os papéis da atividade física nas sociedades humanas, atribuindo-lhes a noção de historicidade, este enfoque proporciona o resgate do valor de atividades já esquecidas ou desvalorizadas pelas sociedades contemporâneas, como, por exemplo, os jogos populares (Melo, 1985).

O aspecto técnico refere-se a como "fazer" a atividade, entendendo-a como produto sempre inacabado, passível de (re)construção a cada nova experiência da aula. Assim, a partir da técnica oficial do desporto, por exemplo, podemos problematizar com os alunos as técnicas oficiais de execução de habilidades, recriando novas formas de saltar, correr, lançar, arremessar etc. com base no processo criativo (Taffarel, 1991) e nos estilos de ensino por descoberta orientada e por solução de problemas (Mosston, 1966).

A competição constitui temática relevante a ser problematizada na educação física escolar. Muitas vezes, a ênfase exclusiva no rendimento traz a perda do caráter prazeroso das atividades, contribuindo para a criação de um "exército" de alunos que desprezam a educação física na escola. A participação, em detrimento da exclusão causada pela competição exacerbada, deve ser estimulada a fim de que os alunos desenvolvam o senso de curiosidade, da busca do novo, do envolvimento e do prazer em vivenciar, aprender e ensinar, com o banimento da mera repetição mecânica, de práticas vazias de significado.

Valorizamos a participação em nossa proposta, pois, como professores, nossa experiência empírica vem demonstrando que a freqüência e o interesse pelas aulas de educação física tende a crescer após a adoção de práticas pedagógicas com ênfase na inclusão e na minimização da competição nas atividades. Entretanto, esta postura não tem a intenção de banir a competição das aulas de educação física na escola, mas de torná-la objeto de análise e reflexão, a fim de que seu uso tenha resultados construtivos para os alunos, como, por exemplo, o estímulo da prática dos jogos em que a competição esteja relacionada à auto-superação (Roberts, 1992).

A discussão sobre o lazer no tempo livre também pode ser abordada durante as aulas. A partir da realidade vivida pelos alunos, podemos problematizar mudanças nos modos de produção do cotidiano, enfatizando o aumento do tempo livre e a possibilidade de sua utilização para o desenvolvimento da criatividade humana por intermédio da cultura corporal, além das questões sociais acerca do lazer e suas barreiras em razão das diferenças sociais (Marcellino, 1995).

A influência da mídia na consolidação de representações sociais e crenças associadas à prática de atividade física tem sido outro aspecto abordado. Situações como o uso do esporte para interesses capitais de ascensão social, a associação feita entre determinados esportes e a violência, a gênese de uma representação sobre uma relação causal entre a prática de exercícios e a saúde, entre outros aspectos, é outra temática geradora de discussões frutíferas.

Os conhecimentos sobre o corpo em movimento, tais como a fisiologia do exercício, os mitos relacionados aos exercícios veiculados no cotidiano, as dicas para a prática correta de exercícios; as qualidades físicas e sua importância no dia a dia são temas que podem permear a prática de diferentes elementos da cultura corporal (Devide & Rizzuti, 1999).

Por fim, o tema da co-educação pode ser trabalhado nas aulas de educação física escolar com vistas à uma reflexão crítica acerca do sexismo nas práticas corporais, como os rótulos atribuídos a determinadas atividades como sendo masculinas ou femininas. O desenvolvimento de aulas mistas em que surjam situações-problema para a discussão das diferenças de cunho sócio-cultural e biológico entre meninos e meninas na prática de atividades físicas é uma rica possibilidade para se trabalhar com esta temática (Saraiva, 1999). Tivemos a possibilidade de observar os frutos de um trabalho co-educativo, ao trabalharmos, o conteúdo do futebol em aulas mistas, quando surgiram diversas situações, tais como a cooperação entre meninos e meninas na execução das atividades propostas.

Neste contexto, consideramos necessário que os conteúdos abordados nas aulas de educação física desconstruam a crença da aula essencialmente prática. Entendemos que a consolidação desta disciplina no currículo escolar perpassa pela viabilidade e visibilidade dos conteúdos da cultura corporal atravessados por temas de estudo, como os acima apresentados, desenvolvidos com os alunos nos diferentes ciclos da educação básica, através de uma abordagem simultânea e de uma seqüência que possibilite a vivência de todos estes temas em cada um dos ciclos de ensino, num grau de complexidade e aprofundamento cada vez maiores, à medida que vão sendo debatidos e ampliados ao longo dos anos escolares.

Tempo de avaliar ...

Como sublinhado na nova LDB, todas as disciplinas devem respeitar a proposta pedagógica da escola em que estão inseridas. Porém, como saberemos se estamos atingindo nosso propósito e se estamos possibilitando o aprendizado almejado a nossos alunos?

A avaliação é um processo interativo, que visa fazer do indivíduo um ser mais crítico, mais autônomo, mais participativo. Não interessa o instrumento utilizado. Pode ser prova, chamada oral, trabalho em grupo ou relatório. Para mim, o ideal é mesclar os instrumentos de medida solicitados pela escola, adaptando-os às necessidades de cada turma e, aos objetivos de cada professor/a.

A avaliação deve ser incorporada pela Educação Física, não para servir de instrumento de reprovação, mas para facilitar o diagnóstico do grau de desenvolvimento atingido pelo aluno, além do valor da avaliação como orientação para que o aluno possa fazer uma auto-avaliação, assim a avaliação servirá de parâmetro para a correção dos rumos da prática pedagógica de nossa disciplina. Seja através de meios tradicionais, seja pela criação de textos, seja pela discussão da prática corporal na escola, seja pela criação de novas formas de jogar lutar, dançar o que importa é fazer das aulas de EF um espaço para criação de uma cultura corporal condizente com os princípios fundamentais que devem reger nossa prática como a criticidade, ludicidade, criatividade, igualdade e a sensibilidade. Enfim, a avaliação deve estar inserida em todo o processo de ensino.

Em minhas aulas, tenho tentado trabalhar com avaliação a partir do planejamento e das temáticas apresentadas anteriormente. Os momentos de prática física e de debate dos temas tratados com os alunos podem estar presentes numa mesma aula ou serem abordados em aulas separadas, culminado com a produção coletiva dos alunos: apresentação de trabalhos sob o formato de seminários que sintetizem as discussões nas mais variadas formas, produção de um jornal informativo sobre assuntos relativos à prática da atividade física, criação de novas práticas corporais, encenação teatral sobre temas da cultura corporal circulantes no cotidiano, simulação de programas de televisão etc. Ressaltamos a importância do estabelecimento de uma relação coesa entre o estudo dos temas propostos para discussão nas aulas e a vivência dos conteúdos da cultura corporal na educação física escolar, capacitando o aluno a identificar tais aspectos na realidade social que o circunda, a saber: a freqüência a academias de ginástica, clubes esportivos, treinamento em modalidades esportivas, prática de artes marciais ou atividades de lazer realizadas no tempo livre, entre outras.

Relatando o trabalho de um bimestre

Após a apresentação e discussão de alguns dos temas que viemos abordando com os alunos nas escolas nas quais desenvolvemos nossa prática, discorreremos brevemente e em linhas gerais sobre o trabalho de um bimestre, no qual tratamos o conteúdo da capoeira, relacionando-o com alguns dos temas da proposta temática já discutidos anteriormente (Souza de Oliveira & Devide, 2000).

A capoeira, ministrada por nós no 3º e 4º ciclos do ensino fundamental, teve por objetivos: resgatar esta prática enquanto um dos conteúdos da educação física na escola; desencadear a reflexão dos alunos sobre a importância cultural da capoeira enquanto expressão da cultura popular brasileira; debater os seus aspectos históricos e suas implicações na busca da liberdade dos escravos; e problematizar as questões relacionadas aos preconceitos circulantes sobre a capoeira e os seus praticantes.

Ao abordarmos a capoeira através de aulas menos diretivas, com métodos de ensino voltados para a participação efetiva dos alunos, tais como a solução de problemas e a descoberta orientada, com vistas à cooperação, inclusão e co-educação, em detrimento da competição, exclusão e do sexismo, possibilitamos aos alunos a gênese e o debate de situações de conflito que tendem a surgir durante as aulas.

Entre algumas das situações de aula, aquelas que mais chamaram nossa atenção e que buscamos problematizar foram a prática da capoeira enquanto luta usada com fins destrutivos (violentos) e não enquanto expressão cultural e prática corporal voltada para o prazer; a discriminação desta atividade por motivos religiosos, raciais, sociais e sexuais; o resgate histórico da capoeira como forma de protesto e busca de libertação pelos negros escravizados; e a utilização dos materiais necessários para o ritmo das rodas (berimbau e pandeiro).

O preconceito religioso foi notado nas aulas através dos comentários dos alunos/as, como "capoeira é coisa de macumbeiro".

Interpretamos que isto possa se dar em função do ritmo, do batuque, durante a roda de capoeira, e da vestimenta do capoeira. Outra crença é de que seus praticantes utilizam drogas. Alguns alunos comentavam que "quem faz capoeira é maconheiro". Também constatamos um preconceito racial por parte de alguns alunos/as que se negavam a participar das aulas de capoeira por considerarem que "a capoeira é coisa de negro". O sexismo também foi constatado entre as meninas, que justificavam a não adesão às aulas práticas por acharem que a capoeira pode ser praticada pelos meninos com maior liberdade, em função das diferenças anatômicas - segundo elas, os seios atrapalham a realização dos diferentes movimentos.

Em relação ao conteúdo apresentado nas aulas de capoeira, nas primeiras aulas discutimos com os alunos aspectos históricos: o cenário do seu surgimento, os motivos e conseqüências do seu uso, o seu significado histórico, a criação da luta de capoeira para ser usada como autodefesa pelos escravos contra os maltratos; a maneira como enganaram os donos das fazendas e os capatazes, escamoteando o sentido da capoeira, apresentando-a como dança e falseando a possibilidade de seu uso como luta a ser utilizada nas eventuais fugas.

Nas aulas subseqüentes, surgiram temas trazidos pelos alunos, como reportagens sobre os inúmeros grupos de capoeira e as brigas entre estes grupos, que implicam na perda do caráter lúdico e do prazer de "jogar" a capoeira. Visando à cooperação e à otimização das relações interpessoais do grupo, o trabalho com os alunos foi, na maior parte das aulas, desenvolvido sob a forma de duplas, que se revezavam no aprendizado dos movimentos da capoeira (ginga, cocorinha, benção).

Ao final de cada aula do bimestre, reunimos as turmas para discussão de outras situações-problema além das descritas acima, e que surgiram durante as aulas, como a impossibilidade de jogar capoeira no bairro; a admiração pelos alunos que se mostravam mais aptos para os saltos na turma; e a crescente adesão das meninas nas aulas práticas. Elas justificaram a adesão pelo fato de trabalharmos com a música nas aulas e por considerarem que, na capoeira, a competição era minimizada, pois não se tinha uma equipe vencedora, uma vez que a ênfase da turma era pela participação e cooperação entre os alunos em cada aula.

Quanto à avaliação, nas aulas e ao final do bimestre, nos remetemos a diferentes formas de avaliação. Em relação aos aspectos históricos, formamos grupos para apresentação da história da capoeira desde a sua criação, passando por sua marginalização após a abolição da escravatura e a crescente divulgação de sua prática pela mídia nos dias de hoje.

Outra estratégia de avaliação foi a divisão da turma para que entrevistassem praticantes de capoeira e mestres que ministram aulas.

Nas entrevistas com os praticantes, os alunos perguntaram sobre os motivos que os levaram a procurar a capoeira e como representavam a modalidade antes e depois de ingressarem nos grupos. Com os mestres, foi questionada a origem e importância cultural da capoeira como expressão da cultura popular brasileira, o uso violento da capoeira, além dos benefícios que a sua prática pode oferecer. Por fim, as entrevistas foram apresentadas e debatidas com o restante da turma sob a forma de seminário. Esta atividade possibilitou aos alunos o ingresso no ambiente dos grupos de capoeira para a realização do trabalho e, inclusive, a adesão de alguns deles à prática regular desta atividade.

Considerações Finais

A partir da experiência com o planejamento dos conteúdos da cultura corporal do movimento nas aulas de educação física escolar, nos foi possível trazer à tona a discussão de algumas das propostas temáticas acima discutidas que procuramos relacionar com o conteúdo ministrado durante as aulas. Nesse sentido, atribuímos historicidade aos conteúdos ao discutirmos com os alunos o surgimento, os motivos e as conseqüências de sua prática; abordamos a co-educação, ao trabalhamos com turmas mistas, o que propicia discussões sobre as diferenças anatômicas, sociais e culturais da prática da atividade física por meninos e meninas; a competição, por exemplo, é abordada enfatizando-se a necessidade da cooperação do outro para que ocorra a atividade; a mídia está presente no debate dos/as alunos/as com a professora a respeito da sua influência na minimização e as vezes na maximização de alguns conceitos sobre atividade física; ao passo que a temática de promoção da saúde e lazer é abordada quando apresentamos a dificuldade de praticar atividade física na comunidades na qual habitam os/as alunos/as, por falta de espaço público adequado, impossibilitando a sua vivência enquanto atividade de lazer realizada no tempo livre.

Tais temáticas têm perpassado as discussões ocorridas por ocasião das aulas de educação física ministradas por nós, enriquecendo o ensino dos conteúdos da disciplina e a nossa tarefa de avaliação das aulas.Tornando os conteúdos mais próximos à realidade dos alunos, temos tentado despertar o prazer pela prática física, a facilitação de sua aprendizagem e a sua adoção no estilo de vida dos alunos, transformando suas representações sociais acerca da educação física enquanto disciplina curricular, em direção a sua crescente valorização.

Obs. A autora, professora Gabriela Aragão Souza de Oliveira é mestra em Educação Física, UGF/RJ; Especialista em Educação Física Escolar, UFF/RJ e professora da Rede Estadual de Educação do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

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  • Ciências do Esporte. Florianópolis: CBCE, 1999. p. 1423-1424.
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