Blog História(s) do Sport: www.historiadoesporte.wordpress.com Memórias regionais do esporte

 A elaboração de uma memória sobre o futebol tem privilegiado um olhar e uma retórica que exagera o lugar e o papel de determinadas regiões, como bem problematizaram recentemente João Malaia e Maurício Drumond, em artigo na revista Tempo. Memorialistas como Floriano Peixoto Correa ou Thomás Mazzoni, inseridos em contextos de disputas pela primazia simbólica do futebol no Brasil, afirmaram suas respectivas cidades como lócus privilegiado para identificação da origem dessa prática em todo o país. A pouca atenção que a historiografia brasileira do esporte vem dedicando a esse processo de construção de memórias fora do eixo Rio-São Paulo tende apenas a reforçar a situação.

Todavia, não foram apenas intelectuais dessas cidades que se dedicaram ao assunto. Uma literatura regional, pouquíssimo explorada pelos estudiosos dos esportes, conhecera também seus gêneros voltados a edificação de uma memória sobre os esportes. Um caso bastante interessante é o livro História do futebol em Uberaba, de Hildebrando Pontes, uma espécie de intelectual total do que ele próprio chamava de “civilização do Brasil Central”. Escrito em 1922, o livro é um trabalho interessante, extemporâneo até, escrito numa época em que temas como esses não eram sequer cogitados como objeto de reflexão séria.

Por causa da sua situação de entreposto comercial obrigatório entre Goiás, Minas Gerais e São Paulo, Uberaba acabava funcionando como ponto de referência simbólico e geográfico para toda a região, a “Princesa do Sertão”, como era conhecida. Essa cidade do Triângulo Mineiro exerceu grande importância para o desenvolvimento do esporte numa vasta região sertaneja. No início dos anos 1920, quando jovens de Goiás estavam interessados em praticar o futebol, era até Uberaba que viajavam para comprar bolas, chuteiras e uniformes.

Atendida por linhas da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro desde 1889, Uberaba testemunhava práticas esportivas desde os fins do século XIX. Nessa época, sabe-se que os uberabenses conheciam já corridas de cavalo, a bocha, o bilhar, o ciclismo, a patinação, os exercícios de ginástica e as rodas de peteca. No que diz respeito ao futebol, logo o mais popular dos esportes, diferentes vias incidiram simultaneamente na disseminação da modalidade. Por volta de 1903, padres Maristas assumiram a direção do Ginásio Diocesano, e entre as práticas promovidas pelos religiosos estava o “bate-bolão”, “pálido arremedo do rugby”, segundo avaliação de Hildebrando Pontes. Mesmo assim, alunos do Ginásio foram se engajando nos jogos. Por volta de 1905, um grupo de alunos conseguiu comprar, em São Paulo, um guia e bolas de futebol, além de formarem um time, chamado Clube de Futebol. Apesar do nome e do contato com as regras do association, o time praticava um jogo diferente, valendo-se ainda das mãos. Paralelamente, uberabenses que haviam estudado em São Paulo, nomeadamente em Campinas, no Colégio São Luís, começavam a voltar para Uberaba nessa época, trazendo consigo mais entusiasmo pelo esporte bretão, bem como mais noções de regras, técnicas e táticas. Em 1906, um grupo de uberabenses cotizou-se para comprar uma bola de futebol em São Paulo, com a intenção de formar um clube de futebol, o que acabou não ocorrendo. Rapazes frequentadores das aulas de luta livre e luta romana na Sociedade Italiana Santo Eustáquio também fomentavam a ideia de criar um clube de futebol, segundo memórias de José Mendonça. A ideia mostrava-se quase sempre efêmera e claudicante. Mesmo assim, parte deles estaria envolvida, mais tarde, na criação de alguns dos primeiros clubes de futebol da cidade.

Em 1908, uma área atrás do Ginásio Diocesano foi adquirida para a realização de evoluções militares. O local acabou servindo também como campo de esportes, usado para partidas de futebol entre os times “branco-preto” e “verde-amarelo”, formados por alunos do colégio. Os jornais uberabenses da época falavam desses jogos como “animados matches de futebol no sport field do Ginásio”. Em abril de 1909, segundo notícia publicada no jornal O Paladino, fora “animadíssimo e muito concorrido” o jogo de futebol realizado ali.

Diante do sucesso das atividades, em 1910, a Reitoria do Ginásio Diocesano instituiu um campeonato interno, a “Taça Jeanne D’Arc” [sic]. Paralelamente, outros clubes de futebol surgiam na cidade, como o Atlético Futebol Clube e o Mogiana Futebol Clube; este último, formado por ajudantes de tráfego, chefes de depósitos e outros funcionários da Companhia Mogiana de Estrada de Ferros.

Em 1911, por ocasião de uma exposição agropecuária, o presidente da municipalidade sugeriu aos times do Ginásio que organizassem uma seleção para enfrentar uma equipe de Araguari. Surgia assim o Diocesano Futebol Clube, um dos primeiros times a mobilizar grandes contingentes para a prática do futebol na cidade. Na sua primeira partida, o time venceu seus adversários de Araguari por 2 x 0, logo passando a ser reconhecido como “o invencível”. Segundo Hildebrando Pontes, intérprete e testemunha dos acontecimentos, “o garbo com que os rapazes desse eleven se exibiram pelas ruas de Uberaba [após essa partida], despertou entre a mocidade um entusiasmo desusado, impelindo todos a um intenso movimento pró-futebol”.

Nessa época, os times multiplicaram-se rapidamente: Tiradentes, Comercial, Floriano Peixoto, Duque de Caxias, Coronel Sampaio, Guarani. Consolidava-se, enfim, “um movimento caloroso, vibrante em prol da definitiva e benéfica implantação do esportismo entre nós”. Os uberabenses agitavam-se já por causa dos jogos de futebol: cogitavam a formação de uma liga, planejavam a organização de um campeonato e testemunhavam a fundação de um jornal esportivo (em 1918).

Comentários

Nenhum comentário realizado até o momento

Para comentar, é necessário ser cadastrado no CEV fazer parte dessa comunidade.