Por Jorge Knijnik

Para Fernando Knijnik, Marcia Melsohn e Marcello Rogozyk  

Esta é uma historia sobre um conflito. Não é um conflito armado, tampouco comercial, longe disso. As partes conflitantes adoram esporte, principalmente basquete, e querem  fazer o máximo para ampliar esta pratica. Entretanto, um conflito insolúvel acabou por travar o desenvolvimento do basquete entre os jovens judeus de Melbourne – a capital do estado de Victoria, também conhecida como a capital esportiva do país (há controvérsias sobre este ultimo apelido…).  De um lado, uma tradição cultural e religiosa; de outro, as possibilidades e limites de uma entidade esportiva. Representando os judeus e sua cultura, o Maccabi Victoria; organizando o basquete naquele estado, a Federação de Basquete de Victoria.

Antes de entrar em detalhes sobre este conflito, algumas explicações são necessárias. Inicialmente, quando menciono um ‘clube’ , não me refiro a uma entidade física, com quadras, piscinas, sede social, etc, como muitos podem pensar ao comparar ‘clubes’ com os seus assemelhados da classe media alta brasileira. Quando cito clubes esportivos por aqui, falo em organizações comunitárias que tem o objetivo de promover a sua modalidade para o maior numero de pessoas de uma determinada comunidade, seja ela regional, cultural ou étnica. A maior parte dos clubes esportivos que organizam os times locais são organizações comunitárias, que utilizam quadras e espaços públicos para treinar e jogar, pagando aluguel pelos espaços – dinheiro que vem de taxas que os associados bancam, de eventos para levantar recursos (churrascos, festas, etc) ou mesmo de patrocinadores pontuais. Eventualmente, estes clubes possuem um galpão para se reunir e guardar material esportivo, ou mesmo um container onde deixam seus equipamentos e uniformes durante a temporada da modalidade. Depois disso, o material é armazenado na casa de alguns abnegados que dirigem o clube, até o ano seguinte.

No caso especifico da comunidade judaica de Melbourne, o Maccabi Victoria funciona como uma organização ‘guarda-chuva’ a qual os clubes judaicos de cada esporte são afiliados.  O objetivo geral do Maccabi Victoria é “conectar a comunidade judaica através do esporte”. A instituição fornece o suporte legal e administrativo, um pouco de ‘expertise’ esportiva, faz o vinculo dos seus membros com as entidades judaicas em nível nacional e internacional, mas cada clube se organiza e se ‘vira’ como pode, em diversos locais e com recursos muito diferentes. Assim, clubes com estruturas diversas e com uma quantidade de associados pequena, media ou grande, representando diversas modalidades esportivas se abrigam neste guarda-chuvao comunitário fornecido pelo Maccabi Victoria. Um destes clubes é o Maccabi Basketball Victoria, que se orgulha de ser um dos ‘maiores clubes de basquete do hemisferio sul, com mais de 90 times participando de 7 competicoes em diferentes niveis’.

Outro esclarecimento necessário é referente ao Shabat

KEEP CALM

O Shabat e’ o período de descanso dos judeus (a etimologia da palavra esta’ ligada a ‘parada’, ou ‘cessar’ os trabalhos), que vai do pôr-do-sol da sexta feira ao pôr-do-sol do sábado. Um dia de descanso que originalmente, e para aqueles muito religiosos, deve ser dedicado às coisas de D-us – ou seja, no Shabat não se trabalha. Entretanto, muitas famílias judias não cumprem o período inteiro do Shabat, mas cultuam e preservam o habito de se reunir nas sextas à noite para um jantar familiar, com ou sem cunho religioso, conforme a pratica de cada um. Assim, independentemente do seu ‘grau de religiosidade’ – ou seja, sendo ultra ortodoxo, ortodoxo, praticante ou mesmo liberal – a tradição do jantar familiar as sextas a noite é muito comum, principalmente entre os judeus australianos. Entretanto, o cumprimento do Shabat acabou por se tornar um empecilho para a participação esportiva de alguns jovens da comunidade judaica em pleno inicio do século XXI.

SHABAT 1

Sextas sem cestas – conflitos entre religião, identidade cultural e esportiva.

Sempre é valido lembrar dois aspectos importantes da cultura australiana: primeiro, a pratica de um esporte, na Australia, seja por participação, recreação ou em alto nível, embute em si um grande capital social ; ser esportista e’ mais do que ser ‘saudável’, e’ fazer parte de algo que ‘une a todos’ australianos; assim, independentemente de você jogar em alto nível ou não, o importante e’ participar; usualmente, as associações e federações esportivas organizam competições para times de elite, mas também para equipes e pessoas que, ou querem jogar e ponto, ou ainda não atingiram um desempenho que lhes assegure lugar nos primeiros escalões – mas a ideia e’ envolver bastante gente, o máximo possível, com diversos níveis de habilidades – assim, em uma mesma categoria, digamos, meninas de 13 anos, haverá equipes de ponta, classificadas como “A” – mas também diversas equipes de outras habilidades, times B,C, ate J, K,L conforme o numero de participantes inscritos. Cabe também lembrar que ser técnico esportivo na Australia, assim como em diversos países, requer licenças especificas emitidas pelas federações de cada modalidade esportiva, ou seja, técnicos esportivos não precisam de um diploma universitário.

Adultos, de todas as profissões e camadas sociais, e inclusive de nível superior, gostam de trabalhar e de se envolver com esporte em diversos níveis, muitas vezes voluntariamente – isso da prazer e também aporta um razoável capital social para aquela pessoa. Há alguns anos, eu conheci dois acadêmicos (Michael Burke e Chris Hallinan, então na School of Human Movement da Victoria University em Melbourne) que também eram técnicos de basquete de times de jovens adolescentes. Eles aproveitaram suas conexões esportiva para fazerem algumas pesquisas entre os basqueteiros de Melbourne. Em seus estudos nos quais eles investigaram a identidade cultural e religiosa de jovens judeus jogadores de basquete[i], eles descobriram que estes rapazes sentiam muito orgulho de jogar basquete pelo seu clube judaico comunitário (o Maccabi Baskteball Victoria); eles também ficavam “empoderados” com o fato de, ao jogarem basquete, contradizerem e desmistificarem diversos rótulos que muitos australianos (e não apenas eles) possuem sobre os judeus, estereotipando-os como pessoas não esportivas, intelectuais ligados aos livros, fisicamente inferiores. Como a pratica esportiva é muito valorizada na Australia, os jovens judeus se sentiam parte do ‘ethos’ australiano ao fazerem esporte. Simultaneamente, os autores também mostraram o quanto praticar esporte era um jeito atrativo, e relativamente barato, para muitos destes jovens de se integrarem a comunidade judaica. Ou seja, ao jogarem bola eles afirmavam suas identidades enquanto judeus australianos, ou australianos judeus, conforme cada caso.

basquete

Um ‘pequeno’ problema ocorrido no inicio da década de 2000, entretanto, acabou atrapalhando esta garotada de competir pelo seu clube, e de realizar todo o seu potencial esportivo. O basquete de alto nível (“A”) das categorias menores masculinas (14 a 20 anos) no estado de Victoria e’ jogado as sextas ao final da tarde e inicio da noite. E’ assim que a competição se organiza há muitos anos. O Maccabi Victoria, usando seu prestigio e como eu disse anteriormente, dando apoio legal ao Maccabi Basketball Victoria e seus membros, pediu, melhor, insistiu veementemente com a Federação de Basquete de Victoria para mudar os dias de seus jogos, perseverando que eles jogariam aos sábados a noite; falaram que eles disputariam todos os jogos na casa dos adversários, entre outras propostas, todas rechaçadas pela Federação daquele estado.

Não satisfeito, o Maccabi Victoria fez consultas jurídicas em altos escalões do sistema legal do Estado, para saber se teriam chances em um processo jurídico contra a Federação de Basquete, baseado em uma suposta discriminação religiosa indireta, contraria ao Estatuto das Oportunidades Iguais no Esporte. Contudo, a ação não foi levada adiante, pois se concluiu que seria uma causa perdida, uma vez que o Tribunal decidiria que a Federação oferecia outros dias para a pratica do basquete que não as sextas.

Pode parecer estranho que um clube que não aceita membros não-judeus reclame de discriminação. Por outro lado, além do fato do Estatuto acima mencionado aceitar esta exceção em função do próprio objetivo da entidade, o esporte tem sido um dos pilares da manutenção da identidade judaica na Australia – e na diáspora judaica – por séculos. Membros da comunidade são contundentes ao afirmar a importância de ser competitivo que existe entre os judeus da Australia; ou seja, competir no maior nível possível parece fundamental para se superar estereótipos, ampliar a tolerância em relação a esta comunidade, e ao mesmo tempo mantê-la unida, promovendo seus valores intrínsecos entre seus membros.

Salientando que, como os clubes por aqui são organizações comunitárias, ir a um jogo requer um grande trabalho familiar, uma vez que muitos dos técnicos são pais de algum jogador, ou mesmo ajudam no time com transporte, lanches, primeiros socorros, uniformes, cantina do clube, preparação das quadras e toda a estrutura mínima para que um jogo aconteça. Tudo isso ocorre na base do trabalho voluntario das famílias. Enfim, a velha historia: tem que participar

Os jovens atletas não estavam apenas diante de uma escolha terrível, ao perder a chance de jogarem no mais alto nível pelo seu clube, a não ser que abdicassem de suas convicções religiosas e culturais; como daquela competição saem os convocados para os times estaduais de Victoria, eles de fato estavam em face de duas escolhas muito difíceis, pois ou jogavam, e não compareciam na sua celebração familiar semanal, ou abriam mão de competir em alto nível, e também da chance de participarem em competições nacionais representando seu estado, para cumprir com o descanso do Shabat. Grandes jogadores da comunidade judaica de Melbourne acabaram por não desenvolver todo o seu potencial em virtude disso.

Apesar de compreender as dificuldades da Federação de Basquete de Victoria para poder incluir o time Macabeu na competição de elite, no frigir dos ovos os dirigentes do Maccabi Victoria estavam desapontados e irritadíssimos com aquela situação. Eles acreditavam piamente que a Federação deveria ter por objetivo principal aumentar o numero de jogadores em todos os níveis – e eles não estavam permitindo os jovens judeus de competirem no nível mais alto.

Na minha (selvagem) época de técnico de handebol n’A Hebraica de São Paulo ao final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 deu-se algo parecido. São vários os motivos para chamar aquele período de ‘selvagem’, mas um deles tem relação direta com este texto aqui. O handebol do clube era um esporte “sem teto”. Para quem não conhece, A Hebraica e’ O clube da comunidade judaica na zona Sul de São Paulo, o qual possui um enorme espaco em uma área nobre da capital paulista, na frente do Rio Pinheiros, com diversos equipamentos de lazer, culturais e esportivos[ii], e mais de 30.000 associados. Pois bem, na época ‘selvagem’ a que me refiro ambos os ginásios eram ocupados pelos esportes tradicionais do clube, o basquete e o futebol de salão (coincidentemente, esportes que não possuíam times femininos – ne’ Marcinha? Mas isso fica para a especialista de mulheres no esporte aqui do blog, a querida e doce Silvana Goellner). Não sobrava espaço nenhum para o handebol, além das quadras externas – duras, descobertas, mal iluminadas. Além da pratica esportiva naquelas condições ser meio ‘selvagem’, eu aos poucos virei uma fera e briguei com muita gente (desculpe Celso Divino!) ate’ conseguir um espacinho coberto para meu handebol. Com muita selvageria, acabamos conquistando o direito de treinar as sextas feiras ao final da tarde e a noite no Ginásio dos Macabeus – desalojamos o basquete, que ficou ‘apenas’ com o Judeusão, pois o futebol de salão não treinava as sextas, em virtude do Shabat. Agora, se o futsal não treinava as sextas, porque o handebol e o basquete o faziam? Bom, era o único espaço disponível que tínhamos, e agarramos com unhas e dentes… Mas certamente, perdemos bons atletas que não queriam, ou cujas famílias não permitiam que faltassem ao Shabat para irem jogar…

E você, o que faria? Religião ou esporte? Tradição familiar ou competição de alto nível? O que deve falar mais alto? Os rapazes de Victoria decidiram: entre o judaísmo e a bola laranja, ficaram com o primeiro, e nunca mais fizeram cestas as sextas após o pôr-do-sol. Shabat Shalom!

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[i] M.Bourke & C. Hallinan. Friday forfeit: participation issues in Jewish junior basketball. Int. J. Sport Management and Marketing, Vol. 2, Nos. 1/2, 2007. Este post foi baseado nas historias e depoimentos descritos neste artigo

[ii] O clube tem dois bons teatros que recebem eventos do circuito nacional e internacional que passam pela cidade; um parque aquático com piscina olímpica, diversas piscinas recreativas, inclusive uma aquecida e coberta; dezenas de quadras de tênis, um estacionamento underground para milhares de carros; restaurantes, bares, salões de festas, boates, escolas, áreas verdes – e diversas quadras poliesportivas, sendo um ginásio de porte médio, chamado ‘ginásio dos Macabeus’, e outro ginásio poliesportivo enorme, excelente, com capacidade para milhares de pessoas e que pode sediar competições de nível internacional, o qual e’ carinhosamente chamado de ‘Judeusão’.

 

FONTE: www.historiadoesporte.wordpress.com

 

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