“Eu ainda peguei um tempo que a História era muito corporativa, sempre tinha muito estranhamento: O que um cara da Educação Física está fazendo aqui no programa de História?”.

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Victor Andrade de Melo

Equipe Ludopédio

http://www.ludopedio.com.br/entrevistas/victor-andrade-de-melo/

Professor em Educação e em História Comparada/Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e também professor em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas Gerais, Victor Melo tem se dedicados aos estudos do esporte e das práticas corporais em diferentes áreas: História, Educação Física, Lazer, Educação. Autor de uma vasta produção bibliográfica, com diversos livros e artigos dedicados à temática esportiva, atualmente é coordenador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer e membro do Laboratório de Estudos da Educação do Corpo (Labec/UFRJ).

Foto: Sérgio Giglio

Victor Andrade de Melo. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Primeira parte

Quais são as primeiras lembranças em relação ao futebol em sua vida?

Curiosamente, eu já escrevi algumas coisas sobre isso em tom de crônica, não em trabalho acadêmico. Tem a ver com meu pai, é uma história comum como muitas histórias. Meu pai era flamenguista doente. Naquele tempo, não passava muito jogo na televisão, ou na TV Globo só depois do Fantástico ou na TVE, hoje TV Brasil. Então, quando o pessoal não podia ir ao estádio, ouvia o jogo pela rádio. A gente morava longe do Maracanã, longe dos outros estádios. Em todo domingo, meu pai tinha o ritual de ouvir os jogos do Flamengo em uma vitrola enorme que havia naqueles tempos e que tinha uma luz verde. Tenho isso muito fresco em minha memória. E ele cismava um pouco que eu tinha que ouvir o jogo ao lado dele, porque dava sorte. Na viagem dele, ele me falava: “Você estando perto, pode ser que o Flamengo perca, mas a gente não pode ganhar se você estiver longe de mim.”. Tinha uma relação meio… mítica com isso. Então, eu ficava ali ouvindo com ele o jogo do Flamengo. Ele ficava inquieto, andando de um lado para o outro, não conseguia parar nem por um segundo. Foi assim que eu estabeleci uma relação com futebol e, naturalmente, com o Flamengo. Perdi meu pai muito cedo. Tinha uns 7 anos quando ele morreu. Depois disso, comecei a perder um pouco o interesse por futebol. Mantive um pouco a relação, mas não tão forte como eu tinha quando meu pai estava vivo.

Curiosamente, meu interesse por futebol aumentou quando nasceu meu filho. Por acaso, coloquei nele o nome do meu pai… Quando o João nasceu, talvez por uma memória afetiva, eu acabei recuperando esse envolvimento com futebol e com o Flamengo notadamente, de alguma maneira recriando aquele ritual do passado agora já com outro formato. Basicamente, foi assim que meu interesse afetivo por futebol começou, além daquilo que todos os meninos têm ao jogar bola na rua. Eu sou criado no subúrbio do Rio de Janeiro num tempo em que não havia muitos prédios. Então, ainda pude… não aproveitar o futebol de várzea, porque no Rio de Janeiro não tem muito essa ideia de várzea, mas sim o futebol de rua, que a gente joga na praça. Acho que é um pouco isso. Curiosamente, quando fui me envolver com a história do esporte, eu me dediquei pouco ao futebol. O futebol entrou um pouco fugidio, assim, no trabalho, embora goste muito do esporte. Talvez porque eu achasse que estava bacana, por haver muita gente competente fazendo isso. Eu sempre me envolvi mais, academicamente, com outros esportes do que com futebol.

Esse envolvimento com o futebol ainda na própria infância, quando seu pai teve um papel importante, deu-se também indo ao estádio, ouvindo jogo pelo rádio ou assistindo um pouco pela televisão, jogando ou até mesmo querendo ser um jogador de futebol, algo que é muito comum? Em algum momento apareceram para você essas dimensões?

Não. Assim, a gente ia pouco ao estádio porque morávamos longe do Maracanã. A gente ia ao estádio quando os jogos eram em Bangu, já que morávamos em Senador Camará, um pequeno bairro que fica entre Bangu e Campo Grande. Naquele tempo, o Campo Grande era um time de primeira divisão. O estádio deles era muito legal, chama-se Estádio Ítalo Del Cima. Existe até hoje, é uma pena que o Campo Grande quase o perdeu por conta de dívidas. Então, quando os jogos eram em Bangu ou em Campo Grande, meu pai nos levava, eu e meu irmão. Só que meu irmão sempre teve um interesse ainda menor por futebol. Ao Maracanã, muito eventualmente, porque era longe e tínhamos de pegar trem e essas coisas todas.

No que se refere a jogar, como todos os meninos, eu também participei de times, tinha camisa e outras coisas, disputei campeonato de bairro, mas de fato nunca pensei em ser jogador de futebol. Gostava muito de participar dos campeonatos, tinha aquela sensação do dia anterior, quando não se dorme bem, mas nunca pensei nisso. Sempre tive uma relação mais afetiva mesmo com o esporte, notadamente essa coisa de ouvir no rádio, que é muito bacana. Até hoje, quando eu vejo futebol pela televisão, sinto falta do rádio, porque sempre acho que a cobertura do rádio é mais emocionante, mais eletrizante do que pela televisão. O cara do rádio tem que preencher aquele tempo de alguma maneira. Nelson Rodrigues escreveu algumas coisas sobre isso bem bacanas, dizendo assim: “Se ver pelo videotape, o jogo é chato. O videotape é burro.”… Sempre foi assim essa relação com o futebol.

Foto: Sérgio Giglio

Victor Andrade de Melo durante a entrevista. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Nesse sentido, o esporte entrou em sua vida acadêmica. Hoje, é claro, tem muita gente e muitos trabalhos produzidos sobre futebol, mas quando você começou na graduação não era esse o cenário. Como você se aproximou do futebol enquanto um tema de pesquisa e de vida?

É o seguinte. Eu estudei no Colégio Militar. Do Colégio Militar, eu fui para a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). Um pouco porque, como minha família era classe média baixa quase popular, naquele limite entre as duas classes, e como perdi meu pai muito cedo, minha mãe tinha o desejo de ver a gente seguir a carreira militar, por ter empregabilidade, um futuro garantido e aquelas coisas assim. Eu fiz Colégio Militar exatamente por que meu pai faleceu. Ele era sargento da aeronáutica. Por isso pude entrar no Colégio Militar sem prova. Quando chegou o terceiro ano do ensino médio, eu não sabia bem o que fazer e fui fazer Academia Militar. Fiquei lá só seis meses, não me adaptei àquilo. Acabei fazendo Educação Física um pouco por ter sido atleta de esgrima lá na AMAN e por gostar de esporte pra caramba. Como tinha uma vida esportiva muito movimentada, pensei: “Ah, vou fazer Educação Física.”. Entrei na UERJ em 1989, que foi um ano bastante movimentado politicamente. Acabei me envolvendo muito rapidamente com o centro acadêmico, com o Diretório Central dos Estudantes, naquele ano teve a candidatura do Lula, e eu me filiei ao PT. Aí o curso de Educação Física passou a ficar insuportável para mim. Eu achava assim: “O mundo está para mudar, e o professor de vôlei quer que eu fique dando toque na parede.”. Então, eu entrei em crise com aquilo ali e resolvi que iria dar vazão a uma velha paixão, a História.

No ensino médio, eu gostava de História pra caramba, fui bom aluno de História, mas nunca tinha visto aquilo como uma oportunidade profissional. Fiz outro vestibular e comecei a fazer História. Fazia Educação Física na UERJ e História na UFRJ. Contudo, ficava muito difícil de organizar as coisas todas, porque eu fazia duas faculdades e tinha que trabalhar. Naquela época, você entrava e já tinha emprego pra caramba, colônia de férias e não sei quê. Fui trabalhando em tudo que pintava. Tinha uma vida social muito ativa, principalmente pelo envolvimento com o DCE. Então, ficou um pouco difícil de coordenar a Educação Física e a História. Tomei a decisão de largar a Educação Física. Cheguei para o professor do grupo de pesquisa do qual participava, um dos primeiros que teve – lembrando que minha geração pegou o início da Iniciação Científica –, e falei: “Eu vou largar a Educação Física e vou fazer História.”. “Não, não, cara. Por que tu vais fazer isso?”, perguntou. “Eu quero fazer uma carreira acadêmica.”, respondi. De forma muito pragmática, ele replicou: “Então, faz pela Educação Física, cara! É mais fácil. Pela História já tem um montão de gente, pela Educação Física quase não tem. Você vai ser das primeiras gerações, de jovens…”. Foi uma coisa meio pragmática: “Eu te oriento no trabalho de História.”. “Tu sabes?”, perguntei. “Não, mas a gente dá um jeito. Eu consegui uma bolsa de iniciação científica para tu, cara.”. Então, meu interesse pela história foi um pouco a coordenação desse interesse que eu tinha em geral e essa oportunidade que surgiu ali dentro do curso de Educação Física, em função desse quadro do país e também um pouco desse movimento renovador da Educação Física que ainda estava em curso.

Comecei a fazer uma monografia em história da Educação Física. Depois fiz o mestrado na UNICAMP e minha carreira foi seguindo. Minha trajetória foi toda pela Educação Física, mas sempre próximo da História e cursando disciplinas nesta área. Eu me interessei pela discussão historiográfica e tudo mais, e aí culminou. Eu entrei na universidade, já como professor, em 1999. Era mestre e seis meses depois defendi o doutorado. No ano de 2004, eu tinha conhecido um colega lá da História num evento de Cinema e Esporte, e naquele ano ele me ligou falando: “Nós estamos abrindo um novo programa de História aqui na universidade, mas que a gente quer envolver gente de outras áreas que trabalham com História, não só historiadores de formação.”. Nisso, ele acabou me convidando para integrar esse programa de História Comparada, no qual estou até agora, ou seja, há 13 anos. Então, minha história é um pouco maluca, acabei chegando à História por um caminho completamente louco…

Eu ainda peguei um tempo que a História era muito corporativa, sempre tinha muito estranhamento: “O que um cara da Educação Física está fazendo aqui no programa de História?”. Ainda tinha muito essas suspeitas. Na verdade, eu também suspeitava, pensava: “Pô, será que eu tenho condições de ficar nesse programa de História, sem ter formação nenhuma na área?”. No decorrer do tempo, isso foi, de fato, se esvaziando e fui ficando confortável lá, fazendo amigos e tal. Foi assim.

Foto: Sérgio Giglio

Victor Andrade de Melo. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Quem foi esse professor da graduação de Educação Física?

Foi o professor Alfredo Gomes de Faria Junior, que foi um nome muito importante na década de 1970… E o professor que me convidou lá para o PPGHC é o Francisco Carlos Teixeira da Silva.

Como foi o contato com este professor?

Foi assim: o Francisco Carlos estava começando. Acho que ele foi o primeiro nome da História que, de fato, teve alguma atenção para o esporte, notadamente o futebol. Teve uma conjuntura interessante na FAPERJ, num momento em que a fundação estava bem das pernas. Ele começou a fazer um projeto sobre o Vasco da Gama, de memória do futebol, algo grande. Aí a gente se encontrou paralelamente, porque, quando estava começando esse projeto, eu por acaso estava chegando à FAPERJ com a tese de doutorado que eu queria lançar em livro. O cara da editora tinha falado assim: “Eu lanço, mas tem um edital novo na FAPERJ que é de apoio à publicação de livro.”. Cheguei à FAPERJ com o livro na mão, e o Francisco Carlos era assessor da fundação naquele momento. Aí a moça falou: “Fale ali com o Francisco Carlos.”. Ele me disse: “Tu fez essa tese? Nós estamos começando esse trabalho aqui e tal…”. Então, por acaso eu tinha feito uma tese na área de Educação Física, que tinha de alguma maneira relação com esses primeiros momentos de uma história social do esporte.

Tinha tido o trabalho do Leonardo Pereira na UNICAMP, do Footballmania, que é um trabalho importante pra caramba, meio que deu uma inaugurada nisso. Nesse momento, o Gilmar Mascarenhas estava fazendo a tese de doutorado dele na USP, e eu estava fazendo a tese de doutorado sobre o esporte no Rio de Janeiro no século XIX. Se não estiver enganado, não havia ninguém antes fazendo isso. Então, meio que por acaso a gente estava começando uma história social do esporte mais detida. Tinha, é claro, os movimentos anteriores, mas… eu tinha escrito também um artigo fazendo crítica à década de 1980, um artigo que deu muita briga e tal… Era um pouco a tentativa de marcar a necessidade de substituir uma História que estivesse somente a serviço de uma ideologia preconcebida para uma História que fosse mais adequada do ponto de vista metodológico. Estava todo mundo ensaiando aquilo, não tinha muito centro esse negócio, não…

Minha tese saiu. O Cidade Sportiva foi um livro bacana, teve uma trajetória legal, circulou bastante… E foi nesse momento que conheci o Francisco Carlos. Acabei integrando o laboratório dele, o Laboratório de Estudos do Tempo Presente. No segundo ano que estava no programa de História Comparada, eu tinha um grupo de estudos na área do lazer chamado ANIMA, e foi nesse momento que a gente criou o SPORT: Laboratório de História do Esporte e do Lazer, em 2006… Depois o ANIMA acabou, pois não dava para eu administrar os dois e ninguém quis assumir. Enquanto não teve o SPORT, eu fiquei trabalhando no laboratório do Francisco Carlos. Na verdade, até hoje o SPORT usa as instalações do laboratório do Chico. Ele foi um cara bacana e bem reconhecido na área de História. De alguma maneira, ele ajudou a legitimar o tema do esporte na área, já que no início havia muitas reticências em relação ao tema. Depois, não. Hoje em dia já diminuiu isso.

Confira a segunda parte da entrevista no dia 15 de abril.

 

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