Cevnautas treinadores, a nota do Blog da Katia Rúbio é uma boa comemoração para o dia dos pais & treinadores. Laércio

Entre professores, mestres, técnicos e pais

Tenho ouvido com freqüência a importância que técnicos e professores exerceram sobre a vida de grandes atletas brasileiros. Essa influência não é recente e muita gente já escreveu, teorizou e analisou-a em diferentes países e sistemas esportivos. Mas essa condição não é prerrogativa do esporte, afinal a relação mestre-discípulo além de milenar é também mitológica.

De todos os mitos que se relacionam com mestres o que mais me agrada é o do Centauro Quíron. Só para ilustrar vai daqui um resumo de sua trajetória.
Do grego Χείρων quer dizer mão ou “o que trabalha, o que age com as mãos”, cirurgião. Vale ressaltar que o Centauro Quíron foi também um grande médico, que sabia muito bem compreender seus pacientes, por ser um médico ferido.

Há duas versões para a concepção de Quíron. Uma dela diz que Cronos amava a oceânida Fílira, mas temendo a cólera de sua esposa Réia, uniu-se àquela sob a forma de cavalo. Outra versão nos diz que, envergonhada, Fílira se metamorfoseou em égua, o que não impediu que Crono-cavalo a possuísse. Qualquer das duas versões explica a forma do Centauro Quíron, metade homem, metade cavalo.

De toda forma, Quíron pertence à mesa família divina que Zeus e os demais deuses olímpicos. Era imortal e nenhuma relação de parentesco possuía com os selvagens e violentos Centauros. Vivia em uma gruta do monte Pélion em companhia da mãe, que muito o ajudou na difícil tarefa de educador dos grandes heróis, como Asclépio, Peleu, Aquiles, Jasão e muitos outros. Pacífico, prudente e sábio transmitia a seus discípulos conhecimentos relativos à música, à arte da guerra e da caça, à ética e à medicina. O mais justo dos Centauros foi, porém, vítima de uma fatalidade. Durante a perseguição de Hércules ao Centauro Élato, que se escondeu dentro da gruta de Quíron, a flecha mortalmente envenenada que matou Élato atingiu acidentalmente Quíron. E, nem todos os seus conhecimentos sobre a arte de curar foram suficientes para fechar sua ferida, tão eterna quanto sua própria imortalidade. Foi, porém, o suplício do mortal Prometeu, agrilhoado ao Cáucaso por ter desafiado os deuses compartilhando a chama sagrada com seus iguais, que pôs fim às dores de Quíron, que cedeu a este sua mortalidade, dando-lhe o direito de descansar. Conta-se que Quíron subiu ao céu sob a forma da constelação de sagitário, uma vez que flecha (aquela que o atingiu), em latim sagitta, a que se assimila o sagitário, estabelece a síntese dinâmica do homem, voando através do conhecimento para a transformação, de ser animal em ser espiritual (Brandão, 1999; 1991).

Por que falar sobre Quíron no dia de hoje? Porque se convencionou adotar o segundo domingo de agosto (no Brasil) como o dia dos pais. Se avançarmos sobre o arquétipo do pai, conforme apontou Jung será possível observar que ele representa mais do que um sujeito que tem filhos, ainda mais nas famílias modernas onde somos pais de nossos próprios e daqueles que se nos aproximam de maneira indireta. A figura paterna é aquela responsável pelo desenvolvimento da consciência e do raciocínio lógico.
Falo aqui da paternidade de forma um pouco mais abrangente, talvez naquela que Antoine de Saint-Exupéry imortalizou na célebre frase “tu és eternamente responsável por aquilo que cativas”. É a esses pais, professores, técnicos e mestres a quem me refiro, àqueles eternamente responsáveis por aquilo que formaram, realizaram, cultivaram, e que cedo ou tarde, perto ou longe são lembrados por terem feito a diferença, por terem alterado a trajetória de uma vida ou carreira e que acabam imortalizados por seus conhecimentos e feitos. Não falo apenas dos mestres dos heróis, tão facilmente identificáveis por suas realizações, mas falo dos heróis que somos todos nós desde o momento em que nascemos, como lembra Joseph Campbell em O herói das mil faces, pelo simples fato de termos nascido.

É a esses mestres formadores que hoje dedico meu texto.

Vejo claramente na narrativa de atletas bem formados a consciência do papel que alguns técnicos-mestres exerceram sobre suas vidas e carreiras. São aqueles lembrados por terem se preocupado não apenas em formar campeões ou medalhistas, mas por saberem que o futuro estaria para além de uma carreira tão intensa e tão efêmera. E diante disso buscaram fazer desses atletas seres humanos maiores, plenos de habilidades e projetos, prontos a desempenharem seus papéis de heróis.

Muitos deles lembram Quíron, não pela habilidade em curar ou ensinar, mas por terem sido feridos e buscarem na cura dos outros o alento para suas próprias dores. Não de forma egoísta, como poderia se supor, mas de forma altruísta, orgulhoso de seu dever, porque sábio é capaz de se realizar no sucesso alheio. Ao mesmo tempo que zeloso de sua função leva o discípulo a buscar o melhor de si, não apenas com o treinamento para a tarefa, mas na reflexão sobre ela e seus desdobramentos. No enfrentamento das tantas adversidades, manifestas como pura limitação ou como incapacidade a ser superada.

Que difícil essa tarefa de ensinar, exigir, limitar e amar. E quanto tempo isso nos custa para aprender. Como seria bom poder voltar no tempo para dizer… “eu entendo porque é que você está me dizendo ou fazendo isso”, mas a arrogância da juventude nos faz crer que os limites impostos ou as chamadas à reflexão são caprichos tolos. E a medida que se cresce e que os desafios se impõem é possível observar que o mestre vai se internalizando, que passamos a tomar nossas próprias decisões – com base na sabedoria adquirida daquele que nos cuidou – e passado o tempo começamos também a cuidar, e com um pouco de habilidade e muita sabedoria saímos da condição de discípulo para a de mestre.

Nesse dia dos pais fica manifesto meu desejo para que muito mais técnicos e professores possam passar à condição de mestres, para que cada vez mais atletas tenham na experiência com o esporte a oportunidade de se realizarem como seres plenos. Que no desempenho desse papel social descubram que seu fazer profissional é muito mais humano do que técnico. Que sua experiência na condução de figuras tão expressivas possa se multiplicar como exemplo de dedicação, seja para a cura de suas próprias feridas ou não.

Brandão, J. S. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1999.
Brandão, J. S. Dicionário de mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1991.

FONTE: http://blog.cev.org.br/katiarubio/

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