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O mundo social é um lugar de disputas e há sempre muita gente interessada em dizer-nos não só o que é esse mundo, mas também qual deve ser o sentido das coisas. Isso, por muito tempo, foi monopólio exclusivo da religião e, assim, profetas, sacerdotes, xamãs, feiticeiros, curandeiros, etc., tinham reservados para si o poder quase mágico de dotar as coisas de sentidos.

A ciência, em medida significativa, é herdeira dessa lógica. Os personagens e os métodos são outros, é verdade, mas muitas estratégias e ritos de consagração permanecem os mesmos. Aqueles que estão investidos da autoridade legítima e são reconhecidos assim por seus “seguidores”, usam dos espaços disponíveis, do peso das instituições e do poder das palavras para dotarem o mundo de (des)razão, anunciarem sentidos e verdades.

A área de Educação Física organizada como campo científico não é exceção à regra e, de longa data, tem também travado seus debates em torno da definição legítima de suas competências, de seu alcance e de seu lugar na universidade e na sociedade como um todo. É algo legítimo e que autoriza, ou ao menos encoraja, todos aqueles que se sentem preparados a opinarem sobre os diferentes temas que pautam o debate público, a exemplo da crise pandêmica ocasionada pelo SARS-Cov-2.

Por sinal, algo que versa diretamente à área de Educação Física em tempos de contração das relações sociais e de distanciamento físico por conta da pandemia instalada é o deslocamento provisório dos locais de prática das atividades físicas e esportivas para o interior das próprias residências. Não que isso já não ocorresse, mas em tempo de redução do contato físico por razões sérias e maiores, atividades antes majoritariamente desenvolvidas em espaços coletivos passaram agora a ser realizadas individualmente nos espaços domésticos e privados, permitindo às pessoas manterem-se ativas com segurança para si próprias e sem oferecerem riscos aos demais.

Isso tem dado o que falar no campo da Educação Física. Parece que estamos nos sentindo especialmente valorizados, mas ao mesmo tempo incomodados e, quiçá por isso, estimulados, a falar e a reafirmar durante a “janela de oportunidade pandêmica” muitas ideias já conhecidas. Não por acaso, entidades científicas e profissionais, pesquisadores, professores, estudantes, entusiastas, etc., têm se manifestado e procurado atribuir sentidos aos fatos e ordenar as coisas a partir de suas perspectivas. Assim, uns falam em nome das práticas corporais ou da cultura corporal; outros falam em nome da atividade física; uns argumentam pela subárea sociocultural; outros pela subárea biodinâmica; uns privilegiam política e cultura em suas análises; outros epidemiologia, genética e saúde pública; uns defendem os interesses profissionais mais imediatos; e assim por diante...

Como fica visível, muita gente, não sem interesses, fala e, sem dúvida, isso é algo extremamente importante para um ambiente acadêmico e profissional que se ambicione minimamente democrático. O que, no entanto, inquieta nesse esforço de pensar o lugar da Educação Física frente à pandemia de SARS-Cov2 é a ausência de um consenso mínimo a orientar o debate e a produzir uma comunicação menos distorcida sobre as pessoas de carne e osso, com sentimentos e crenças, que se-movimentam em suas casas por meio de ginásticas, alongamentos, lutas, esportes, danças, etc., de diferentes formas e com vários sentidos, nesse período institucionalmente imposto de distanciamento físico.

Essa ausência de consenso mínimo é, permitam-me usar uma metáfora, não um vírus passageiro, mas uma doença crônica na área de Educação Física. Tenho advertido, em diálogo com vários autores clássicos do campo da Educação Física mundial, que precisamos encontrar a justificação da Educação Física nela mesma. Mais que defender projetos pessoais de Educação Física, por razões políticas ou científicas, há que se aceitar aquele que parece ser o conector comum que nos aproxima, apesar mesmo das diferenças vitais e necessárias, no exercício de nossa profissão e na realização de nossas pesquisas, qual seja, o movimento humano (ou motricidade, ou conduta motora, ou ação motriz ou qualquer outro “conceito primo” que resguarde nossa especificidade!).

Ademais, se o que as pessoas estão fazendo (não só em tempo de isolamento físico) ao se-movimentarem por meio de atividades motrizes sistemáticas que constituem o patrimônio do acervo motor da humanidade deve ser chamado de atividade física ou cultura corporal, isso é o que menos importa na tentativa de demarcar a especificidade da Educação Física. São conceitos importantes, mas que, no limite, orientam a produção de teorias regionais no campo da Educação Física. Por seu turno, uma teoria geral da Educação Física está assente na dimensão total do movimento humano que, de forma não excludente, se expressa tanto como atividade física quanto como cultura corporal.

Lembro que as divisões que os acadêmicos criam no intuito de organizarem seus investimentos científicos não necessariamente correspondem à natureza não fragmentada e dinâmica dos processos sociais/naturais. Conceitos, aliás, são extremamente limitados para capturarem a dinâmica dos processos, mas ainda assim são indispensáveis. Há que se procurar então por conceitos mais precisos e menos informados por sistemas de crenças político-partidárias. A noção de movimento humano satisfaz esse requisito.

Quanto aos sentidos que as pessoas atribuem ao que fazem ou não fazem ao se-movimentarem na privacidade de suas casas durante o contexto da pandemia de SARS-Cov2 ou então fora de suas casas, nas academias, estúdios, ginásios, praças, parques, etc., no chamado expediente normalizado das coisas, deixemos que elas próprias falem. Tais pessoas, é sempre importante frisar, são dotadas de agência e monitoram reflexivamente o que fazem como parte do fazer. Em suma, elas produzem sentidos e, deste modo, o que elas talvez demandam da Educação Física é menos a imposição de verdades e sentidos fixos. Além disso, muitas vezes nos esquecemos que fazer esporte, jogar, se exercitar, malhar, lutar, sentir-se, enfim, vivo pelo se-movimentar feito Educação Física, já é um sentido em si e isso não é algo insignificante. Pelo contrário, isso é revelador da própria força e relevância da Educação Física na sociedade.

Encerro essa breve reflexão, referenciando Jacques Rancière quando argumenta em “O mestre ignorante” que no ato de ensinar e aprender há sempre duas vontades e duas inteligências. Na observância e valorização dessas diferenças é que se pode construir uma relação intensa e verdadeira de autonomia intelectual. Em contrapartida, a coincidência entre essas duas vontades e duas inteligências conduz, não raras vezes, ao que poder-se-ia chamar de pedagogia do embrutecimento. Que nós da Educação Física saibamos então respeitar, valorizar e encorajar os diferentes sentidos do se-movimentar!