Integra

Na última década, movimentos de Educação para todos e de Educação Inclusiva repercutiram em todo contexto educacional.

A Conferência Mundial de Educação para Todos (Jomtiem, Tailândia, 1990) e a Declaração de Salamanca (Espanha, 1994), trouxeram para a Educação Física um outro olhar, produziram o efeito de trazer outras preocupações enquanto disciplina que compõe o currículo escolar; disciplina esta que tem por objetivo auxiliar na formação do cidadão e na justa busca de uma escola para todos, pois, fundamentada na importante luta contra as exclusões, promoverá uma sociedade cujas relações nacionais e internacionais se darão de forma mais justa, mais igualitária.

Inspirada na Conferência Mundial de Jomtiem, a Declaração de Salamanca foi o resultado de uma linha de ação sobre Necessidades Educacionais Especiais, congregando noventa e dois países e vinte e cinco organizações internacionais envolvidas com pessoas portadoras de deficiências, que reafirmaram o direito dessas pessoas, independente de suas necessidades particulares, à igualdade de oportunidades, a maior participação de Governos, de grupos de país e especialmente organizações de pessoas com deficiência, nos esforços para incluir, no ensino-aprendizagem, as pessoas com necessidades especiais, que continuam marginalizadas. No que diz respeito ao conceito de necessidades educacionais especiais, no estudo, será tratado por barreiras de aprendizagem, pois a Declaração de Salamanca afirma que:

Durante os últimos 15 ou 20 anos, tem se tornado claro que o conceito de necessidades educacionais especiais teve que ser ampliado para incluir todas as crianças que não estejam conseguindo se beneficiar com a escola seja por que motivo for. (p.15) (SANTOS, 2000:38).
A partir de então, o conceito de necessidades educacionais especiais passou a abranger, além das crianças portadoras de deficiência, todas aquelas que estejam experimentando dificuldades temporárias ou permanentes na escola, as que estejam repetindo continuamente o ano escolar, as que sejam forçadas a trabalhar, as que vivem nas ruas ou que moram distantes de qualquer escola; as que vivem em condições de extrema pobreza ou que sejam desnutridas, as que sejam vítimas de guerras e conflitos armados, as que sofrem de abusos contínuos físicos, emocionais e sexuais, ou as que estão fora da escola, por qualquer motivo que seja, podendo afirmar que todas elas passam por barreiras de aprendizagem (SANTOS, 2000).

O presente estudo, que trata a "A Capoeira para Portadores de Barreiras de Aprendizagem no contexto da Educação Física escolar" está sendo desenvolvido em uma escola pública do município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de Janeiro. Tem como objetivo geral integrar portadores de barreiras de aprendizagem, no caso, apenas a deficiência mental e alunos de classes regulares da escola, rumo a uma Educação Inclusiva e cidadã. E como objetivos específicos a promoção da auto-aceitação e da confiança que permitirão ao portador de Barreiras de Aprendizagem desenvolver habilidades e talentos que contribuam para a melhoria da sua qualidade de vida em casa, na escola e na comunidade. À medida que o portador de Barreiras de Aprendizagem faz contribuições significativas para o crescimento do grupo ele ganha reconhecimento e aprovação, e começa a utilizar o seu potencial para contribuir cada vez mais, elevando sua auto-estima e capacidade de participação. Esse é realmente o papel da escola: ‘desequilibrar’ o aluno para que ele possa incorporar aos seus esquemas as novas formas de resolver os problemas, entrando novamente em ‘equilíbrio’, porém com um aprendizado que reforce e ofereça subsídios para a sua tentativa de vitória.

A integração1 de diferenças é um modo de diálogo e de permanente construção de novos valores e novos modos de vida essencialmente mais humanos. Utilizar a capoeira como uma prática no ambiente escolar é trabalhar com um componente essencial a qualquer ação educativa: a diversidade, o encontro com as diferenças. Portanto essa prática tem que socializar diferentes modos de pensar e agir, considerando as diversas formas de expressão e sentimentos e garantindo a todos a possibilidade de participação, independente das habilidades ou necessidades específicas de cada pessoa, reunindo e integrando as diferenças em busca de um todo.

O movimento corporal deve conter um significado amplo na vida das pessoas e ir além dos estereótipos construídos na sociedade.

Talvez o maior benefício seja o envolvimento com uma prática que lida com os direitos individuais de participação, autonomia e auto-determinação em busca da melhoria da qualidade de vida. O trabalho que está sendo desenvolvido com a capoeira pretende contribuir para a efetivação do respeito às diferentes capacidades, talentos e potencialidades do ser humano, assegurando direitos de iguais oportunidades para todos.

A capoeira manifesta-se como jogo, como luta e como dança, sem assumir efetivamente nenhuma destas características isoladamente, mas sendo todas ao mesmo tempo. Ela reúne, portanto, grandes instrumentos para a educação escolar, como a música, o ritual, a expressão, a harmonia e sua pluralidade de manifestações corporais e culturais. São muitas as possibilidades do corpo humano através da capoeira.

Acreditando na riqueza dessas possibilidades procurei desenvolver um trabalho voltado para atender individualmente a necessidade de todos os componentes do grupo, para que todos pudessem participar de maneira efetiva do trabalho realizado. No desenvolvimento da atividade vários aspectos ficaram evidentes: comprometimento da noção espacial e organização das ações (os alunos esbarravam uns nos outros ao caminhar ou correr, não estabelecendo relações espaço-temporais), desequilíbrio (alguns apresentavam dificuldades de equilíbrio ao caminhar ou desenvolver atividades específicas), falta de concentração, coordenação motora fina bastante comprometida, baixa auto-estima, além de não haver relação de respeito verdadeiro às capacidades dos portadores de necessidades especiais pelos alunos de classes de ensino regular (embora esses também apresentassem algumas dificuldades nos movimentos, acreditavam que podiam superá-las, e que os portadores de necessidades especiais não seriam capazes).

Foi de fundamental importância diagnosticar cada aluno e perceber em que nível de motricidade se encontravam. Através de estudos teóricos procurei estabelecer pontos que possibilitassem a ampliação sobre os conhecimentos e dificuldades relativas às capacidades coordenativas motoras desses alunos, e sobre como desenvolver as atividades de forma que elas pudessem contribuir efetivamente para a mudança na qualidade de vida de cada educando, tanto individual quanto socialmente.

Segundo Letícia Vidar de Sousa Reis, em seu livro ‘O mundo de pernas para o ar’(1977): "a relação analógica entre a roda de capoeira e o mundo, estabelecida pelos capoeiristas, permite-nos pensar o espaço da roda como uma metáfora do espaço social" (p.209).

Partindo desse pressuposto, pode-se afirmar que as contribuições oriundas do trabalho com a capoeira refletir-se-ão na vida social do educando, tanto do portador de barreiras de aprendizagem, que através do movimento age no meio ambiente para alcançar os objetivos desejados, quanto dos alunos de classes de ensino regular, que vivenciam essa riquíssima experiência de conhecimento e construção de valores para a formação de uma sociedade mais humana e para a progressão da convivência com a diversidade. "É, porém, na aparente insignificância dos gestos corporais, aprendidos em geral inconscientemente, que está inscrita a cultura" (REIS, 1997:209).

O aspecto sócio-afetivo é privilegiado na prática da capoeira porque necessita de esforço comum e de convivência em grupo, aumentando o círculo de relações e intensificando a vida social e cultural. "Cultura, de fato, quer dizer cultivar, aperfeiçoar, embelezar, humanizar a natureza, quer a natureza externa a nós, com todos os objetos que a compõem, quer a natureza que somos nós, com todos os dons e habilidades físicas, intelectuais e espirituais de que somos dotados" (FCDRJ, 1995:08). A capoeira é fruto da cultura brasileira (visto que tem importantes ligações com as raízes históricas, sociais, filosóficas, políticas e culturais do povo brasileiro) e apresenta-se como excelente atividade física, desenvolvendo as habilidades físicas de base, ao mesmo tempo em que atua na auto-estima e socialização do educando.

Sendo assim, o trabalho com a capoeira pode oferecer benefícios importantes na educação e desenvolvimento motor, principalmente no trabalho conjunto entre ritmo e jogo. A musicalidade presente na capoeira, representada pelo equilíbrio entre o canto, ritmo, os instrumentos e a expressão corporal possibilita desenvolver flexibilidade, agilidade, destreza, equilíbrio e coordenação. A capoeira, enquanto atividade educativa, direciona o aluno para a descoberta do próprio corpo como instrumento de comunicação, permitindo que ele crie e experimente movimentos que tenham significado para si. É um instrumento de auto-conhecimento e análise crítica de possibilidades e limites, facilitando o desenvolvimento das diversas formas de inteligência. De acordo com Fernandes (2001):

"[...]valores, símbolos, relações e técnicas são apreendidos pela criança no contato com o outro, através da mediação de indivíduos mais experientes do grupo. Processos externos são reconstituídos internamente para que se efetive essa apropriação do conhecimento"

Em suma é importantíssimo que o trabalho de capoeira esteja relacionado ao ambiente escolar, pois faz-se necessária a troca de experiências entre o profissional de Educação Física e o profissional de sala de aula, para que juntos possam encontrar subsídios que ajudem no desenvolvimento global do educando. No ambiente escolar não pode haver espaço para a discriminação, é preciso trabalhar com qualquer que seja a deficiência apresentada, estando o profissional apto a pesquisar e interferir de forma significativa no processo de aprendizagem de cada aluno. Vygotsky (in Silveira) nos diz que é preciso trabalhar a partir de uma nova perspectiva para a formação gradual da personalidade inteira do portador de necessidades especiais. E essa nova perspectiva encontra-se na escola, que é um ambiente propício a diferentes experiências no contexto cognitivo, afetivo e social.

As autoras, Jucileide dos Santos Medeiros é graduanda em Educação Física - UNIABEU e Ana Patrícia da Silva é licenciada em Educação Física e mestranda em Educação/UFRJ

Notas:

1 (...) O processo de integração através da corrente principal é definido pelo chamado sistema de cascatas. Nele, todos os alunos têm o direito de entrar na corrente principal e transitar por ela. Podem tanto descer ou subir na cascata em função de suas necessidades específicas. (WERNECK, 1997, in SANTOS, Mímeo

Referências

  •  Adms, Ronald C. et al. Jogos, esportes e exercícios para o deficiente físico. 3 ed. Manole, 1985.
  • Capoeira, Nestor. Capoeira: os fundamentos da malícia. Rio de Janeiro, Record, 1998.
  • Carvalho, Manoel Silva de. Capoeira: vivendo e aprendendo com o movimento. In: Desafiando as diferenças. São Paulo, SESC, 2003. p. 42-50.
  • Coletivo de  autores. Metodologia do Ensino da Educação Física. São Paulo, Cortcz, 1992.
  • Falcão, J. L. C. A escolarização da Capoeira. Brasília, Royal Court, 1996.
  • FCDRJ, Federação de Capoeira Desportiva do Estado do Rio de Janeiro. Apostila da banca examinadora. Rio de Janeiro, 1995.
  • Fernandes, S & Soares, N. V. Jovens e adultos portadores de deficiência mental resgatando a voz e a vez na construção do fazer escolar. 2001. Monografia - Programa de pós-graduação, Curso de Especialização em Psicopedagogia Diferencial, PUC-RJ.
  • Rego, Waldeloir. Capoeira Angola: um ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.
  • Reis, Letícia Vidor de Souza. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. São Paulo, Publisher Brasil, 1977.
  • Ribeiro, A. L. Capoeira para deficientes. Feira de Santana, 1987.
  • Santos, Mônica Pereira. Educação Inclusiva e a Declaração de Salamanca: conseqüências ao sistema educacional brasileiro. In Integração - ano 10, nº 22 - 2000. pp. 34 - 40.
  • ¬¬¬__________. Educação Inclusiva: Redefinindo a Educação Especial. (Mímeo)
  • Silveir, Ana Paula et al. Deficiência mental: abordagem histórico-cultural. (http://www.lite.fae.unicamp.br/papet/2003/ep127/def.mental.htm)