Integra

No momento em que a Educação Física assumiu os preceitos militares da ordem, obediência e patriotismo, a sua ação pedagógica baseava-se em princípios autoritários e fascistas, pois tinha como objetivo principal à formação de um corpo dócil, obediente, adestrado e subserviente. A filosofia proposta para a Educação Física pelos governos militares pós-64 pautava-se no incentivo a participação do aluno na área desportiva, neste momento percebemos uma relação entre a Educação Física e o corpo direcionada pelo binômio homem-máquina, preocupava-se com a performance desportiva do aluno desprezando o desenvolvimento de sua capacidade crítico-reflexiva.

As formas, historicamente conhecidas pela Educação Física, de disciplinar o corpo, fogem da proposta de contribuir na formação do homem crítico-participativo. Portanto, a conscientização corporal na Educação Física levaria a uma educação que visa a formação do indivíduo "consciente, crítico, sensível à realidade que o envolve" (BRACHT, p. 184, 1986), permitindo a conscientização de que o homem é o seu próprio corpo. Negando assim, a visão da Educação Física no sistema político-econômico das classes dominantes que toma o corpo do homem como objeto tecnizado e desumano, oprimido e dominado.

Nosso propósito é analisar o papel da Educação Física na formação dos educandos, enfocando a conscientização corporal, com o objetivo de reduzir, ou até anular, a dominação da concepção que esses alunos têm do seu corpo, e assim colaborar nesse processo para dar ao homem sua plena corporeidade. Sendo

"... a corporeidade do nosso ser é a instância referencial de critérios para a educação, para a política, para a economia e inclusive para a religião. Ninguém pode servir aos valores espirituais sem encarná-los em valores corporais [...]. Enfim, nenhum ideal se concebe como ideal, nenhum ideal se encaminha e nenhum se cumpre a não ser enquanto ligado à mediação da Corporeidade dos seres deste mundo" (Assmann, 1993, p. 91).

2. Um breve apanhado histórico da relação educação física x corpo e a visão de corpo hegemônica na atualidade

Desde o período clássico a sociedade vem "modelando" o corpo com sua ideologia em ascensão, ou seja, um corpo impregnado de valores que geralmente refere-se aos domínios de uma classe social sobre a consciência de outras classes. O corpo é aqui situado como depositário de signos sociais, isto é, o corpo é modelado ou "construído" pela cultura do grupo ao qual está inserido, sofrendo ação do momento histórico e do espaço físico no qual se encontra (MEDINA, 1987).

Na sociedade clássica estava-se voltado para a construção de um corpo esteticamente perfeito e robusto. Com a ascensão da Igreja, a visão de corpo predominante é a de um corpo como local do pecado, que precisa ser flagelado para a salvação da alma. Com a ascensão da burguesia e o período das grandes revoluções o corpo é voltado para a força-de-trabalho e passando a ser mecanizado, com a função exclusiva de produzir. Hoje podemos ver uma visão de corpo mercadorizada (PORTER, 1992).

Na atualidade a expectativa de corpo que se tornou hegemônica está fundada a partir de seu culto. Assim, a mercadorização do corpo torna-se presente na sociedade hodierna, na qual esse corpo mercadoria é moldado e vendido pelo mercado, constituído por academias de ginásticas, clubes esportivos, medicamentos e produtos de beleza, manuais de dietas e as intervenções terapêuticas e cirúrgicas que têm se expandido continuamente (BOLTANSKI apud SILVA, 2001). A Educação Física, neste contexto, encontra-se presente nos profissionais que vêem nos indivíduos robôs humanos, explicados apenas pela medição da performance e da gordura corporal, tratando do corpo "em forma" vendido pelo mercado.

Como podemos notar a expectativa de corpo nos é colocada quando nos deparamos com noticiários em revistas de circulação nacional informando: "Ganhe músculos em 30 dias", "Emagreça a jato com dieta líquida", "Turbine suas formas" (Revista Boa Forma, Editora Abril) fazendo com que a insatisfação com o "próprio corpo" leve a "intervenções drásticas sobre o mesmo, como as cirurgias plásticas, as mais variadas dietas, as diferentes ginásticas cada vez mais especializadas em modelar milimetricamente o corpo humano, além da ingestão de medicamentos e produtos químicos com essa finalidade" (SILVA, 2001, p.3).

Assim "... o imperativo recentemente havia mudado da ‘mão’ produtiva e disciplinada tipo máquina, para o corpo como consumidor, cheio de deficiências e de necessidades, cujos desejos devem ser inflamados e encorajados"(PORTER, 1992, p.313).

3. A conscientização corporal e a construção da corporeidade dos educandos

O termo conscientização é aqui abordado como um processo de formação da consciência crítica (FREIRE apud GONÇALVES, 1994) e, conseqüentemente, a conscientização corporal como a formação de uma consciência crítica que o ser humano mantém do seu corpo em relação à realidade vigente, realidade esta que engloba aspectos sócio-históricos, biológicos, psicológicos enfim, todos os aspectos da natureza humana.

A conscientização corporal na Educação Física pretende construir ou reconstruir um corpo que não seja robotizado, repetidor de movimentos, normativo e controlado, mas sim um corpo consciente do movimento, do repouso, do lazer, com direito à cidadania. Tudo isso a ser vivenciados como uma aprendizagem permanente, criativa e prazerosa, conduzindo para a busca plena da autonomia e autogestão (MARCELINO, 1999).

Utilizando a conscientização corporal no trabalho pedagógico da Educação Física, pretende-se superar o fazer pelo fazer das atividades lúdicas e desportivas e incorporar a reflexão crítica do porquê de tais atividades e os valores impregnados em sua prática, auxiliando os educandos no "pensar o corpo", pois, de acordo com Rodrigues (1983, p. 91) "... ao pensar o corpo, estão pensando a estrutura social e, ao defendê-lo, estão defendendo a ordem social".

Essa conscientização corporal na Educação Física não pretende adquirir uma função socializadora, ou seja, de contribuir para a adaptação do homem à sociedade, mas contribuir para a formação do homem como um ser integral e agente de transformação social. Sendo assim, a proposta é que os indivíduos, além de serem capazes de participar de atividades corporais, desenvolvam, também o espírito crítico em relação à prática de tais atividades.

As relações entre a consciência e o corpo propostas pela conscientização corporal pretende atingir uma maior extensão da Educação Física, indo além da força muscular, dos esportes competitivos e dos aspectos higiênicos de saúde, alcançando assim a aprendizagem na administração do próprio corpo. Como nos mostra Cavalcanti apud Brito (1996, p.54) o trabalho com o corpo "exige do participante conhecimento não só das técnicas que ele vai utilizar ou aplicar, mas, e isto é muito importante, conhecimento do mecanismo que ele vai usar no desenvolvimento de si mesmo - seu próprio corpo".

4. Considerações Finais

Os indivíduos têm uma noção de corpo totalmente mecânico, tratando-o como uma máquina dotada de alavancas. A partir de uma conscientização desse corpo as pessoas podem estar identificando que ele tem uma forma de expressão e sensibilização, ou seja, o corpo está presente e se relacionando dentro de uma realidade social e histórica. A prática de atividades corporais, nas aulas de Educação Física, realizada de forma mecânica, sem criatividade e participação do indivíduo está cooperando para a formação de um homem apático, que não se permite interpretar o mundo por si próprio, que se adapta a este mundo sem questionar seus absurdos e que não se sente engajado em uma ação transformadora (BRITO, 1996).

A Educação Física deve sempre utilizar a conscientização corporal através do movimento humano, este movimentar-se deve ser dotado de uma forma de valorizar a condição do indivíduo como um ser social, dotado de história e criticidade dentro da realidade vigente.

Professores de educação física são antes de tudo educadores e que, portanto devem incluir em suas metas a ultrapassagem do senso comum, promover mudanças e se possível, transformações na sociedade: "Somente as atividades que se dediquem a pensar e viver o corpo e que se proponham a modificar as regras que inibem a consciência corporal, dificultarão a manipulação desse corpo no qual o homem vive" (BRUHNS, 1989, p.107).

Portanto, buscamos que os professores de Educação Física, nesta nova visão de realidade, substituam sua visão vulgar de corpo, de ser humano e de sociedade, adquirindo uma nova consciência que se preocupe com o desenvolvimento integral da personalidade humana.

OBS: O autor, Thiago Zanotti Pancieri é graduando em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES e bolsista do Programa Especial de Treinamento - PET

Referências bibliográficas

  •  Assman, H. Paradigmas educacionais e corporeidade. São Paulo: Unimep, 1993.
  • Bracht, V. A criança que pratica esporte respeita as regras do jogo... capitalista. (in) Fundamentos Pedagógicos 2, Ao Livro Técnico, Rio de Janeiro, 1986.
  • Brito, C.L. Consciência corporal. Repensando a Educação Física. Rio de Janeiro: Sprint, 1996.
  • Bruhns, H.T. (Org.). Conversando sobre o corpo. 3 ed. Campinas, SP: Papirus, 1989.
  • Gonçalves, M.A.S. Sentir, pensar, agir: Corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1994.
  • Marcelino, N.C. (Org.). Lúdico, educação e educação física. Ijuí: UNIJUÍ, 1999.
  • Medina, J.P. O brasileiro e seu corpo: educação e política do corpo. Campinas: SP, 1987.
  • Porter, R. História do corpo. In: BURKE, P. A escrita da história. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992.
  • Rodrigues, J.C. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.
  • Silva, A.M. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas, SP: Autores Associados, 2001.