A Construção da Identidade Nacional na Imprensa Desportiva Portuguesa: Analise do Discurso Jornalistico Durante o Euro 2000 de Futebol
Por Rui Gomes (Autor), Marisa Freitas (Autor).
Integra
Introdução
O campeonato europeu de futebol de 2000 concentrou as atenções de milhões de pessoas na Europa e em todo o mundo. Em Portugal, as audiências da televisão e dos jornais desportivos aumentaram à medida que a selecção portuguesa acumulava êxitos desportivos. Milhões de portugueses acompanharam as peripécias da selecção, envolvendo-se emocionalmente com as alegrias do êxito e sofrendo com a interrupção intempestiva do percurso bem sucedido, já perto da final. Muitos dos que comungaram deste sentimento não são tocados habitualmente pelo fenómeno futebolístico. Durante um mês a selecção nacional de futebol concentrou em si os valores de uma sociedade portuguesa em transição: o futebol reforçou a crença no mérito que premeia o talento e o sucesso individual, mas actualizou também a valorização do empenho colectivo e do trabalho em equipa. Tornou-se visível, se tal fosse ainda necessário, que o futebol é, nas sociedades contemporâneas, um fenómeno social e psicológico total que desencadeia um conjunto de processos sociais nos mais diversos domínios, quer pessoais, grupais ou institucionais. A disseminação planetária de informação e imagens desportivas gera, actualiza ou incrementa valores e padrões de comportamento que contribuem para a formação das diferentes subjectividades que o homem contemporâneo usa no seu dia a dia. Os media são um recurso muito influente neste processo porque constituem o meio e a mensagem que estabelece a conexão entre o sujeito e o mundo no espaço público nacional e mundial.
Esta pesquisa pretende verificar qual o papel dos media desportivos, no caso a imprensa, na construção e actualização do espaço simbólico nacional, por intermédio da análise das notícias e do discurso jornalístico produzidos durante a participação da selecção portuguesa de futebol no último campeonato europeu de futebol. O objectivo principal consiste na observação da trilogia nação-media-futebol, analisando os processos de influência que o enlace media-futebol produz na (re)construção da identidade nacional. As perguntas iniciais resultam assim nitidamente: como é que o futebol e a selecção nacional contribuem para a actualização da identidade nacional? Como é que podemos compreender o futebol como uma metáfora dos valores nacionais e estatais? Qual o papel dos jornais neste processo?
Nação, nacionalismos e identidades nacionais
Raramente nos questionamos acerca da nossa condição de cidadãos de um país. A nacionalidade é para todos um dado adquirido, pelo que se torna algo natural, que se adquire com o nascimento. É uma dimensão cultural e identitária omnipresente na nossa vida. Após o nome próprio ou da família é provavelmente a forma mais óbvia de alguém se auto-identificar (Coelho, 1998), o que é perfeitamente compreensível se pensarmos que vivemos num mundo de nações.
O nacionalismo é a ideologia que reproduz as nações, manifestando a crença de que o estado nacional é a unidade política natural (Gellner, 1998), o que justifica a sua hegemonia relativamente a outras formas culturais. Benedict Anderson (1991) define a nação como uma comunidade politicamente imaginada. Desde logo porque nem mesmo os membros das nações mais pequenas chegarão alguma vez a conhecer a maior parte dos seus concidadãos, encontrá-los ou sequer ouvir falar deles, permanecendo ainda assim nas suas representações a imagem de comunhão. A nação é vista, portanto, como uma «super família» imaginária (Smith, 1991), onde embora não existam reais afinidades entre os seus membros, existe um sentimento de partilha e de pertença comuns. Porém, a nação enquanto algo imaginado, tem de apoiar-se em elementos concretos, que lhe permitam não apenas a identificação dos seus membros com ela, mas também que esta se torne um objecto real, passando assim do imaginário à realidade. Os elementos de ancoragem na realidade podem ser vários mas o mais importante parece ser o território: aquele que é tido como terra natal, onde se enraiza o passado de cada um, situando a memória e onde se projecta o futuro, formulando as aspirações. Embora o estado nacional se torne cada vez mais obsoleto em face da transnacionalização dos sistemas produtivos, pondo em causa a territorialidade como a sua característica mais preeminente, o futebol continua a ser uma zona de afirmação de identidades na base dos velhos direitos às raízes (Bourdieu, 1999).
A identidade nacional, enquanto conjunto de tradições, carácteres partilhados, essências, naturezas e obrigações morais inquestionáveis (Coelho, 1998), apresenta-se como um meio para posicionar os indivíduos no mundo, através do conhecimento que estes adquirem relativamente à existência de uma pessoa colectiva à qual pertencem e com a qual se identificam. Esta identidade colectiva encontra no passado o seu fio condutor, que nunca abandona e que se torna um pilar fundamental para a construção do espaço nacional, embora sujeito a constantes alterações. Enquanto ideologia assenta no imaginário da comunidade, através dos significados, das metáforas, das imagens e das referências que são reproduzidos em discursos sobre a nação. O indivíduo não traz consigo, quando nasce, uma identidade já formada. Esta orienta-se por padrões de cultura e está dependente do processo de comunicação pela qual é transmitida. A linguagem aplicada aos discursos é então encarada como construtora de vários tipos de identidade. Enquanto símbolo representa duas funções: a de comunicação e a de participação. A primeira reflecte a função de transmissão de mensagens e a segunda favorece o sentimento de pertença a grupos ou colectividades (Rocher, 1989). São estas duas funções da linguagem, aplicadas ao discurso jornalístico que pretendemos analisar. O facto de reconhecermos nos símbolos, como na linguagem, a capacidade de «concretizar e tornar visíveis e tangíveis realidades abstractas, mentais ou morais da sociedade» (Rocher, 1989) implica compreender e identificar a forma como a comunidade nacional se imagina, através da análise dos discursos produzidos acerca desta e que incidam sobre um conjunto de valores (caracterizadores de comportamentos, vontades e pessoas), comparações (procurando verificar as semelhanças ou diferenças existentes entre os que são considerados de dentro e os que são considerados de fora da comunidade imaginada), metáforas (enquanto expressões que ditas de uma forma indirecta, nos levam ao caminho pretendido).
A identidade cultural colectiva refere-se à uniformidade e à semelhança entre os membros que a partilham, determinando fronteiras e diferenças relativamente aos que lhe são exteriores. Por conseguinte, cada nação procura criar uma identidade nacional própria que, frequentemente, assume a forma de pensamento naturalizado na definição de um carácter biológico-psicológico nacional. No caso português, o processo de construção do carácter nacional tem raízes histórico-culturais muito profundas, remontando ao tempo das conquistas e dos descobrimentos. Épocas áureas em que os portugueses tiveram um papel dominante nas relações internacionais, alguns mantêm-se ainda hoje como mitos. Por constituírem motivos de orgulho foram e vão sendo perpetuadas, frequentemente como recalcamento, sobretudo pelas elites culturais, adquirindo uma dimensão simbólica muito elevada. Gerou-se assim um senso comum, sobretudo mítico e psicanalítico (Santos, 1994), acerca do carácter português., que procura sobrepor às características individuais de cada pessoa uma personalidade base, que afirma estar presente em todos os portugueses e que os identifica e os diferencia dos outros povos.
A selecção nacional de futebol torna-se o instrumento de exposição dessas características, que surgem de forma natural nos discursos jornalísticos. A interpretação do «estilo português de jogar», o recurso ao «carácter fantasioso dos nossos jogadores», o sentido adaptativo e improvisador da equipa, as qualidades de acção, sacrifício e coragem dos jogadores, são tudo características que estabelecem constantemente uma linha de continuidade aos traços mais marcantes do senso comum que, entre outros, Jorge Dias (1971) ajudou a construir sobre a personalidade-base dos portugueses.
Em todo este processo de construção da identidade as relações internacionais assumem um papel charneira por que é no campo das relações interestatais e da translocalização de pessoas que se realizam os jogos de espelhos entre o que somos, o que julgamos ser e o que os outros pensam que somos. Boaventura Sousa Santos (1994: 49) analisou este problema a partir da relação de conhecimento/desconhecimento de que somos alvo preferencial: «apesar de Portugal ser um país europeu, e dos portugueses serem tidos como um povo afável, aberto e sociável, Portugal é considerado um país relativamente desconhecido». Este seria o resultado, entre outros, da situação semiperiférica de Portugal (Santos, 1994): Portugal foi o país que durante vários séculos representou o centro, através do seu grande império colonial, e a periferia da Europa; foi o único país a ser colonizador e colonizado ao mesmo tempo; foi o único povo europeu, que ao mesmo tempo que considerava os povos das suas colónias como primitivos e selvagens, era, ele próprio, integrado nesse estatuto por individualidades dos países centrais da Europa do Norte.
As consequências desta posição intermédia influenciam não apenas os aspectos politico-económicos mas preferentemente a identidade cultural. Assim sendo, a nossa cultura nunca foi semelhante às identificações culturais positivas europeias, ou suficientemente diferente das identificações negativas não-europeias, o que originou um défice de diferenciação e um défice de identificação - criou-se um vazio por um lado e consolidou-se uma forma cultural de fronteira ou uma zona fronteiriça (Santos, 1994). O nosso trajecto histórico e cultural reflecte uma posição onde representamos tanto o europeu como o selvagem, tanto o colonizador como o emigrante, o que nos conduziu a esta zona híbrida, na qual ainda nos encontramos. Portugal apresenta-se como um país onde tanto o centro como a periferia têm sido impostos à sua cultura. Esta imposição de centro produz em Portugal um sentimento que revela a constante necessidade de comparação com os países centrais e a consequente necessidade de concretizar alguns dos aspectos de imaginação de centro que dominam o imaginário português (Santos, 1994). O desporto, e especialmente o futebol nos últimos anos, desempenha o papel de compensação simbólica, na medida em que proporcione e satisfaça os desejos imediatos da desperiferização do país. Também por isso se compreende a substituição dos investimentos nas prioridade sociais pelas obras de prestigio nacional e internacional, na construção de estádios e na realização de provas internacionais (Esteves, 1999). Mas a imaginação de centro acarreta consigo o sentimento de défice e de medo da queda do país numa classificação mais próxima de país subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento. Tais preocupações de imagem estão bem patentes nos próprios valores-notícia dos jornalistas. Nestes, facilmente encontramos discursos com uma forte tendência para elevar o estatuto de Portugal no concerto das nações europeias, onde ressoam narrativas culturais básicas sobre o sentimento nacionalista, a identidade nacional e a nação.
Os media-espelho e os media-construtores da realidade
Dentre as teorias que se dedicam a dar respostas à pergunta por que são as notícias como são?, interessa-nos salientar duas delas: a teoria da notícia como espelho da realidade e a teoria da notícia como construção da realidade social. Subjaz à primeira uma ideia forte segundo a qual as notícias são o que a realidade determina que elas sejam. Nesta asserção confluem três princípios básicos da ideologia dominante no campo jornalístico: o jornalista é um comunicador desinteressado, a forma como relata os factos é imparcial e objectiva e, portanto, existe uma separação entre factos e opiniões.
Ao contrário do empiricismo desta corrente, a segunda teoria considera as notícias como o resultado de processos de interacção social dos quais os jornalistas são a charneira. Situam as interacções em que os jornalistas são actores em sucessivas órbitas micro e macrosociológicas: na relação com as fontes de informação, no estatuto organizacional no seu local de trabalho, na integração nos valores da cultura profissional da tribo jornalística, no grau de aceitação dos valores culturais da sociedade. Esta teoria sublinha o papel da cultura jornalística nos procedimentos de selecção, exclusão, subtracção ou adição de diferentes aspectos do acontecimento por processo orientados pelo enquadramento escolhido. Sendo a escolha do jornalista orientada pelas convenções que moldam a sua percepção do acontecimento, bem como pelo repertório formal e pelas rotinas, é este conjunto de molduras sucessivas que constroem a notícia e desse modo contribui para a construção da própria realidade.
Neste trabalho rejeitamos a visão ingénua do jornalista desinteressado, ancorada na ideologia da notícia como reflexo da realidade. Aceita-se, contrariamente, alguns dos pressupostos das teorias construtivistas, designadamente os que sublinham o papel dos media no reforço da ideia de consensualidade social, a sintonia entre os media e as ideias hegemónicas, ou ainda do papel que os primeiros definidores institucionais da notícia têm no seu tratamento subsequente. Especialmente importante neste trabalho é o reconhecimento de que na construção do facto futebolistico funciona a «rotina do esperado». Uma rotina de dependência de certos canais e fontes de informação oficias, baseado em relações de confiança e simpatia, que acentuam o exercício do poder sobre a interpretação da realidade. E do que se trata verdadeiramente neste trabalho é o de reconhecer as diferentes formas de poder - desde logo a de poder falar e poder publicar - na (re)construção da identidade nacional.
Metodologia
O estudo que serviu de base a este trabalho resulta da análise de conteúdo e da subsequente análise do discurso jornalístico do jornal desportivo A Bola (A B). Foram analisados 41 jornais, no período que decorreu entre 25 de Maio e 4 de Julho de 2000, período de tempo que integra as fases pré-competitiva, competitiva e pós-competitiva da participação da selecção nacional no Euro 20001 .
O corpus reune as notícias que contêm referências à selecção portuguesa, mesmo que estas provenham de entidades, individualidades ou jornais estrangeiros, excluindo as que fazem alusão apenas a outras selecções. Foram sujeitas a análise 607 notícias que correspondem a 46,3% do total das notícias dadas durante o período2 . A caracterização formal das peças foi feita a partir das variáveis autoria, ilustração (imagem), localização, dimensão e género jornalístico. A caracterização de conteúdo considerou categorias, a priori e a posteriori, como as metáforas utilizadas, os valores referidos, as dicotomias, as referências históricas ou à nação que pretendem provocar um sentido de identidade nacional e o locus de controlo sobre as acções ou situações descritas, sejam estas de natureza individual ou colectiva. O método de trabalho utilizado foi a análise discursiva e a técnica de tratamento da informação a análise de conteúdo. O registo do material foi realizado jornal a jornal e notícia a notícia, sem alteração da sua ordem cronológica. A categorização bem como os comentários relevantes foram inscritos em fichas manuais previamente elaboradas. Para tratamento dos dados utilizamos a etatística descritiva: frequência de aparecimento das categorias e a respectiva percentagem, moda e média. Em alguns casos foram definidas classes, como na agregação dos dados referentes à dimensão das notícias e das ilustrações.
O Meio é a Mensagem
A linguagem do jornalismo tem diferentes usos sociais que, para além do conteúdo veiculado, assinalam, por intermédio da forma, os diferentes estatutos de autoridade e legitimidade do jornal. Umas vezes este estatuto resulta do desequilíbrio de acesso das fontes de informação, seja porque se acentua as vozes institucionais, seja porque se apoucam os que habitualmente não têm voz; outras vezes, como é o caso do fenómento desportivo, destaca-se um estilo conversacional, baseado na vox populi, que contribui para uma ilusão de informalidade, de cumplicidade e de aproximação afectiva com o auditório. O significado do discurso é muitas vezes forma não o conteúdo. De onde resulta que o conteúdo da mensagem decorre menos do que é dito mas sobretudo de como é dito. Importa pois apresentar alguns aspectos que revelam a forma. Neste artigo realçamos duas dimensões: o espaço que o jornal A Bola ocupou com a temática do Euro 2000 e da selecção nacional e os géneros jornalísticos mais usados na sua construção.