Integra

Ao concluir a graduação do curso de Bacharelado em Educação Física (UFRJ) tive a oportunidade de receber um convite para participara do GP Lazer e Minorias Sociais, propunha pensar em novas referências teóricas que pudessem tornar mais claro o processo de intervenção da animação cultural, a partir do referencial dos Estudos Culturais. Ainda na Licenciatura, freqüentando a Faculdade de Educação somos envolvidos em um universo muito diferente da Escola de Educação Física. Diferente aos nossos olhos, nos primeiros momentos, pois no decorrer das aulas, conectando umas coisas a outras, em contato com novos ideais filosóficos e sociais; percebi que estão fundamentados na liberdade.

Liberdade presente na Declaração dos Direitos Humanos (1948), concepção contemporânea de valorização da liberdade do ser humano. Paulo Freire em "Educação como prática da liberdade" apresenta a possibilidade de uma existência em liberdade.

"A liberdade é concebida como o modo de ser o destino do Homem, mas por isso mesmo só pode ter sentido na história que os homens vivem... atribui sentido a uma prática educativa que só pode alcançar efetividade e eficácia na medida da participação livre e crítica dos educandos" (Freire, 1982: 05, 06).

Utilizamos os saberes do mundo para conhecer a liberdade e transformamos o mundo exercitando-a. Liberdade que traduza a valorização do homem e da mulher como seres humanos, sendo requisito único para titularidade de direitos.

Atualmente a valorização do homem e da mulher está entrelaçada a alguns fatores, entre eles as concepções que os atores sociais envolvidos (que compreende todos os grupos da sociedade) tenham suas relações baseadas nos interesses, nas estratégias e nos mecanismos de controle de classes, desenvolvidos pelos diferentes protagonistas que darão forma aos diversos níveis de relações sociais. Entre essas relações está a educação.

Refletindo com o filósofo marxista francês contemporâneo Louis Althusser "Os mais importantes aparelhos ideológicos do Estado são a escola e os meios de comunicação. Seus objetivos são reproduzir a ideologia de uma determinada classe social, ou seja, as idéias decorrentes dos interesses de um determinado grupo" (apud Leite, 1991: 34). Considerando a educação como o principal pilar de construção da cidadania nas sociedades modernas, encontramos claramente um mecanismo de controle de uma classe social. Quanto ao que se refere à classe social, chamamos a atenção para Melo inspirado no pensamento de Edward Palmer Thompson:

"O conceito de classe social de Thompson procura recuperar em Marx a tese em que o povo se educa em sua própria práxis, como sujeito da história. Assim, a classe não pode ser isoladamente definida pelo local que o sujeito ocupa nas relações de produção, mas deve também ser compreendida a partir do acesso que o individuo teve a determinados valores: a sua experiência" (Mello, 2001: 03).

Na apreciação das condições sociais de acesso à educação na cidade, percebemos as dificuldades enfrentadas por jovens e adultos de comunidade popular, que não diferem das condições históricas de aquisição de sua liberdade. Se pensarmos a educação como prática da liberdade, se a educação pode ser caracterizada como controle de classes sociais, sendo a escola a instituição que representa a educação e se a ausência da escola impossibilita a população ao acesso a bens culturais1; então, como é feita a educação de jovens e adultos em comunidades populares? Qual o direcionamento político no oferecimento ao acesso à "educação" para a comunidade? Neste artigo, buscamos superar a etapa de denúncia e/ou respostas fechadas e procuramos trocas de experiências com outros trabalhos de questionamentos semelhantes. Esta experiência ocorreu na comunidade Vila do João, no Bairro Maré.

O Bairro Maré apresenta a maior concentração de população de baixa renda do município do Rio de Janeiro e do Brasil. O conjunto de 16 comunidades totaliza uma população de 132.176 pessoas, abrigada em 38.273 domicílios. Outra informação de grande relevância é o acesso à educação e a taxa de analfabetismo entre os adultos acima de 14 de anos. As informações colhidas pelo Censo CEASM2 apontam para uma taxa local de 7,9% de adultos analfabetos. O percentual está abaixo da média do Brasil (13,3%), porém muito acima das taxas do município do Rio do Janeiro para o ano de 1992 (6,1%) e, principalmente, para o ano de 1999 (3,4%).

A partir da análise destes e de outros dados deste estudo, percebendo uma relação entre a ausência de acesso à educação e a condição de pertencer a uma população de baixa renda. Algumas ações foram encaminhadas no sentido de diminuir índices que representem melhorias na qualidade de vida da população.

Para a modalidade "educação de jovens e adultos" (EJA) a Universidade Federal do Rio de Janeiro com o apoio do CEASM desenvolvem o Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos do Bairro Maré. Este projeto propõe a participação de estudantes da UFRJ de diferentes áreas na condição de "educadores/alfabetizadores".

O curso de formação de educador popular iniciou com uma capacitação, quando foram apresentadas as diretrizes curriculares. Esta capacitação apresentou característica multidisciplinar e de modo continuado com o acompanhamento do planejamento das aulas que acontecia semanalmente. Foram vários passos na construção do projeto político-pedagógico para esta população, até então, privada da valorização das relações entre bens culturais adquiridos durante a escolarização como os formados durante sua vida3.


A coordenação de ensino permitiu a cada educador executar um projeto político-pedagógico com autonomia, com orientação pedagógica, com liberdade de ações compromissadas com o cuidado individualizado que cada aluno requer. Proporcionando, no exercício do ato educativo, a formação de uma identidade enquanto profissionais.

A partir da primeira avaliação diagnostica programamos o planejamento pedagógico contemplando principalmente o dialogo entre os interesses dos alunos e as competências que contemplasse ao ingresso dos alunos na EJA. Abrangendo competências desenvolvidas pela EJA e os que privilegiassem a formação humana baseada na liberdade, um dos princípios essenciais para a estruturação do ciclo de cultura4. Prevíamos que o planejamento fugisse da armadilha de proposições definitivas e acabadas, pois contávamos que a prática permitisse que nossos olhos percorressem outros ângulos ampliando questões, reformulando propostas, percorrendo caminhos em constante reformulação e desenvolvimento. Então, ao mesmo tempo em que nos distanciávamos do conceito de ciclo de cultura de Freire, pois não pretendemos substituir a escola e sim iniciar alunos possibilitando ingresso a ela; aproxima-se pela perspectiva participativa e nas funções da educadora5.

Nas linguagens propostas no planejamento buscamos temas geradores que abordassem as condições reais de vida dos alunos e apresentassem características sociais reflexivas.Nossa intervenção se deu a partir da prática, dos estudos e das trocas de experiências, resultando em uma proposta que privilegiasse a educação das sensibilidades, sendo coerente com os princípios freiríanos de organização de suas práticas por meio do tema gerador, enfatizando as ações culturais, tomando por base a vida e linguagem dos alunos, rompendo com conteúdos e planejamentos pré-determinados de difícil leitura.

As propostas desenvolvidas com diferentes tecnologias educacionais6 relacionavam temas discutidos em sala com os conteúdos previstos pelo planejamento. Os temas foram registrados pela educadora denominados como "temas geradores". Segundo Freire, o tema gerador conduz o processo pedagógico a partir de um contexto significativo para o aluno, que visa ampliar o horizonte da investigação e da aprendizagem. Mas como buscá-lo? O tema gerador é uma síntese que só é conhecida depois da aproximação entre educador e aluno.

Nesta relação ocorrem as trocas culturais, onde o educador e o aluno contribuem com sua bagagem cultural, instaurando-se o diálogo da educação para com a prática da liberdade.

A partir do tema gerador selecionamos as "palavras geradoras", utilizando os seguintes critérios: a) Quando aparecem com freqüência nos debates, b) Quando têm relevância como significação vivida, c) Apresenta riqueza sociolingüística e de complexidade fonética.

"As palavras geradoras são de uso comum na linguagem do povo e carregadas de experiências vividas. A partir delas o alfabetizando (educando) irá descobrir as sílabas, as letras e as dificuldades silábicas específicas de seu idioma, além de que servirão de material inicial para a descoberta de novas palavras".(Freire, 1982:5).

A palavra geradora não pode ser uma doação do educador aos alunos, ela surgirá nos debates, sendo tema central em outro debate. O debate tornou-se o ponto capital para as trocas, nos permitindo alimentar as atividades, proporcionando momentos de decisões e embates, contemplando tanto as demandas da turma quanto à do projeto político do acompanhamento escolar.

No contato com a animação cultural, sob as linguagens do cinema e da literatura, reconhecemos as inúmeras possibilidades que a educação pode encontrar na relação cinema - educação e literatura - cinema. A contribuição da literatura, na leitura de "textos" que geraram temas para debate, retirados de livros didáticos, jornais, vídeos, crônicas dos filmes, etc; problematizando a relação entre sujeito e meio ambiente, na busca de um entendimento de suas linguagens. Textos produzidos após a projeção de filme geravam outros temas de debates utilizados em outras ações educativas. O contato com estas duas linguagens proporciona ao aluno o reconhecimento e a valorização do tempo livre7, solidificando a dupla dimensão do lazer 8.

O projeto político do curso de Alfabetização de Jovens e Adultos do Bairro da Maré - Vila do João foi organizado de forma a garantir que cada ação educativa resulte em uma contribuição para o processo de aprendizagem do aluno. Sua característica inclusiva garante o reconhecimento e respeito à diversidade, respondendo a cada um de acordo com suas potencialidades e necessidades independente de etnia, sexo, idade, deficiência, condição social ou qualquer outra situação; proporcionando o acesso ao conjunto sistematizado de conhecimentos como recursos a serem mobilizados, definindo o aluno como sujeito de direitos e foco central de toda ação educacional.

O processo coletivo de construção do curso estabeleceu uma rede envolvendo a proposta política do curso, a pesquisa do educador e os interesses da turma; por meio de definição dos princípios, dos objetivos educacionais, do método de ação e das práticas que foram adotadas para favorecer o processo de aprendizagem.

Na medida em que os alunos foram se envolvendo nas reflexões sobre a educação/escola como estratégia de vida, sobre a comunidade da qual estão inseridos, sobre as necessidades dessa comunidade, sobre os objetivos a serem alcançados por meio da ação educacional, o curso passou a ser de todos para todos. Ao participar da elaboração do projeto político pedagógico do curso, a ação de cada aluno adquiriu novo significado, entendendo o que, por que, para que, para quem e como fazer; ampliando os conteúdos trabalhados nas atividades.

A EJA tem, neste cenário, papel fundamental sendo o espaço ao qual se deve favorecer acesso ao conhecimento e ao desenvolvimento de competências, ou seja, a possibilidade de apreensão do conhecimento historicamente produzido pela comunidade onde está inserido e de sua utilização no exercício da cidadania.

Tendo contato com diferentes possibilidades educacionais percebi que o universo que compreende as competências da Educação Física têm um amplitude infinita, proporcionando um leque de opções de atuação do professor. Porque estamos ligados por relações sociais, tecidas em rede por laços tênue, envolvidas em uma espécie de membrana semiplasmática chamada educação.

Organizar um trabalho pedagógico inspirado nos estudos de Paulo Freire e na animação cultural não é apenas optar por uma metodologia, mas assumir uma concepção de educação que contribua para a formação um ser sensível, com uma consciência crítica sobre a realidade vivida e com engajamento em suas transformações.

A educação como um resumo microscópio de todo o confronto social, pode criar contextos de relações estruturais de transformação social como parte do processo de liberdade. O que devemos garantir é o acesso à educação e a reflexão de qual educação estamos falando.

"A educação como prática da liberdade proporciona ao homem transformar suas relações transformando também seu mundo" (Freire, 1987: 10).

A autora, Mônica Borges Monteiro é do GP Lazer e Minorias Sociais-EEFD-UFRJ. e educadora no CEASM.

Notas:

1 Entendemos bens culturais como um conjunto de valores dentro de um contexto sócio-cultural indicativo de uma classe social

2 CEASM: é o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, uma associação civil, sem fins lucrativos, criada em 15 de agosto de 1997. O CEASM atua no conjunto de comunidades populares da Maré, área da cidade do Rio de Janeiro que reúne cerca de 130 mil moradores. O Centro foi fundado e é dirigido por moradores e ex-moradores locais que, em sua grande maioria, conseguiram chegar à universidade. Os projetos desenvolvidos pelo CEASM visam superar as condições de pobreza e exclusão existentes na Maré, apontado como o terceiro bairro de pior Índice de Desenvolvimento Humano da cidade. (Segundo site pesquisado em agosto de 2004).

3 Os bens culturais adquiridos durante a escolarização atendem a um saber letrado, os bens culturais adquiridos durante sua vida é o que determina sua identidade cultural.

4 Segundo Freire o ciclo de cultura é uma unidade de ensino que substitui a "escola", autoritária por estrutura e tradição. Busca-se no ciclo de cultura (peça fundamental no movimento de educação popular) reunir um coordenador e educandos tendo em comum a conquista da linguagem. O coordenador não exerce as funções de "professor" e que o diálogo é a condição essencial de sua tarefa: a de coordenar, jamais influir ou impor. (Freire, 1982:5).

5 Citado por Freire como coordenador.(ibid.).

6 Compreendemos como "tecnologia educacional" as linguagens e mediações que permeiam os processos educativos em espaços formais e não-formais.

7 Tempo livre: tempo do não trabalho.

8 Dupla dimensão do lazer: educar para o lazer e educar pelo lazer. (Ver Melo, Victor Andrade e, Alves Junior, Edmundo de Drummond, 2003).

Referências bibliográficas

  •  Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  • ¬¬¬__________ . Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
  • Leite, Ligia Costa. A magia dos invencíveis: os meninos de rua na Escola Tia Ciata. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991.
  • Melo, Victor Andrade. Lazer e Camadas Populares: Reflexões a partir da obra de Edward Palmer Thompson. Movimento, Porto Alegre, ano 7, n.14, 2001/1.
  • Melo, Victor Andrade e Alves Junior, Edmundo de Drummond, Introdução ao lazer, Barueri, SP: Manole, 2003.
  • Site: www.ceasm.org.br
  • Site: www.Ibge.gov.br