Resumo

Durante o congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de 1998 participei de uma mesa redonda com o tema “Esporte, discriminação e preconceito” na companhia de dois queridos amigos, Jocimar Daolio e Alessandro de Oliveira Santos. Curioso pensar que naquele momento fizemos uma fala quase etérea, meio fora dos temas centrais do congresso que acontecia durante a Copa do Mundo da França. Minha fala se concentrou na questão da alteridade como um caminho para a construção da cidadania e o esporte mediando essa questão. Alessandro trazia a discussão sobre o racismo, assunto que parece sempre pronto para uma discussão menor dentro dos grandes fóruns, afinal vivemos em uma democracia racial, multicultural e multiétnica. É curioso lembrar que já na chegada essa questão nos pegou no pé de apoio, ou melhor, ela se apresentou de forma manifesta pela discriminação latente. O congresso era realizado na cidade de Natal e naquele encontro estavam previstas muitas atividades culturais de raiz e outras tantas comerciais. Fato é que, independentemente do que falaríamos ou exporíamos estávamos ali, um trio pronto a discutir o inominável, como diriam os amigos de Harry Potter. Alessandro é um daqueles amigos raros, um quase meio irmão que entra para a família dos escolhidos, por conta da afinidade de alma. Nos conhecemos na graduação quando éramos quase adversários políticos nas intermináveis assembleias deliberativas de uma PUC que fazia greves de meses por inúmeras reivindicações. Porém, os interesses acadêmicos e profissionais nos aproximaram e passados vinte anos continuamos a trocar ideias, interesses, expectativas e por que não a fé na humanidade. Naquela SPBC eu já era uma professora da USP. Alê viria a sê-lo anos depois, marcando posição ao ser o 15º professor negro da história da Universidade de São Paulo e o primeiro do Instituto de Psicologia. Ali na SBPC ele experimentou uma dessas tantas situações de discriminação velada ao chegar ao balcão de entrega de material dos congressistas/palestrantes para retirar seu kit e antes de dizer seu nome foi convidado a se dirigir a outra fila, a fila dos artistas. Ao longo dos dias de congresso, das discussões específicas durante o evento e de muitos anos, guardamos aquela situação como emblemática: negro pode ser artista, pode ser atleta, mas intelectual não.

Nesses últimos anos parece que mesmo no esporte essa questão começa a ganhar uma nova dimensão e diante dos dados da pesquisa Memórias Olímpicas por atletas olímpicos brasileiros arrisco alguns diagnósticos e porque não prognósticos também.

Quando realizei a pesquisa Mulheres Olímpicas Brasileiras uma das hipóteses com as quais trabalhávamos era que as questões relacionadas com a discriminação de gênero iriam aparecer na narrativa das atletas como água nas serras do Sul de Minas. E para minha surpresa e espanto isso não ocorreu. Poucas, mas muito poucas mesmo, foram as mulheres olímpicas que relataram algum tipo de discriminação ou preconceito de gênero. Algumas chegaram até a tecer justificativas sobre o por quê dos prêmios menores e de salários desproporcionais. Mas, curiosamente, várias atletas referiram preconceito racial. E o mais curioso ainda, esse preconceito tão duramente sentido em território brasileiro não era vivido em outros países ou competições internacionais. Ele ocorria aqui mesmo, dentro do Brasil, o paraíso do multiculturalismo, do racismo cordial. Discutimos esse dado, ainda não com a verticalidade que ele merece, no livro Mulheres do Brasil Olímpico, mas a sirene continua lá, com uma luz vermelha acesa junto com outros temas tabu que envolvem o esporte como o assédio às mulheres atletas, a corrupção que respinga em suas carreiras, a discriminação regional pela falta de recursos… acho que ainda vou precisar de mais umas duas vidas pra conseguir dar conta de tanta coisa!!!

Mas, aí está um tema que não quer calar. A questão é: por que a questão do racismo começa a ganhar espaço para discussão como se ele antes não existesse? A primeira e mais óbvia resposta é porque a sociedade mudou e com ela mudaram as relações sociais dentro das instituições esportivas. E quando falo em sociedade penso de maneira globalizada e não apenas no Brasil. E outra, como lembra Alê Santos, o campo fértil para a emergência do racismo se encontra no conflito e na competição. E como então fugir dessa contradição se o esporte em si concentra essas duas máximas? Importante lembrar que há quem confunda e sintetize o adversário e o inimigo em um único ente e a desinformação e a ignorância sobre os valores olímpicos colabora para esse estado de coisas.

O racismo está presente no esporte, e não apenas no futebol, desde suas origens. Vale lembrar que a condição inicial de uma atividade aristocrática colaborou enormemente para isso. Aos trabalhadores e pobres de uma forma geral restavam as práticas não institucionalizadas e de lazer, como se o esporte fosse mesmo privilégio de poucos e dos muito abastados. A prova disso (e esse é mais um achado de nossa pesquisa) está na história dos primeiros participantes das delegações olímpicas brasileiras. Na semana passada me perguntaram: – Quer dizer que não havia negros e pobres entre os primeiros olímpicos brasileiros? E a resposta é. Havia sim. Mas os atletas negros e pobres pertenciam às Forças Armadas. Eram soldados, cabos, sargentos, e busco ainda saber se tenentes e majores, que no serviço das funções militares descobriram o esporte e por meio desse exercício da profissão chegaram aos Jogos Olímpicos. Já os atletas originários dos clubes esses tinham classe social distinta e a cor da pele também.

E a dinâmica contemporânea do esporte colaborou para uma dissimulação do racismo, colaborando para esse racismo cordial que ainda nele impera. Essa afirmação está pautada em um dos valores olímpicos que é o direito a igualdade. Analisado na sua essência o direito a igualdade significa que a universalização da regra permite o acesso a todos e quaisquer seres humanos a uma mesma prática e competição para que nela prevaleça o mais habilidoso, o mais bem treinado, o melhor preparado. Por isso a proibição de substâncias ergogênicas ou quaisquer meios que favoreçam uns e não outros. Curiosamente, o que não entra nesse debate é a desigualdade econômica que leva ao desequilíbrio na competição, ou seja, quem tem mais recursos financeiros tem acesso aos melhores materiais, aos mais modernos equipamentos, aos suplementos de toda a ordem, enfim, a geografia é prodiga em mostrar como a falta de acesso colabora para a desigualdade e isso também pode ser visto no esporte, mundial e brasileiro. Não é a toa que os países mais medalhados são também os mais ricos. Basta observar no quadro de medalhas onde estão os países latino-americanos e africanos. A exceção possível se dá pelas franjas como o atletismo queniano e etíope, e mesmo assim, nas provas de longa distância, ou o futebol brasileiro.

Na semana passada o jogador Tinga foi vítima de mais uma manifestação de racismo, dentro de um estádio não europeu, mas latino-americano. Ao que tudo indica nada de muito efetivo será feito porque a Confederação que cuida daquele torneio não tem legislação específica para punir esse crime e nem disposição para tanto. O tema foi discutido na sua condição traumática, mas como em tantos outros casos crônicos é banido do noticiário porque já não é raro. E de fato não o é. Os negros e mestiços foram proibidos, expulsos e humilhados de muitas competições esportivas quando na disputa com os brancos, e dentro do espírito de igualdade dos valores olímpicos, mostraram mais habilidade. Quando resultados assim aconteciam em um cenário marcado pelo amadorismo, e a medalha era a única perda dolorosa, isso parecia menos relevante, muito embora o caso de Jim Thorpe ilustre que perder para um aristocrata é uma coisa e para um mestiço pode ser outra.

No mundo do profissionalismo esportivo as diferenças ganham brilho e relevo acentuados. A competição não está mais restrita às quadras, piscinas, pistas e campos. Ela invade o território da imagem, dos patrocínios, das verbas e bolsas e então o conflito se instaura e o imaginário reprimido, ainda preso numa sociedade escravocrata, emerge poderoso mesmo entre os iguais sociais. E então a diferença se faz presente. O outro é o desigual e, portanto depositário do preconceito gerado pelos anos de discriminação, ainda que velada, falseada em um discurso cordial de igualdade.

O esporte, mais do que nunca, se anuncia como o grande cenário para as dramatizações sociais. As emergências aí estão prontas para ser assistidas e analisadas. Cabe então aos envolvidos, protagonistas ou coadjuvantes, participarem desse momento que pode efetivamente preparar novas produções para as futuras gerações, certamente, mais preparadas, com um repertório histórico, cultural e linguístico mais complexo e pronto a denunciar aquilo que antes parecia ser uma determinação de ordem biológica ou um castigo divino.

17.2.2014