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A Educação Física é uma disciplina que possibilita, talvez mais do que as outras(1), espaços onde se pode dar início a mudanças significativas na maneira de se implementar o processo de ensino/aprendizagem, tendo em vista as diversas situações em que os dados do cotidiano associados à cultura de movimentos podem ser utilizados como objetos para reflexão. Sim, a Educação Física possui esta aparente vantagem, mas o que é visto na realidade é que, se ela possui uma grande fonte de estudos didático-pedagógicos renovadores (2) deixa de dedicar-se, porém, a mudanças práticas na sua forma de atuação na sociedade.

Dentro desta perspectiva destacaremos como objeto deste estudo, os conteúdos de ensino, que segundo (LIBÂNEO apud coletivo de autores, 1985:39) "são realidades exteriores ao aluno que devem ser assimilados e não simplesmente reinventados, eles não são fechados e refratários às realidades sociais". Neste relato veremos que o principal conteúdo trabalhado nas escolas é o esporte_. (3)

É fato que através do esporte, muitas virtudes podem ser trabalhadas e conseqüentemente diversos objetivos podem ser alcançados, pois "o movimento que a criança realiza num jogo tem repercussões sobre várias dimensões do seu comportamento"(Bracht apud Rangel-Betti, 1997: 39). Porém, existem muitas questões sociais que a Educação Física poderia tratar através do esporte e, no entanto, não as incorpora como objeto de seu discurso pedagógico.

Cultura de movimentos, educação física e seus conteúdos.

É importante concebermos conteúdos enquanto interpretações recortadas de realidades indissociáveis da contemporaneidade dos indivíduos, com profunda ligação com seu significado histórico e social.

O presente estudo nos mostra que o conteúdo que melhor satisfaz a maioria das pretensões desta disciplina, no ciclo de iniciação à sistematização do conhecimento, é o esporte. Porém é importante salientar que existem muitas outras possibilidades referentes à cultura de movimentos, que devem, mas que nem sempre são incorporadas ao mundo de movimentos dos alunos.

Também é válido salientar que "a proposta pedagógica crítico-social dos conteúdos, preconizada por Libâneo (1986) aponta para as classes subalternas que estão desprovidas de todo acúmulo cultural dominado por uma minoria" (Oliveira, 1989: 09). É possível confirmar isto, pelo fato da grande diferença de aproveitamento da cultura erudita em relação à cultura popular; acaba por ocorrer a cultura de colonização, de forma que interesses como obediência, respeito à hierarquia, humildade, submissão e capacidade de repetição, são alcançados facilmente. "O conhecimento lhes é dado como um cadáver de informação, um corpo morto de conhecimento sem uma conexão viva com a realidade deles" (Freitas, 1994: 58).

A partir do momento em que os conteúdos tiverem uma ligação orgânica com as realidades sociais, será possível proporcionar condições para a emancipação dos educandos e para a transformação do projeto de sociedade. Deve-se ter em mente que "a educação escolar não pode ser pensada como algo neutro em relação ao mundo, mas como algo que produz na sua própria dinâmica, caminhos diferenciados para a ação social concreta em função de interesses e necessidades dos próprios educandos" (Rodrigues apud Barcelos, 1989: 39).

Mas é claro que uma mudança efetiva não é tão simples, pois "não basta levar à sala de aula conteúdos criticamente selecionados e estrategicamente organizados, é necessário que professores e alunos se transformem, no cotidiano de suas práticas, em sujeitos do seu ensinar e do seu aprender do ato mesmo do ensino/aprendizagem" (Marques, 1989: 24).

Deve-se frisar que a escolha dos conteúdos expressa um caráter ideológico, situando o professor no "campo da esquerda" na construção da sociedade socialista. E tendo em vista as grandes desigualdades, sobretudo econômicas, que o capitalismo vem proporcionando, evidencia-se essa busca por uma nova hegemonia. Segundo Marques (op.cit.), "os conteúdos são o tratamento que lhes é dado na prática educativa concreta (...) só passam a serem conteúdos de ensino no processo de ensino/aprendizagem, onde são observadas metodologias e ideologias inerentes ao educador".

Breve diálogo com a realidade: relato de procedimentos e análise dos dados.

A metodologia utilizada na realização deste trabalho baseou-se em uma coleta empírica de dados, através de um questionário composto por nove questões referentes ao planejamento, aos conteúdos e aos objetivos propostos pelos educadores. Para reforçar a pesquisa, também foram observadas algumas aulas, (no mínimo uma de cada entrevistado) registrando as metodologias de ensino no intuito de buscar subsídios para a construção de um panorama sobre o cenário da Educação Física escolar brasileira. Esta pesquisa foi realizada em dez escolas da rede pública estadual do município de Palhoça/SC. Foram entrevistados doze professores (as) de Educação Física que ministravam aulas para 5ªs e 6ªs séries do ensino fundamental (ciclo de iniciação à sistematização do conhecimento).

Sobre a existência de um planejamento, a grande maioria dos entrevistados respondeu que este era anual e seguido dentro das possibilidades,

Com relação aos principais objetivos, as maiores prioridades são o desenvolvimento físico e a iniciação desportiva. Teixeira (apud Mello; Bracht 1992: 06) relata que "o gosto pelas atividades esportivas deve ser fixado nesta faixa etária, pois, à medida que o tempo for passando, outros entretenimentos e interesses poderão interferir no processo (...) nesta fase o aluno ainda idolatra o professor".

Também foram citados objetivos como o desenvolvimento integral do indivíduo, a sociabilidade, noções de cidadania e criticidade. Com relação a este último objetivo comparado com as metodologias observadas, percebeu-se uma certa contradição. Ou seja, nessa tríade conteúdo-metodologia-objetivo, ao ter-se objetivos que vão ao encontro de uma nova concepção de Educação Física e, concomitantemente, metodologias que, ao contrário, vão de encontro à mesma, evidencia-se a contradição.

Os principais conteúdos ministrados nas aulas são os quatro esportes coletivos tradicionais (handebol, basquetebol, voleibol e futebol). Esta é acima de tudo uma situação de acomodação, principalmente para o professor, porque o esporte "tem suas regras", e o professor pode isentar-se de ter de modifica-lo, também por ser algo valorizado socialmente: "o uso do esporte na Educação Física significa para os professores [tradicionalistas] o que se pode chamar uma ’facilidade pedagógica’" (Saraiva, 1999: 131,132). Vale ressaltar que, em algumas escolas, aulas de capoeira são oferecidas pelos "amigos da escola"(4), mas não nos horários das aulas de Educação Física.

Ao serem questionados sobre como os conteúdos escolhidos poderiam auxiliar no alcance dos objetivos, os professores responderam que: através do esporte os alunos têm uma maior clareza sobre as atividades (depoimento)(5), não ficam restritos a apenas uma visão do esporte (depoimento). O desenvolvimento dos alunos ocorre de maneira mais prática (depoimento). O porquê da sua prática é discutido (depoimento). É uma ótima alternativa, tanto teórica como prática (depoimento). É fundamental na formação do indivíduo (depoimento). É um meio de atividade física (depoimento). Um paralelo com a vida em sociedade (depoimento). Transmite princípios para uma vida saudável longe dos caminhos perniciosos (depoimento).

"Uma Educação Física voltada para o desenvolvimento do esporte [institucionalizado], reforça a ideologia dominante na nossa sociedade que privilegia talentos esportivos em detrimento de homens felizes e realizados plenamente" (Munaro, 1988: 106). Por isso, é necessária imediatamente uma transformação didático-pedagógica do esporte, conforme apregoa Kunz (1994).

O esporte da escola, contextualização do conteúdo.

A hegemonia esportiva encontrada na Educação Física escolar atual foi alcançada num processo gradativo a partir de sua incorporação no contexto escolar, em meados da década de cinqüenta, e fomentada a partir dos anos sessenta.

Há muito tempo, vê-se que o esporte e a Educação Física são muitas vezes confundidos, mas é plausível relatar que o esporte por si só não é considerado educativo, a menos que seja "pedagogicamente transformado" (Kunz, 1989: 69.) Uma aula de Educação Física metodologicamente tradicional vem a ser, muitas vezes, o determinante para a aversão à sua prática social. Através destes moldes "receita de bolo" o aluno se torna um ser passivo nas mãos de um professor também passivo (uma vez acrítico) que utiliza seus conteúdos fundamentados na hegemonia capitalista (mesmo que não tenha consciência disso).

Desde a sua criação na Europa, o esporte moderno difundiu-se nas public schools e, até hoje, estes moldes são aplicados em nossas escolas, isto é, poucas iniciativas são tomadas para que o conteúdo "esporte na escola" incorpore a cultura de movimentos tupiniquim, tornando-se "esporte da escola".

Entende-se ainda que esse uso do esporte, cópia irrefletida do esporte de rendimento, relaciona-se com "condições sociais dadas", do professor, da escola e da sociedade. Isto quer dizer que, num contexto onde não se objetive mudanças, o esporte fornece, tanto ao aluno quanto ao professor, a possibilidade de confirmar "o que está aí". Assim, eles não precisam pensar e são limitados quanto a propor alternativas.

Considerações finais

Pude constatar que os professores de Educação Física da rede pública de ensino fundamental ainda são bastante tradicionais na maneira de atuar em seu campo de estudo e trabalho. Vale salientar que este quadro, provavelmente, não se restringe ao município de Palhoça e muito menos ao estado de Santa Catarina, pois de acordo com recentes trabalhos apresentados no GTT Escola do XII Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE), percebe-se uma certa generalização do panorama da Educação Física escolar em caráter nacional, e este panorama, infelizmente, aponta para o que foi constatado na presente pesquisa. É observado um certo comodismo que pode estar ligado à baixa remuneração, falta de estrutura, material didático, falta de uma formação continuada e, sobretudo, de reconhecimento por parte da comunidade e da própria escola. Os conteúdos se restringem, praticamente, ao esporte e este é aplicado de uma forma em que os alunos muitas vezes não imaginam o porquê da sua prática e no que aquilo vai repercutir em sua vida. E isto, é claro, não é o que se espera do esporte da escola, pois segundo Kunz (1989: 65) "a tematização do esporte nas aulas de Educação Física deve ser no sentido dos educandos poderem entender, compreender este fenômeno sócio-cultural, o que não pode acontecer somente pela sua ação, mas principalmente pela ação reflexiva". É importante salientar que os conteúdos só terão uma significação humana e social se sua forma de transmissão/apropriação também o for.

Não se trata, todavia, de culpar apenas os professores de Educação Física que não conseguem legitimar sua importância frente às outras disciplinas(6), porque estes não são responsáveis pela elaboração do currículo que orientou deficitariamente toda sua formação profissional. Poder-se-ia colocar a culpa nas próprias escolas que não incentivam nem valorizam novas práticas propostas pelos professores, mas enfim, esta também não se pode ser crucificada, quando o maior culpado ainda é o modelo de educação de nosso país.

Deve-se ter em mente que muito além do "fazer por fazer", temos o que ensinar, e para que esse "ensinar" extrapole o que foi citado anteriormente, é preciso "redimensionarmos os espectros do conhecimento a ser (re) conhecido pelos profissionais da área, de modo a garantir que a cultura corporal [de nossos alunos] seja apreendida como dimensão significativa da sua realidade social complexa" (Castellani Filho, 1998: 51).

Notas

  1. Este "mais do que as outras" se deve ao fato de que a Educação Física, assim como as Artes, não é disciplina preparatória para o vestibular, ou seja, enquanto as demais disciplinas utilizam conteúdos especificamente voltados para a realização deste concurso, a Educação Física (e as Artes) pode aprofundar-se em questões de caráter sócio-histórico-culturais e, desta maneira, dar início a mudanças na maneira de ensinar/aprender.
  2. A partir da década de oitenta muitos estudiosos da área começaram a apresentar propostas para mudanças na forma de ensino da Educação Física escolar, entre esses autores estão Valter Bracht, Elenor Kunz e Lino Castellani Filho. Estes estudos se difundiram significativamente nos últimos anos.
  3. A principal manifestação da cultura corporal em nossa sociedade é sem dúvida o esporte. Essa cultura de movimentos hegemonicamente esportiva tem sua prática voltada para determinados esportes como o futebol e o voleibol devido a maior visibilidade destes na mídia. Enquanto outros esportes "menos famosos" deixam de fazer parte do mundo de movimentos dos alunos.
  4. Projeto criado pelas Organizações Globo com o objetivo de incentivar a participação da comunidade na escola. Porém é observado que a pouca participação efetuada está relacionada a prática de esportes na escola, o que de certa forma pode ser uma ameaça à legitimidade do professor de Educação Física. Por outro lado, existe quem os defenda, atribuindo possibilidades "pedagógicas" a estes.
  5. Neste tópico do trabalho, os trechos em itálico seguidos da expressão (depoimento) são reproduções literais de trechos das entrevistas concedidas pelos professores pesquisados. Por compromisso assumido pelo pesquisador, optou-se não identificar os seus autores, sequer com nomes fictícios ou números que os representasse.
  6. O que acaba se tornando uma vertente para a ausência da interdisciplinaridade e de mútuo reconhecimento da importância de cada área do conhecimento tematizada na escola e dos educadores como um todo.

Obs. O autor deste trabalho, professor Juliano Silveira faz parte do Programa Especial de Treinamento (PET) em Educação Física da UFSC

Referências bibliográficas

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