Integra

Através de brincadeiras, a criança se humaniza, aprendendo a conciliar a afirmação de si mesma `a criação de vínculos afetivos duradouros. No brincar, aliam-se a espontaneidade e a criatividade com a progressiva aceitação de regras sociais e morais. Assim, molda a cultura contextualizada no tempo e no espaço, mas também dela deriva.

Não sendo uma prerrogativa humana, porque mais amplo e precoce, o lúdico afirma suas raízes em sociedades animais compreendendo uma preparação à vida adulta e, sobretudo, uma atividade que contém sua finalidade em si mesma, "buscada no e para o momento vivido" (Oliveira et.al., 2000, p. 7).

O brincar da criança permite a continuidade de características válidas para outras espécies vivas, mas, além disso, as prolonga, aperfeiçoa e especializa, tendo, portanto, se convertido numa das estratégias selecionadas pela natureza e pelo próprio homem para a formação de sua autonomia e sociabilidade.

É brincando que a criança pequena elabora progressivamente o luto pela perda relativa dos cuidados maternos, assim como encontra forças e descobre estratégias para enfrentar o desafio de agir e pensar, assumindo a responsabilidade por seus atos. Constitui preciosa ferramenta de que dispõe para aprender a viver.

A busca da própria independência, desenvolvida através de conquistas do dia-a-dia, torna-se muito mais fácil quando às crianças são dados de forma clara e complementar liberdade e limite. Esta combinação é inerente ao espírito lúdico, onde quem brinca espera de si mesmo e do outro o vibrar, o se envolver e criar situações divertidas, assim como o respeitar o combinado, ou seja, assumir um contrato social.

O crescente cerceamento à liberdade de brincar, principalmente nas grandes cidades, nas últimas décadas, é causado, dentre outros fatores, por questões de limitação de espaço, aumento de violência urbana, ou, ainda, por uma má compreensão do processo de alfabetização, que infelizmente, muitas vezes, suprime o lúdico da vida da criança.

Face a esta situação, criar condições para o brincar transfere-se cada vez mais da esfera exclusivamente familiar e escolar para a sócio-cultural-institucional, como um todo, onde entidades públicas e particulares necessitam de uma progressiva tomada de consciência da importância do lazer e, sobretudo, de suas estreitas relações com aspectos de saúde física e mental, e suas possíveis interações.

A educação física escolar, mesmo fora dos muros da escola, pode não apenas proporcionar possibilidades de brincar, mas também de complementar trabalhos visando o pleno desenvolvimento de crianças e, sobretudo, pelas questões referentes à cultura, permitir a inserção social de forma crítica e emancipadora, o que compreende o resgate à cidadania destas crianças.

Desde março de 2001, o Projeto "Sou Feliz...ensino Educação Física tem desenvolvido trabalhos na área da Educação Física escolar por estudantes universitários da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ. Objetiva, através da tríade Ensino - Pesquisa - Extensão Universitária, complementar a educação básica de Instituição que acolhe menores socialmente desfavorecidos - o Instituto Presbiteriano Álvaro Reis (INPAR) - através de atividades esportivas, artísticas e de recreação orientada.

Inicialmente, uma turma de 22 alunos (meninos e meninas) de 7 - 8 anos compreendia os atores. Este número foi ampliado e hoje todas as 320 crianças (3-16 anos) vem sendo atendidas. A partir da Pesquisa-Ação, é possível desenvolver iniciação esportiva através de atividades lúdicas, exercícios de coordenação motora, lateralidade, ritmo, noções de regras de jogos e de limites e, também, estimular o interesse das crianças na procura de novas formas de descobrir o mundo, de relacionar-se consigo e com os outros e de iniciar-se com dignidade como cidadão brasileiro. As atividades compreenderam encontros semanais, com duração de 2 horas.

Foram realizados questionários orientados com 51 crianças, cujas idades variavam de 7 a 14 anos, com o intuito de perceber a própria visão das crianças sobre o "Projeto" em questão. Com relação às atividades propostas de educação física, as crianças se colocaram muito favoráveis, com um percentual de aceitação em torno de 100%. Quando questionadas em relação ao porquê desta aceitação, algumas colocaram, recorrentemente, que, antes do "Projeto" "ficava muito na sala" (A., 9 anos) ou que agora "não fica na sala o dia todo" (M., 10 anos). Com relação à importância e às atividades desenvolvidas, o brincar foi amplamente salientado, como pode ser evidenciado em algumas falas: "A educação física é importante porque tem brincadeiras para brincar" (M.F., 9 anos), "é brincadeira de brincar" (P., 9 anos), "é uma hora alegre" (T., 10 anos), "é importante porque a gente brinca" (S., 7 anos). Uma criança ressaltou que "ajuda nosso corpo" (T., 11 anos) e outra "porque a gente pratica esportes" (l., 10 anos) e ainda outra colocou que "é bom para o desenvolvimento" (M., 10 anos).

Quando indagadas sobre o que aprenderam a partir da participação nas aulas de educação física e se algo mudou em suas vidas, muitas mantiveram-se ligadas à questão do brincar, respondendo que aprenderam "a brincar" (M., 8 anos; P., 9 anos; S., 7 anos; M., 9 anos; J.L., 8 anos; M.F., 7 anos; R.L., 7 anos, por exemplo).

Sobre as mudanças por eles mesmos observadas, podem ser destacadas ainda questões relativas ao próprio brincar ("não brincava e agora brinco" - M, 9 anos/ "brinca em casa com as brincadeiras do Projeto" - R.L.,7 anos/ "mudou a vida porque brinca mais" - M., 8 anos), mas também mudanças de atitudes e comportamentos. "Aprendi muita coisa: brincar, estudar, obedecer as tias, não brigar com os colegas" (J.L., 8 anos). "Mudou, era teimosa, abusada, batia nas colegas. Aprendi a respeitar os outros, não bater , não ligar para xingamentos, não xingar os outros, não se meter em conversa, brincar, respeitar a mãe, não ser abusada" (A.B., 7 anos). "Não fazer bagunça, jogar bola sem brigar, pular corda em fila" (R.L, 7 anos). "Ser amigo" (M., 10 anos). Mudou "o meu respeito" (D., 10 anos). "Me sinto mais feliz" (N., 9 anos). "Eu estou alegre"(T., 10 anos).

Através do "Projeto Sou Feliz...ensino educação física" as crianças do INPAR vêm realizando atividades que propiciam um desenvolvimento global através do movimento, da ação, da experiência e da criatividade, beneficiando, de forma indireta, outras áreas do conhecimento ou mesmo relacionamento. As mudanças de comportamento durante o período observado referem-se especialmente a questões cognitivas e de relacionamento aluno-aluno e aluno- professores/ dirigentes da Instituição. Alguns pais já se posicionaram e coadunam este resultado.

Assim, os objetivos do Projeto vem sendo plenamente atingidos, incluindo as referidas mudanças observadas nas crianças. É importante desenvolver senso de respeito ao próximo, além de motivar a criança a praticar esportes e ter contato com a natureza, despertar a criatividade e a coordenação motora, e ainda desenvolver sua personalidade aumentando seu senso crítico e sua autonomia. Assim, a Educação Física possui local de destaque para a formação do futuro cidadão, destacando um trabalho que desenvolva não só o aspecto físico, mas também a dimensão sócio-educativa.

Uma educação física escolar comprometida com a questão social da educação se dá através de atividades específicas que possibilitam ao aluno a tomada de consciência de seu corpo nas diversas dimensões: culturais, sociais, políticas e biopsicológicas.

Faz-se necessária, para viabilizar a continuidade deste Projeto, a maior participação da comunidade acadêmica e de outras instâncias com o intuito de permitir sempre a ampliação do número de crianças atendidas, mas também a participação de maior número possível de estudantes de Graduação, como embasamento para suas futuras vidas profissionais, bem como maiores possibilidades no tocante a aquisição de novos comportamentos por parte dos atores e integração entre diferentes áreas do conhecimento (música, artes, educação ambiental, educação em saúde, por exemplo).

Os autores: Tonia Costa, Professora Assistente IV - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luciana Bernardes Vieira de Rezende, Giselle Kicia de Almeida, Marcos Jorge Ulberg Pereira, Juliana Ferreira Barral, Diogo Hersen Monteiro são graduandos de licenciatura em Educação Física- EEFD/ UFRJ; Flávia Palhaes Vidal é graduanda de licenciatura em Educação Física na Universidade Castelo Branco

Referências bibliográficas

  • Berger, K.S. O desenvolvimento da pessoa da infância à terceira idade. 5ª ed., Rio de Janeiro, LTC, 2003.
  • Costa, T. et.al. "Projeto Sou feliz...ensino educação física". I simpósio em educação Física - EEFD/ Universidade Federal do Rio de Janeiro. Abril, 2003. Anais.
  • Darido, S.C. Educação física na escola - questões e reflexões. Rio de Janeiro, Gunabara Koogan, 2003.
  • Oliveira, V.B. de (org.) O brincar e a criança do nascimento aos seis anos. 4ª ed., Petrópolis, Vozes, 2002.