A Educação Física sem trabalho e os trabalhadores - alunos sem aula: tecendo a crítica a nova LDB e apostando na Educação Física noturna
Por Profs. Celinalda Mesquita Santana (Autor), José Ricardo da Silva Ramos (Autor).
Em II EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
A Educação Física escolar para os cursos regulares noturnos na rede municipal de ensino em São Gonçalo está para acabar : Com o fim, qual será o destino da Educação Física curricular nas escolas noturnas? Os trabalhadores-alunos não terão mais aulas de Educação Física? E a nós professores de Educação Física: resistir ou nos submeter?
Não basta conhecermos a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) agora delegando a responsabilidade pela normalização do ensino da educação Física aos sistemas de ensino e/ou às escolas;
O art. 26 da nova LDB tenta nos esclarecer:
§ 3º A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular da Educação Básica, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos.
A reflexão crítica da nova LDB se faz necessária para a compreensão da Lei, desvelando os interesses mais amplos da sociedade, principalmente quando a(s) lei(s) revelam interesses relacionados a uma educação articulada a um projeto neoliberal que faz alusão aos valores e princípios que o mercado veicula, em detrimento aos trabalhadores-alunos.
A nova LDB estabelece a Educação Física como um componente curricular facultativo, para ser oferecida aos trabalhadores-alunos na escola regular noturna e, ao mesmo tempo, delega responsabilidade de assumir a Educação Física curricular à escola, à opção dos alunos ou ao Sistema Educacional. Para nós, revela o discurso "camaleônico" das propostas neoliberais "naturalmente" distorcidas e coerentes com as condições materiais concretas do mercado, na medida em que o ensino da Educação Física pode ser justificado de acordo com o sistema de gestão escolar, ou de acordo com as condições da população, onde as novas exigências do mercado, impõem ao trabalhador diferentes qualidades cognitivas para se integrar ao mercado.
A desconsideração da devida reflexão crítica da lei, articulada a uma visão política, social e econômica de mundo, pode nos envolver pelas categorias de eficiência, produtividade e abstração da "Pedagogia da Qualidade" para o trabalhador em tempos neoliberais. Por suposto, o Estado vem defendendo a redução dos custos, a falta de material pedagógico, enfim a falta de condições concretas para o ensino da Educação Física Noturna, tais como: falta de luz nas quadras, um trabalhador cansado, o desemprego estrutural, o aperfeiçoamento da robótica e a informática em virtude do fenômeno da globalização e a formação de novas atitudes e atributos para um trabalhador pós-moderno.
Nossa instigação neste trabalho é críticar esses tópicos em forma de jargões e denunciar a exclusão da Educação Física às novas propostas distorcidas da LDB. Quando a lei anuncia a opção de escolha do ensino da Educação Física no regular noturno, deixa dúvidas de quem está com o poder de decisão: da escola, do aluno ou do mercado. Não é por acaso, que as metas pedagógicas definidas pelos chamados Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Educação Física são coerentes para um trabalho de homogeneização da escola básica classificador dos alunos nos diferentes níveis evolutivos do desenvolvimento de uma criança universal, encobrindo as contradições, os conflitos de classe, etnia, gênero presentes no cotidiano dos alunos na escola. E, ainda nada consta sobre uma Educação Física orientada para o trabalhador-aluno.
Taffarel (1997, p.36) nos chama atenção para o fato:
"Sem referência ao mundo do trabalho e às suas exigências na perspectiva da classe trabalhadora - geradora das riquezas, força produtiva em processo de destruição acelerada na presente fase do capitalismo senil - os PCNs colocam-se na perspectiva de referências ideológicas idealistas (...)"
A nova LDB ao naturalizar a obrigatoriedade dos trabalhadores alunos fazerem ou não aulas de Educação Física transforma em contingência a Educação Física Noturna e reafirma a legislação anterior que, para os trabalhadores não poderia se enquadrar em atividades corporais noturnas podendo ser eles dispensados e amparados legalmente por sobrecarregar seus corpos já fatigados pelo dia de trabalho. Esse modelo biologizante parte de um saber construído nos princípios do Treinamento Desportivo que norteou a legislação anterior da Educação Física, pode ainda ser percebida na atual legislação e, nas práticas educativas cotidiana das nossas escolas.
Tomamos como parte integrante do nosso trabalho, uma pesquisa-piloto em forma de formulário-entrevista que travamos com os professores de Educação Física que trabalham com o curso regular noturno. Nossa pesquisa trata de socializar alguns dos depoimentos dos professores sobre a possibilidade da exclusão da Educação Física, sobre suas atividade pedagógicas e as diferentes produções pedagógicas face à nova LDB.
Propomos essas questões para a discussão:
A nova LDB determina que a Educação Física é uma disciplina curricular facultativa para a escola regular noturna. Qual a sua opinião a esse respeito?
A maioria dos alunos que freqüentam a escola regular noturna são trabalhadores. No seu entender, quais as possíveis conseqüências da extinção da Educação Física para este público?
Quais são os seus argumentos para a manutenção da Educação Física na escola regular noturna?
Diante da possibilidade da exclusão da Educação Física curricular, quais seriam os encaminhamentos possíveis no intuito de efetivar um projeto pedagógico que justifique a permanência da Educação Física nos cursos regulares noturnos?
O processo de mudança da metodologia de ensino da Educação Física vem nos possibilitando compreender e nos ajudando a desconstruir esse ideário positivista construído de acordo com a ótica da exclusão com seus princípios de formação humana e de sociedade imbricada antagônica as necessidades emancipatórias da classe trabalhadora. Eis a opinião da profª. Henriette a esse respeito:
"A princípio eu fico um pouco preocupada conversando com alguns colegas sobre a Educação Física vir a ser facultativa. Acredito que recai um pouco em nossa própria culpa, por em não efetivarmos um trabalho mais sério de Educação Física Escolar. A minha opinião é completamente contrária. Acho que a Educação Física deveria continuar como uma disciplina de real interesse, que promove dentro de um contexto escolar o aluno como um todo. Essa criança, esse adolescente, esse jovem, esse adulto necessita desse momento para refletir o corpo e a própria vida." Henriette Porciúncula (IECN)
Segundo Coletivo de Autores (1992), a isenção das aulas de Educação Física veiculada como amparo legal para os trabalhadores-alunos contraditoriamente pode ser interpretada como punição, na medida em que impede a este público o acesso a uma prática pedagógica ou área de conhecimento. Para eles a "Educação Física é uma prática pedagógica que, no âmbito escolar, tematiza formas de atividades expressivas corporais como: jogo, esporte, dança, formas estas que configuram uma área de conhecimento, que podemos chamar de cultura corporal."
A produção de Souza & Vago confirma a perda com a punição para os trabalhadores-alunos: "Para eles, há mesmo uma dupla penalização: a primeira, por terem de cumprir uma jornada de trabalho durante o dia, que se estenderá até a noite, para que possam estudar. Com isso, seu tempo de lazer diário desaparece. . E agora são penalizados ainda, pela discriminação que lhes será imposta com a exclusão virtual da Educação Física do currículo dos cursos noturnos. Assim, os trabalhadores como na legislação anterior, continuam excluídos da Educação Física."
Em seu texto, Souza & Vago nos revela uma prática pedagógica diferenciada. Eles apontam o lazer como uma atividade que responde às exigências concretas da realidade de um trabalhador e nos mostra até onde processos burocráticos educacionais impedem e desconsideram a prática educacional do lazer.
Nosso olhar mais atento em seu texto possibilitou-nos compreendemos o significado da permanência da Educação Física no regular noturno pela apresentação de argumentos e contribuições de práticas corporais alternativas, no esforço de conhecermos melhor o nosso aluno. No entendimento da profª. Kátia sobre a possível ausência da Educação Física no regular noturno, ela diz:
"A LDB quando fez a proposta só pensou no conteúdo que o professor tem que dar e esqueceu das propostas pedagógicas que esse professor tem com cada aluno. Essas propostas irão privá-los da descoberta de novos interesses. A Educação Física é um momento de descontração, de liberdade, de satisfação pessoal e não deveria ser negado a nenhum aluno independente de turno." Kátia Ferreira de Mattos (C.M. Amaral Peixoto)
Investir em práticas que busquem alternativas onde os professores de Educação Física possam construir ações pedagógicas mergulhados em projetos políticos pedagógicos que vão de encontro a Pedagogia da exclusão, está explicito no texto de Souza e Vago, que nos ensina um modo de contribuir efetivamente para um novo sentido na Educação Física:
"(...) entendemos que o nosso maior desafio é nos manter no caminho que já vínhamos trilhando, prosseguindo com o que de fato já vínhamos fazendo, mesmo que de formas diferenciadas, antes da nova LDB: tenta construir um ensino da educação física que possa participar da produção da cultura escolar como um tempo e um espaço de conhecer, de provas, de criar e recriar as práticas corporais produzidas pelos seres humanos ao longo de sua história cultural (...)"
É fundamental que a busca de diferentes sentidos em Educação Física, seja para os professores um instrumento que lhes possibilitem teorizar sobre sua prática, de forma a atender aos anseios e às necessidades do trabalhador-aluno. Por isso entendemos que o nosso trabalho de pesquisa, desenvolvido com o grupo de professores das escolas que funcionam a noite em São Gonçalo, se fundamenta num constante repensar sobre suas práticas pedagógicas e nas explicações de alguns preconceitos e distorções que historicamente têm contribuído para mistificar quem realmente é o nosso aluno e qual é a concepção de trabalhador-aluno que pode nos iluminar nesses dias.
Para Frigotto (1988: 27) trabalhadores são "aqueles que dispõem, para garantir a sua existência, da venda de sua força de trabalho". Linhares (1993:15) cita Marx que concebe o trabalho como atividade especificamente humana, através da qual o homem se cria, criando e transformando o mundo.
Nosso movimento de resistência frente a nova LDB avançaria consideravelmente se fizéssemos uma leitura prática da concepção de trabalhador-aluno defendido por Linhares:
Em um sentido mais amplo e mais adequado a centralidade da categoria trabalho - que envolve múltiplas faces e que corresponde à própria tarefa do homem, humanizar-se -, trabalhadores somos todos os seres humanos, na medida em que atuamos sobre a natureza, interagimos social e politicamente e, assim, produzimos bens materiais, artísticos, científicos e espirituais e nos produzimos a nós mesmos. (id. ibid)
Urge portanto, construir ações pedagógicas em interação com este público e ampliar os espaços de debates no nosso município, no sentido de garantir que a flexibilidade e autonomia que, à princípio, encontram-se presentes na lei, sejam legitimadas pela discussão coletiva. Esta discussão orientar-se-á, não somente na perspectiva de garantir ao professor de Educação Física a permanência, reiterada pelo concurso ao qual se submeteu. No nosso entender, é prioritário a discussão do projeto pedagógico que a Educação Física pressupõe, coerente com o espaço escolar no qual está inserida, sendo este entendido em sua especialidade própria, porém jamais deslocado do contexto social.
Assim, a profª. Marta justifica a permanência da Educação Física para o trabalhador-aluno:
"Aqui por exemplo, nós tínhamos muitos problemas, mas quando o aluno participa, ele participa com vontade. Esses alunos são os maiores prejudicados, nós não tínhamos material e eles pediam. A Educação Física no começo era dentro de sala e eles começaram a pedir material mesmo sem ter uma quadra. Esses alunos perdem muito com a exclusão da Educação Física a noite ." Marta Peçanha Vasconcelos (C.M. Luís Gonzaga)
Neste sentido acreditamos que a resistência, a negação do conhecimento das diferentes manifestações corporais humanas, historicamente construídas, ao trabalhador-aluno, só poderá ser garantida, se for garantido o debate amplo e democrático das diferentes possibilidades de propostas pedagógica a ser desenvolvidas no âmbito escolar pela Educação Física no nosso município.
Em algumas das entrevistas realizadas apontamos a existência de algumas perspectivas de práticas alternativas ao paradigma da exclusão, sugerindo assim indicativos de possíveis caminhos a seguir. Deste modo, pressupomos, que avançar no entendimento do trabalhador-aluno, face a nova LDB pressupõe redimensionar a visão equivocada de que a Educação Física Escolar cabe somente desenvolver o "organismo" do educando no intuito de enganá-lo, num mercado de trabalho de maneira eficiente, restando aos "organismos" considerados inaptos para tal, a exclusão da Educação Física às práticas corporais humanas.
Consideramos a atividade corporal, circunscrita na dimensão cultural em Educação Física que os nossos professores estão construindo e reconstruindo como linguagem de produção de sentido, do prazer, do humano, da invenção e das contradições, recupera e assume uma escola interessada à classe trabalhadora. Estas novas formas de intervenção pedagógica pressupõe a superação da visão estática de mundo, onde o trabalhador-aluno não é considerado como sujeito-histórico capaz de, através da apropriação das diferentes atividades corporais humanas, atender às suas "necessidades básicas e desejos subjetivos" (Lamartine, 1994), consubstanciando-se assim, provavelmente, enquanto cidadão capaz de melhor interpretar e intervir na sua coletividade.
Certamente cabe à escola, por meio de um projeto político e pedagógico, decidir o oferecimento da Educação Física no regular noturno (Parecer nº. 05/97 do CNE). É neste momento turbulento que os professores de Educação Física devem "assumir coletivamente o controle de sua prática, única via para a reconstrução da escola" (Garcia, 1996:44)
Referências Bibliográficas:
CBCE, (org.) Educação Física Escolar frente à LDB e as PCNs: Profissionais analisam renovações, modismos e interesses - Ijuí/RS, 1997.
Da Costa L. P. O Corpo na Sociedade Pós-moderna In Pensando o Corpo e o Movimento, RJ - Shape Editora, 1994.
Frigotto, G. Trabalho-educação e tecnologia: treinamento polivalente ou formação politécnica ? Educação e Realidade, 14 (1): 17-28 - Jan/Jun, 1989.
Garcia, R.L. (org.) A Formação da Professora Alfabetizadora: Reflexões sobre a Prática, SP - Cortez Editora, 1996.
Linhares, C. (org.) Formação de Professores: pensar e fazer São Paulo/SP - Cortez, 1993.