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Estamos vivendo tempos pós-modernos, e as incertezas e as dificuldades de entender as novidades que nos são arremessadas neste imediato momento histórico se sobressaem em antigas questões mal resolvidas no ensino da Educação Física. São questões que exigem de nós, professores e acadêmicos, a reflexão e a busca de soluções.

Acreditamos que são problemas de ordem histórica na nossa formação educacional e precisam ser analisados em todos os fóros possíveis esta cultura específica, que segundo o professor Medina (1995) ainda está por entrar em crise. Assim, entendemos que a Educação Física vem buscando sua validade ou afirmação como ciência ou pedagogia no cenário educacional, procurando ultrapassar seus estigmas sócio-históricos, revisitar suas pedagogias, compreender a nova ordem mundial, enfim se reconhecer neste processo de existência e produção histórica.

Nesse sentido, observamos nas pedagogias da área ou em teorias de conhecimento uma pobreza de discussão sobre temas que envolvam o ensino noturno, do aluno que trabalha e faz atividades corporais, das relações entre trabalho e Educação Física. Esta pobreza nos deixa órfão de práticas escolares que contemplam esta classe social, nos trazem dificuldades de reconhecer uma realidade em que a política-educacional da coisificação vem sobressaindo de modo avassalador em detrimento de relações humanas e a formação de sujeitos históricos, autônomos e solidários.

Estamos cientes da política governamental do desemprego, das novas normas impostas pelo banco mundial, que vem articulada com um novo tipo de trabalhador: polivalente, conhecedor de novas tecnologias, e da robótica. Tudo isso colocado a favor do capitalismo, que, nesse momento histórico aparece via neoliberalismo, onde a imposição mundial é um "Estado Mínimo" movimentado pelo mercado excludente que não mais admite as práticas fordistas ou tayloristas. O atendimento as novas demandas sociais em tempos pós-modernos faz cada vez mais, o capitalismo ampliar sua cultura baseada na sociedade do conhecimento. Aliás, qual é a pedagogia dos Parâmetros Curriculares do MEC para o público noturno? Qual a função da Educação Física neste espaço? Quais são as atividades metodológicas mais indicadas para o professor que trabalha com o curso regular noturno?

A cultura escolarizada não está devidamente articulada ao novo mundo do trabalho, não incorporou ainda as novas práticas tecnológicas e científicas. Discutir esse novo paradigma educacional a partir do ensino noturno nos leva a ver os possíveis caminhos para entender essa cultura excludente, na qual a Educação Física não está isenta . Contrapondo o paradigma a favor da exclusão, vislumbramos a possibilidade de compreender através da pesquisa uma escola cidadã que aposta em caminhos diferentes ao que está posto, capaz de intervir por meio de processos de ensino e aprendizagem um melhor atendimento aos interesses e as necessidades dos sujeitos que trabalham de dia e estudam a noite.

Breve Histórico da Educação Física Noturna: Na primeira revolução industrial brasileira, materializada pelo domínio das máquinas, o trabalho industrial foi sendo substituído aos poucos pelo trabalho agrário. Para isso foi preciso disciplinar e adestrar o trabalhador em unidades de serviços em tempos determinados pela fábrica.

A Educação Física, o Ensino Cívico e os Trabalhos Manuais eram obrigatórios em todos os níveis de escolaridade. E a Educação Física serviu-se de um dos aparelhos ideológicos do Estado para adestrar e disciplinar moralmente o trabalhador.

Já nos anos 70 marcados por uma nova revolução industrial e o aprofundamento da eficiência no trabalho, a Educação Física noturna passa a ser facultativa em lei para quem trabalhasse mais de seis horas, aos alunos maiores de trinta anos de idade, aos alunos que estivessem prestando serviço militar ou o aluno que estivesse com algum problema de ordem médica. Nesses tempos, o paradigma representativo da Educação Física era a esportivização e a aptidão física.

Nos dias de hoje, a revolução tecnológica, marcada pela automação da classe trabalhadora, do cognitariado, da informatização configuram com uma nova ruptura com a Educação Física noturna. Na nossa opinião, a modificação sobressai na dicotomia trabalho intelectual e manual, onde os incluídos no novo sistema produtivo não precisariam mais de práticas corporais no interior da escola. Mais uma vez a Educação Física é considerada como uma disciplina sem importância nesses tempos e trabalhada de forma excludente em tempos pós-modernos.

É nesse sentido que estamos dispostos a nos exercitar, sem a sustentação de uma prática acabada ou de respostas prontas, em um projeto político-pedagógico que atenda os anseios das classes trabalhadoras. Anseios, que refletem: o reconhecimento da política educacional excludente que os angustiam e oprimem; a apropriação do saber corporal e do patrimônio histórico dos temas que essa cultura vem acumulando no processo de humanização.

Um Projeto Político e Pedagógico: A escola noturna encarregada para viver esse projeto pedagógico é pública, localizada na cidade de Angra dos Reis, no bairro periférico da Japuíba, tem como pontos a favor as condições ótimas de trabalho: um prédio escolar novo, com salas ventiladas e limpas, bem iluminadas, os banheiros com chuveiros, espelhos e papel higiênico, laboratórios, uma sala própria para vídeo, uma biblioteca, com uma professora exclusiva para o turno da noite, estandes espalhados pela escola onde mostram as produções de história, literárias e artísticas dos alunos do curso noturno, uma quadra oficial, polivalente e cercada, com refletores potentes ao seu redor e um vasto material para o ensino da Educação Física com bolas de todos os tipos, cordas e aros. 

Além disso, a Secretaria Municipal de Educação promover cursos de capacitação para o professorado, relatos de experiências pedagógicas, congressos municipais e têm um projeto pedagógico exclusivo para ensino regular noturno com fóruns de discussão permanentes. Todos esses projetos político-educacionais penetram como um clima positivo para os professores da rede municipal e são materializados desde 1998 quando o Partido dos Trabalhadores se tornou governo em Angra dos Reis.

A referida escola comporta um contingente de 30% do seu total de alunos, no turno da noite. São homens e mulheres na faixa etária  dos 15 aos 60 anos que confirmam, numa perspectiva observada pela matriz que diz respeito à idade, a impossibilidade de homogenização dos alunos. A sua grande maioria trabalham numa carga horária de 40 horas semanais, alguns constituem o exército dos trabalhadores informais, outros desempregados à procura de trabalho.

Dentro de uma sociedade excludente, um emprego, para o trabalhador nos dias de hoje, representa um privilégio, ainda que as relações empregador e empregado sejam de exploração, alienação e submissão.

É dentro desse panorama social e nesse contexto turbulento que a discussão sobre a implementação de um projeto pedagógico para a Educação Física noturna, se estabelece. Assim, acreditamos que o aluno pode aprender conceitos da área corporal questionando, experimentando, expondo sentimentos, refletindo diante de temas polêmicos, incorporando outras práticas, num processo ensino-aprendizagem que se dá pelos problemas ou temas impressos no cotidiano do aluno.

Nesse sentido, urge a necessidade de considerar a história cultural dos trabalhadores, suas formas de interagir com a cultura escolarizada, suas experiências sociais sobre diferentes práticas corporais, enfim, a sua realidade sócio-histórica dentro e fora da escola.

Como exemplo pedagógico vamos descrever nosso projeto, em uma turma de 5a série do ensino noturno fundamental que inaugurou o projeto a partir de um tema que versa acerca dos seus conhecimentos prévios de Educação Física: "Fale sobre a Educação Física".  Este tema foi abordado na fase inicial do projeto, e o grupo de alunos se confrontou com a seguinte questão levantada pelo professor:  Qual a necessidade para o corpo de alunos, da Educação Física no regular noturno? A turma começou a buscar dentro dos seus conhecimentos prévios as respostas para esta questão. Outro aspecto importante é que os alunos foram ao encontro do professor buscar alguns conteúdos que abordem a questão em pauta. Além disso, constatam a necessidade de utilizar os recursos bibliotecários para solucionarem o problema em questão, um aspecto importante, o qual a turma se prontificou a procurar autonomamente outros mecanismos educacionais na pesquisa que envolve uma disciplina e a sua importância social.

Para nós, o modo pedagógico de abordar essa tarefa inicial, contemplou outros tipos de relações no processo ensino e aprendizagem.  Os elementos constitutivos das aulas representaram para os alunos uma forma diferente de apropriação dos conhecimentos da educação. Os alunos perceberam que uma aula de Educação Física não precisa necessariamente estar vinculada a execução de gestos esportivos ou um ensino submetido a uma linha direta, mas sim em fases em que o conhecimento pode ser construído através do diálogo.

Os alunos foram chegando a conclusão que precisariam conhecer alguns temas do conteúdo da Educação Física como esporte, ginástica e cansaço físico. Esses conceitos, na nossa opinião, fazem parte da disciplina e devem ser apropriados pelos alunos sob a intervenção pedagógica do professor. Assim, fomos os envolvendo em situações práticas que problematizam este tema, desconstruindo estigmas produzidos pelo paradigma da esportivização e da aptidão física, e buscando uma outra vivência conceitual, para que eles mesmos compreendam a realidade macrossocial que nos move.

Em síntese, nessa primeira etapa, os alunos puderam verbalizar seus conhecimentos sobre o tema em pauta e além disso partimos para a intervenção nos saberes de cada um, de acordo com o nível de compreensão real dos sujeitos cognoscentes. Foi oportuno esse passo inicial para também aproximarmos a Educação Física do trabalhador-aluno, e a partir do que ele conhece intervir ousadamente na sua realidade e apreender novo.

Ao refletirmos um projeto político e pedagógico para o ensino noturno, o qual só é possível se a escola respeitar o que os trabalhadores-alunos conhecem, valorizem a sua experiência cotidiana, o patrimônio cultural e histórico que fazem parte e que construíram coletivamente na luta pela sua emancipação. Assim, os trabalhadores-alunos vão reconhecendo a escola cidadã, que não dispensa o ensino e a aprendizagem da cultura escolarizada e sim promove os conteúdos escolares a partir do que ela mesmo detecta daquilo que não se sabe e daquilo que está por vir saber.

- É a melhor aula da escola. Posso conversar, conhecer as pessoas e me divertir. (Simone, 22 anos, caixa de supermercado).

É nas aulas de Educação Física, que acontecem as interações, é o momento em que os alunos e o professor se organizam na quadra ou no pátio para as práticas corporais e para os movimentos com mais liberdade. E é nessa esfera social, que o sujeito pode transgredir a ordem imposta, onde podem se conhecer como sujeitos históricos e se afirmarem como cidadãos produtores de movimentos corporais, viver seu lazer, suas vontades pessoais e coletivas, tornando-se homens e mulheres autônomos no seu processo de criação.

Este é o projeto de Educação Física que estamos desenvolvendo. Um projeto que busca não adestrar e fragmentar o ser humano, mas torná-lo indivisível. Isso na concepção marxiana, é chamada de omnilateralidade, onde nenhuma das dimensões ontológicas do homem e da mulher não podem ser negadas.

Notas:


 O autor é professor da E.M. Cleuza Jordão - Angra dos Reis - RJ
Ver o parágrafo 3o do artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional aprovada no ano de 1997.
Ver o parágrafo 3o do artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional aprovada no ano de 1997.

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