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Introdução

Este trabalho é fruto de uma experiência realizada no município de São Pedro da Aldeia/RJ, em um grupo de alunos especiais, com atenção sobre os deficientes visuais alocados no NESP - Núcleo de Educação Especial-, o qual faz parte do conjunto de escolas que formam a rede municipal de ensino.

Os portadores de deficiência visual utilizam vários subterfúgios para se locomoverem no espaço em que vive. Tais subterfúgios estão ligados ao aparelho auditivo, proprioceptivo, cinestésico, cão-guia e até mesmo a bengala. Comumente, vemos esta locomoção se fazer com maior freqüência a partir do uso da bengala, um recurso barato e eficiente.

Contudo, no que se refere a esta pesquisa, uma questão passou a incomodar: ao realizar caminhadas em solos diferenciados com os deficientes visuais, pudemos observar que os mesmos se comportavam de forma diferenciada com e sem a bengala.

Comungando com tal questão, MOSQUERA (2000, p. 66) faz a seguinte indagação: "de que adianta o aluno treinar a técnica da bengala longa, esboçar alguns movimentos de coordenação e se aventurar a sair pelas ruas da cidade se nunca praticou uma atividade física que exigisse coordenação?".

O uso da bengala - no grupo observado - provoca um movimento de rotação bilateral constante da porção superior do tronco tanto quanto o deficiente visual for dependente dela. Uma referência secundária é o aparelho vestibular, que informa ao indivíduo o tônus postural durante a caminhada.

Numa caminhada induzida com diálogo constante e sem a bengala, o que se percebe é que o aparelho auditivo (des)orienta o deficiente mediante os níveis e distância das vozes dos interlocutores. Neste caso, estamos falando da perda consciente do equilíbrio dinâmico e, que no caso dos deficientes visuais, não é uma ação motora segura. O deslocamento do eixo e do centro gravitacional pelo desequilíbrio provoca uma espécie de escape tangencial durante o movimento. Uma relação equilibrada do eixo, gravidade e equilíbrio para MENDONÇA (2005, p. 84) "permite-nos captar esses escapes no momento preciso, por mais leves que sejam". No caso daqueles que não possuem a função do órgão de maior sensibilidade aos estímulos externos - os olhos-, ajustam-se a partir da ativação de outros mecanismos reguladores da postura, tais como o aparelho vestibular, propriocepção e o cerebelo (MOSQUERA, 2000).

Na verdade, neste caso, a bengala se torna um recurso de prevenção e facilitação à caminhada do deficiente visual e, a base para a sua orientação espacial fica por conta do aparelho auditivo.

Deste modo, emerge uma indagação: como fazer para desenvolver a auto-confiança dos movimentos do deficiente visual tendo em vista um trabalho corpóreo-proprioceptivo preponderante sobre o uso da bengala?

Justificativa

Para entendermos o que é deficiência visual, MOSQUERA (2000,p. 27) diz que " é a perda total ou parcial da visão, necessitando o seu portador, de recursos específicos, método braile, sorobã, bengala e outros, para a alfabetização e a sociabilização".

A todo instante, estamos recebendo estímulos do meio em que vivemos. Tais estímulos são percebidos por estruturas denominadas receptores, variando de classificação de acordo com a função e o local em que se encontra.

De acordo com ACHOUR JÚNIOR (1998), "os receptores das terminações nervosas informam as alterações mecânicas das estruturas músculo-articulares" advindas das inúmeras formas de expressão corporal do ser humano.

O movimento humano é controlado pelo sistema nervoso. Para que este controle seja o mais eficiente possível, receptores existentes em estruturas como músculos, tendões e articulações informam ao Sistema Nervoso Central sobre os estímulos recebidos (via aferente). Lá, processada a informação, há uma resposta (via eferente) de comando que resulta numa ação - neste caso, motora.
Para GUISELINI (2001 apud MENDONÇA, 2005, p. 93):

As informações vindas das diversas partes do corpo são recebidas pelo órgão central, que, por suas vez, interpreta-as devolvendo as respostas adequadas. A falta de experiência corporal (movimentos), porém, pode dificultar tal funcionamento (grifonosso).
Podemos concluir, então, que apesar de o corpo ter um mecanismo de auto-funcionamento, a falta de engramatizações das experiências motoras passadas advindas de atividades físicas contribuem para a não funcionamento pleno das estruturas sensoriais superiores.

Para LEHMKUHL e SMITH (1989 apud COSTA, 2000):

a informação é integrada com aquela que chega de outros órgãos sensoriais, tais como a retina e o aparelho vestibular do ouvido, e estes sinais integrados são usados pelos centros de controle motor do cérebro para ajustar automaticamente a localização , tipo, número e freqüência da ativação da unidade motora, de modo que uma tensão muscular apropriada seja desenvolvida para a realização do movimento desejado. (p. 195)

Notamos então, a partir destes argumentos, que há um constante monitoramento das sensações e movimentos tendo em vista estruturas específicas.

MITCHEL (1983, p. 12) reforça que:

o cérebro possui áreas especiais que comandam funções especializadas, por exemplo, atividade muscular voluntária (área motora), ou recebem informações especializadas, por exemplo, de posição de articulação (área sensorial), comando de equilíbrio e coordenação muscular (cerebelo). (p. 12)

Dessa forma, toda sensação recebida só é distinguida a partir da sua seletividade por uma terminação nervosa constituída especialmente para receber essa sensação. As informações sensoriais percebidas, segundo POWERS e HOWLEY (2000, p. 115), se dá a partir da propriocepção ou cinestesia a partir da qual se realiza "o reconhecimento consciente da posição de certas partes do corpo em relação a outras, assim como da amplitude do movimento dos membros".

Através da nossa visão, a maioria dos estímulos é percebida e uma ação é imediatamente realizada. Matematicamente, segundo MOSQUERA (2000, p. 34), "estes estímulos respondem por 80% das nossas atitudes, o que representa um percentual muito alto, se comparando com os 20% que restam para os outros sentidos e percepções"

No caso dos indivíduos que perderam quase ou totalmente a visão, o aparelho ocular deixa de ser este poderoso centro de percepção através da disfunção ou função mínima dos seus fotorreceptores: cones e bastonetes (GANONG, 1993).

Neste caso, o aparelho vestibular, o cerebelo e os proprioceptores dos deficientes visuais passam a ser os maiores contribuidores para controle da postura.

Durante a marcha, os membros inferiores são os grandes responsáveis pela direção do movimento e controle do equilíbrio, haja vista o trabalho constante dos proprioceptores táteis, articulares e musculares bem como a ação constante da gravidade.

Assim sendo, os receptores destes membros têm poderosa influencia e eficiência sobre a orientação espacial dos deficientes visuais, haja vista os grandes tendões, articulações e grupamentos musculares existentes.

Retornando ao caso do uso da bengala, a realização de quase todas as tarefas impõe aos receptores reguladores da postura a mera condição de executores do comando motor enviados pelo sistema nervoso, já que as sensações percebidas são secundárias, ou seja, não ocorre direto sobre os receptores.

De acordo com GAGEY e WEBER (2000, p. 91), "na posição ortostática, as oscilações posturais produzem estiramentos musculares mínimos que correspondem a um ganho mais importante da resposta dos fusos". Isto quer dizer que as estruturas proprioceptivas que participam do controle da postura conseguem definir com precisão e diferença os estímulos recebidos. Logo, um trabalho neuromotor bastante diversificado e atento a estas condições contribui em muito para que os deficientes visuais desenvolvam uma maior percepção corporal e, sobretudo, confiança e independência e em alguns movimentos.

Retornando a citação acima, reportando ao uso da bengala para a locomoção, ao aplicarmos uma simples atividade de reconhecimento espacial sem aquele recurso, o indivíduo terá toda a atenção do SNC sobre os proprioceptores plantares, sobre o sistema vestibular e estruturas músculo-articulares. Assim sendo, o corpo estará completamente atento às auto-correções uma vez que passa a funcionar nele, todo o seu potencial proprioceptivo.

Além disso, devemos considerar que a desestruturação postural do deficiente visual tem outras causas que devem ser relevantes para análise de aplicação de um trabalho. De acordo com os estudos de CRATTY (1979 apud BURKHARDT;ESCOBAR, 1985, p. 24) sobre os deficientes visuais, podemos compreender que "as anormalidades posturais apresentadas não indicam o desvio que mostrará ao caminhar. A marcha também é influenciada pela angústia, que a torna mais lenta e ocasiona maiores desvios da reta". Isto nos leva a crer que o trabalho a ser realizado deve ser executado de forma descontraída, sem muita exigência, fazendo com que o deficiente visual busque o controle de si da forma mais prazerosa possível. Conversas abertas também ajudam a diminuir tais angústias e canalizar o trabalho para bons resultados.

Segundo o mesmo autor pré-citado:

os cegos de nascença revelam maior falta de discriminação direita-esquerda no seu campo espacial do que os outros que tiveram a visão, porém percebem melhor as inclinações do solo e desviam-se menos do que os que perderam a visão quando maiores. A ajuda auditiva é fundamental para evitar a rotação angular a cada passo; da mesma forma, sem ela não podem executar giros com exatidão.(ibid, p. 24)

Sobre este ponto, na experiência realizada no NESP, fora possível observar na marcha do deficiente visual que na falta da bengala, por ordem de hierarquia de seu movimento, o aparelho vestibular prepondera sobre os demais: o movimento retilíneo monitorado por conversa causa constantes rotações não mais da porção superior do tronco, mas na angulação direcional da marcha. Isto porque o indivíduo busca constantemente, através da audição a relação entre o seu corpo e o seu interlocutor, sob a forma de aproximação; e isto causa tal rotação angular. Este fato nos chama a atenção: como fazer para controlar o equilíbrio e a postura de pessoas com deficiência visual, tomando como base o controle consciente de si? Recorrendo a MENDONÇA (2005, p. 94), conseguimos apontar um caminho para uma possível solução: "ao observarmos um cego caminhando com tanta firmeza e equilíbrio - bem como sua movimentação num contexto global -, podemos constatar que se trata de pura propriocepção".

O período da vida em que ocorreu a deficiência também será de extrema relevância para o entendimento das características do indivíduo e a aplicação de um trabalho eficaz. Quando se diz que em algumas habilidades de movimento, os deficientes visuais de nascença tem superioridade sobre aqueles que perderam a visão mais tarde deve-se ao fato de que engramas sensoriais já instalados pela experimentação visual continuam registrados e em algumas situações, conflitando-se com as necessidades emergentes do uso exclusivo de outros mecanismos puramente sensoriais. Decerto, há relutância e dificuldade em formar novas engramatizações. Por outro lado, para aquele que já nasceu com a deficiência visual é mais fácil pelo fato de ter experimentado e desenvolvido muito mais as habilidades e percepções cinestésico-sensorias mais cedo.

Logo, deve-se incluir num programa para tais deficientes, segundo BURKHARDT e ESCOBAR (1985, p.24) o "treinamento tátil precoce, profundo e sistemático, estruturação do esquema corporal e estruturação espaço-temporal".

Isto nos induz a acreditar que a experimentação do próprio corpo no espaço deve ser o máximo possível. A insistência de um trabalho neuromotor à busca de uma diversidade de experimentação sensorial desenvolve no deficiente visual uma maior estabilidade do tônus postural e consequentemente, uma maior segurança e confiança em seus movimentos.

Considerações finais

O trabalho neuromotor assume uma grande importância para o melhoramento mecânico dos deficientes visuais. Tal trabalho, tendo considerado as peculiaridades individuais de cada ser, pode contribuir consideravelmente para a auto-correção, ajustamento e profilaxia de deformações relacionadas aos padrões posturais errôneos acometidos devido à perda da visão. Certamente, nada é mais gratificante para o deficiente visual, do que se sentir mais a vontade em suas ações motoras diárias.

Obs. O autor, especialista André de Brito Oliveira (profandre.ef@ig.com.br) é professor do Núcleo de Educação Especial - NESP

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