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Uma trajetória acadêmica e profissional em busca de identidade

O interesse por essa temática surgiu a partir da minha trajetória acadêmica e profissional. Durante o curso de Licenciatura em Educação Física na UFRJ, tive a oportunidade de vivenciar diversas experiências em academias, clubes, condomínios e, finalmente, em escolas da rede pública, nas quais realizei o estágio curricular obrigatório, denominado prática de ensino.

Surgiram muitos conflitos de identidade nessa trajetória. De forma cartesiana, a Escola de Educação Física e o Centro de Ciências da Saúde, reproduziam uma visão militarista, funcionalista e fragmentada do ser humano (Freire, 1989), distanciando o corpo das questões que lhe são inerentes - sexualidade, gênero, etnia, classe etc.

Paradoxalmente, a formação pedagógica no Centro de Filosofia e Ciências Humanas, discutia a complexidade e integralidade dos sujeitos, construídos historicamente, a partir das relações sociais que estabelecem ao longo da vida.

Tudo isso, somado à dissociação entre teoria e prática ainda muito presente no campo da Educação Física, gerou inúmeros conflitos nas minhas primeiras experiências profissionais. A tão almejada práxis pedagógica tornou-se um desafio.

Senti uma grande necessidade de ampliar meus horizontes enquanto educadora, o que me levou a continuar os estudos em áreas que possibilitassem essas reflexões. A especialização em Educação em Saúde Pública foi uma oportunidade de aprofundar os estudos sobre a saúde escolar e os fatores que determinam esse processo.

Ao me dar conta que a saúde não é um estado estável e sim um processo multideterminado, não somente pelos fatores biológicos, mas também pelo contexto social, cultural, político e econômico, no qual os sujeitos estão inseridos, comecei a perceber a importância dessa temática ser abordada em sua concepção mais ampla no campo da Educação Física.

Ampliando o conceito de saúde

Os benefícios que a prática regular de atividade física proporciona às pessoas, no que se refere à prevenção de doenças como diabetes, cardiopatias, obesidade e outras, são comprovados cientificamente (Palma, 2000).

Contudo, estabelecer uma relação da Educação Física com a Saúde apenas nessa perspectiva biológica e individualizada seria minimamente reducionista.

O processo saúde-doença reflete as condições de vida das pessoas, pelas oportunidades que elas têm de fazer escolhas e tomar decisões, além do acesso aos serviços essenciais - saúde, educação, assistência social etc.

O conceito ampliado de saúde proposto na VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, ultrapassa a noção de simples ausência de doença e avança na definição de estado de bem-estar físico, mental e social, descritas pela Organização Mundial de Saúde desde 1948 (PCN/Temas Transversais, 1998).

A saúde passa a ser entendida como um processo "resultante das condições de alimentação, habitação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde" (Anais/ VIII Conferência Nacional de Saúde, 1986).

Nesse sentido, não cabe responsabilizar exclusivamente os sujeitos pela sua condição de saúde ou doença, considerando que lhes cabe adotar, individualmente, estilos de vida com práticas de exercícios físicos e alimentação equilibrada.
Vale ressaltar que essas opções são determinadas por um contexto histórico e social, no qual o desenvolvimento da autonomia, da auto-estima e da criticidade são fundamentais para a construção de um processo educativo emancipatório.

A saúde na escola - em busca de uma atuação educativa em saúde problematizadora

Historicamente, a saúde foi abordada no Brasil numa perspectiva higienista e eugenista, até o final do século XIX. Na escola, este assunto foi discutido por muito tempo apenas nas disciplinas que tratam do corpo (Biologia, Educação Física, Higiene etc.), acentuando seu determinismo biológico.

A transmissão bancária de conteúdos, a partir de uma visão preventivista, culpabilizava as pessoas por sua condição de doença, visando a mudança de hábitos e comportamentos individuais, de forma desvinculada da realidade social dos alunos, suas famílias e comunidade (Lencastre, 1992).

Em meados do século XX, outra tendência predominou o espaço escolar, tentando justificar o fracasso da aprendizagem a partir de justificativas biológicas. O baixo rendimento escolar passou a ser considerado resultante de patologias clínicas (médicas, psicológicas etc.), desconsiderando mais uma vez os determinantes sociais que estão envolvidos nesse processo.

A inclusão dos Programas de Saúde na grade curricular das escolas, na década de 80, foi uma tentativa de correlacionar algumas disciplinas das Ciências Sociais e Humanas com as da Saúde (Estudos Sociais, Educação Física e Ciências), buscando-se romper com essa tendência dicotômica, que valorizava os aspectos biológicos em detrimento dos sócio-culturais.

A introdução dos profissionais de saúde na escola proporcionou uma aproximação com os professores, considerada um dos pontos mais positivos dessa tentativa de integração das duas áreas. Ela possibilitou a troca de experiências e reflexões sobre uma mesma realidade - a saúde escolar - a partir de diferentes visões.

No entanto, a desarticulação das Secretarias Estaduais e Municipais de ambas a áreas, a inexistência de investimento, de políticas públicas que favorecessem essa integração e a ausência de subsídios teórico-metodológicos para as equipes de educação e de saúde responsáveis pelos Programas de Saúde, contribuíram para o fracasso desse processo (SMS/GPSE, 1996).

Essa proposta de articulação foi discutida na VIII Conferência Nacional de Saúde, enfatizando a necessidade urgente de capacitação dos profissionais para abordagem dessa temática, numa perspectiva de que o processo saúde-doença dos escolares é resultante do seu contexto de vida.

A Educação em Saúde tornou-se uma área de conhecimento interdisciplinar, intersetorial e multiprofissional, que tem como objetivos prevenir doenças e promover saúde. Adota uma metodologia participativa e uma pedagogia problematizadora, que proporcione a reflexão sobre o conceito ampliado de saúde e os determinantes sociais, políticos, econômicos e culturais do processo saúde-doença. Visa contribuir para o desenvolvimento da autonomia, auto-estima e capacidade crítica dos sujeitos, acerca do papel dos diferentes atores sociais envolvidos nesse processo, em busca da melhoria da qualidade de vida das pessoas, suas famílias e comunidades nas quais estão inseridas.

Essa discussão foi intensificada nos fóruns dos profissionais de educação e de saúde, evidenciando a necessidade urgente de instrumentalização para atuação nessa interface.

Na década de 90, o Ministério da Educação publicou documentos oficiais visando a construção de um referencial curricular para todas as escolas brasileiras. Entre outras recomendações, afirma que as questões sociais deverão ser tratadas na mesma intensidade dos conteúdos convencionais, oferecendo ao educando a oportunidade de refletir sobre diferentes temáticas em sua totalidade e complexidade, de acordo com a realidade local.

Foram integrados ao currículo escolar, os Temas Transversais, selecionados de acordo com a sua relevância social e abrangência nacional, incluindo-se na sua abordagem, o contexto histórico-social vivido no cotidiano das comunidades, famílias, alunos e professores. São eles: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo entre muitos outros que se mostrarem relevantes no contexto de cada escola, devendo ser abordado intersetorial e interdisciplinarmente, de forma contínua, sistemática, abrangente e integrada (PCN/ Introdução, 1998).

O papel do professor no contexto da saúde escolar

O professor tem o papel de "motivador que introduz os problemas presentes, busca informações e materiais de apoio, problematiza e facilita as discussões por meio da formulação de estratégias para o trabalho escolar" (PCN/ Temas Transversais, 1998).

Ele poderá estimular e viabilizar a discussão, reflexão e análise crítica sobre as questões de saúde dos escolares, promovendo a troca de experiências, de opiniões e informações que contribuam para a (des)construção de valores e concepções acerca da qualidade de vida, possibilitando o diálogo, o debate e a integração da escola com a família e a comunidade.

Não se espera do professor que ele se torne um especialista em saúde, mas que seja um articulador desse processo, possibilitando a reflexão crítica de assuntos como violência, DST/aids, drogas, gravidez, acidentes de trânsito, trabalho entre muitos outros considerados prioritários para adolescentes e jovens em idade escolar, segundo o Ministério da Saúde (Temas Transversais, 1998).

A parceria da escola com os serviços de saúde e de assistência social da comunidade será fundamental para a qualidade de vida dos escolares, sendo o professor um dos articuladores nesse processo.

A interseção da educação física com a educação em saúde na escola

Se compreendemos a Educação Física enquanto área de conhecimento que atua na interface das dimensões biológicas, afetivas, cognitivas e sócio-culturais, torna-se fácil estabelecermos a sua relação com a Educação em Saúde.

Contudo, constata-se que, ainda hoje, a relação estabelecida entre a Educação Física e a Saúde está fortemente marcada pelo viés exclusivamente biológico (Palma, 2001).

Na contraposição dos modelos reducionistas adotados por muito tempo nessa área, busca-se garantir no momento, a atuação da Educação Física no desenvolvimento integral do aluno, para além do ensino técnico-mecânico isolado (PCN/ Educação Física, 1998). Nessa perspectiva, o professor de Educação Física deverá assumir sua responsabilidade no processo pedagógico, do qual esteve praticamente isento ao longo da história dessa profissão.

A Educação Física escolar terá um papel fundamental na reflexão sobre a concepção ampliada de saúde, proporcionando aos estudantes a possibilidade de discutir sobre os fatores que estão relacionados ao processo de saúde-doença, relacionando-os à capacidade dos escolares fazerem suas escolhas, tomarem decisões e buscarem o acesso aos serviços essenciais que promovem a qualidade de vida da população.

Essa perspectiva visa desconstruir uma tendência histórica de culpabilizar os indivíduos por sua má performance ou pela sua condição de doença. Tudo isso é determinado pela realidade social na qual os escolares estão inseridos e pelas possibilidades que eles têm de adotar modos de vida mais saudáveis.

Obviamente, a abordagem da educação em saúde na escola não é uma prerrogativa do professor de Educação Física, mas de todos os educadores. Todavia, não podemos negar alguns fatores que contribuem significativamente para que esse profissional se aproxime desta área: a interface da educação e da saúde no próprio processo de formação e sua atuação com diferentes linguagens e formas de expressões corporais, que sem dúvida dinamizam o processo de construção de conhecimento acerca da cultura corporal - que é construída e cultivada na medida que sua vivência é oportunizada.

Enfim, um novo recomeço

Diante dessa trajetória e das suas evidências históricas, insisto na necessidade de incluir na formação acadêmica do professor, inclusive o de Educação Física, a abordagem da Educação em Saúde, a fim de capacitá-lo para lidar com as questões de saúde do escolar em sua complexidade e integralidade.

Acredito que construir junto com o professor as diretrizes teórico-metodológicas para a abordagem da saúde no seu conceito mais amplo, favoreça o seu reconhecimento enquanto ator fundamental nesse processo. Assim, pode ser que esse educador sinta-se mais seguro e competente para tratar dessas questões em sua prática pedagógica.

Obs. A autora, prof. Viviane Vieira de Freitas (vfreitas@sesc.com.br) é do SESC- / Div. de Programas Sociais/ Núcleo de Educação em Saúde

Referência bibliográfica

  • Anais da VIII Conferência Nacional de Saúde. Brasília: MS, 1986.
  • Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Educação Física. Brasília: MEC/SEF, 1998.
  • Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998.
  • Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998.
  • FREIRE, João Batista. Educação de corpo inteiro. São Paulo: Scipione, 1989.
  • LENCASTRE, Eris Focesi. Formação em saúde escolar. A criança em idade escolar. Revista brasileira de saúde escolar,2 (3/4), 2º sem. 1992.
  • PALMA, Alexandre. Atividade física, processo saúde-doença e condições sócio-econômicas: uma revisão da literatura. Revista paulista de Educação Física, vol. 14(1), 97-106, jan.- jun, 2000, São Paulo.
  • PALMA, Alexandre. Educação Física, corpo e saúde: uma reflexão sobre outros modos de olhar. Revista Brasileira de Ciência do Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001.
  • Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. A atenção integral à saúde da criança em idade escolar: uma proposta da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. SMS/GPSE, 1996.