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Não podemos falar do viver em sociedade sem nos referiremos enfaticamente à corporeidade dos seres que vivem nesta sociedade, pois, esta corporeidade, se define no conjunto de vivências sociais, costumes e relações próprios de cada cultura e hábitos relacionados ao cotidiano social.

Porém, em contrapartida a esta questão, observamos que por diversos fatores que discutiremos oportunamente, cada vez mais, vemos nossas crianças sendo limitadas na perspectiva de exploração de suas potencialidades corporais, o que concorre cabalmente para a limitação de suas expectativas e possibilidades.

Quando discute "O corpo na história", José Carlos Rodrigues, ressalta que:

"O eixo fundamental de nosso raciocínio foi insistir sobre o fato de que uma sociedade só encontra existência nos corpos pulsantes dos seres humanos que a constituem: ela é vísceras, nervos, sentidos, neurônios... A história, desta maneira, não se concretiza somente em guerras, decretos, trabalhos, obras, monumentos ou entronizações: materializa-se também - e talvez primordialmente - em perfumes, sons, miragens, memórias, carícias, distâncias, ascos, evitações, esquecimentos... Não há outra concretude social: uma sociedade estará nos corpos de seus membros ou não residirá em parte alguma". (p. 177, 1999)

É através deste homem, ser e agente social inserido no que Rodrigues denomina "História do sensível", que procuraremos observar o corpo da criança como referência na abordagem de suas carências e necessidades, pois este corpo, desde que esteja presente em uma sociedade, e referencial latente de construção e transformação desta realidade histórica.

Não se pode discutir a formação de seres sociais, a construção de sua personalidade, e seu desenvolvimento sem partirmos da formação de seu eu a partir de suas vivências corporais.

Porém, esta utilização do corpo como instrumento relacional e de aprendizagem possibilita o desenvolvimento de símbolos e códigos que suscitam um processo que podemos denominar linguagem corporal.

Para Vayer "As palavras são realidades, antes de se tornarem" expressão dos desejos e instrumentos do pensamento", elas são, de início, o prolongamento do gesto". (p. 21, 1984)

Ao interagir com colegas ou manipular objetos, a criança desenvolve capacidade de construir referenciais de comunicação, pois, quanto maior o número de trocas com o meio, maior o "vocábulo" gestal e por conseguinte as possibilidades de comunicação através da linguagem corporal.

O domínio do meio ao redor da criança, ocorre progressivamente através de movimentos adequados à necessidade imediata.

Assim sendo, segundo Vayer: "... A criança toma consciência, trava conhecimento e adquire progressivamente o domínio dos elementos que constituem o mundo dos objetos, graças a seus deslocamentos e à coordenação de seus movimentos, isto é, graças a um uso cada vez mais diferenciado e cada vez mais preciso do próprio corpo". (p. 21, 1984)

Um importante fator que não podemos negligenciar está diretamente ligado ao caráter essencialmente afetivo que caracteriza a atividade corporal nos primeiros anos de vida, e que, torna-se referência incontestável como elemento de transmissão de conhecimentos na educação infantil ou pré-escola.

O gestual, o brincar, o fazer movimentos, o dançar, estão vinculados a uma possibilidade direta de motivação na escola, nestas primeiras séries da educação infantil e a exploração desta forma de linguagem é estratégia de ensino e exemplo de trabalho pedagógico.

Carmo Júnior, classifica estas duas realidades como o sagrado e o profano, onde o ato motor espontâneo e criativo seria o profano e a passividade e tédio das salas de aula, o sagrado.

Desta forma o autor observa que: "O ato criativo, no sentido fenomenológico (no mundo da vida) está representado pelo instante lúdico extremamente profanador, violador, influente e que contém um movimento incessante". (p. 19, 1995)

Poderíamos então ressaltar que um dos principais objetivos da educação infantil, esta no fato de que o ato criativo presente, por exemplo no brincar favorece a formação de, sujeitos críticos e questionadores, fatores imprescindíveis para a formação de agentes sociais coerentes, que denominamos "cidadãos".

O corpo da criança é a ferramenta pela qual a criança interage com o mundo e o brincar é a estratégia mais usada e preterida para trocar experiências com o meio, vivenciando situações e estabelecendo contatos que a aproximem cada vez mais do viver em sociedade. Através dos movimentos, a criança faz uso de uma linguagem inicial que tem valor insubstituível em suas primeiras relações com o mundo, que ajudam a construir sua personalidade, porém é negligencialmente substituída ou abandonada em prol da linguagem escrita que também possui fundamental importância, mas não pode ser priorizada como forma única e insubstituível de conhecer e interagir com o mundo.

A esta subestimação do gesto em detrimento da escrita, a escola dirige seus esforços, rompendo uma rotina criada na educação infantil pela praticidade, levando a criança a um bem estar e prazer gerado por estímulos diversos e deixando-a a mercê de uma nova realidade dura e fria que corresponde às carteiras enfileiradas em frente a um quadro negro.

Ao prazer gerado a partir da descoberta da linguagem corporal, Carmo Júnior analisa que:

"Com a descoberta da linguagem, a criança encontra sua humanidade, autêntica, física e direta. É o primeiro esplendor da vontade viva e vigorosa, métrica e poética. Neste sentido, o corpo biológicamente instituído no mundo se oferece à primeira dança da vida. No verdadeiro sentido da representação, todo ser é artista e todo ato faz sentido. Eis uma noção da subjetividade corporal, quando se manifesta nos códigos do gesto humano, o jogo humano da palavra com as coisas". (p. 19, 1995)

A linguagem presente no gesto, nos movimentos simples ou complexos permite à criança ser e estar no mundo e é um mundo que se movimenta, que gesticula, que faz com que cada criança procure formas de imitá-lo para aprender a viver.

Quando negamos à criança expressar-se através de movimento, quebramos uma corrente começa em suas primeiras experiências vivenciadas e forçamos um retrocesso em um aprendizado progressivo e latente.

Para Nicolau esta perda de continuidade é apresentada da seguinte forma: "Outro fator que exerce uma enorme influência sobre o desenvolvimento infantil é a descontinuidade entre os valores da criança, a sua forma de viver e de se comunicar e aqueles trabalhos na escola". (p. 76, 1986)

A liberdade de ir e vir, a possibilidade de criticar, contestar, transformar, conceitos estruturais da cidadania, só podem ser praticados se desde cedo, a criança é estimulada e respeitada em suas experiências de vida.
É inadmissível que em pleno século XXI, a educação se parte em muitas instituições como observado em Foucault no controle da atividade.

Ao discutir o corpo em sua correlação com o gesto. Foucault apresenta:

"O controle disciplinar não consiste simplesmente em ensinar ou impor uma série de gestos definidos; Impõe a melhor relação entre o gesto e a atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e rapidez. No bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido. Um corpo bem disciplinado forma o contexto de realização do mínimo gesto. Uma boa caligrafia, por exemplo, supõe uma ginástica - uma rotina cujo rigorosa código abrange o corpo por inteiro, da ponta do pé à extremidade do indicador". (p. 130, 1987)

Sabemos que esta postura disciplinadora é reprovada nos diferentes níveis de nosso sistema de ensino, porém é facilmente observável a ruptura existente na utilização de atividades lúdicas entre a pré-escola e o 1º ciclo do ensino fundamental, fator preponderante nas questões que envolvem a formação da personalidade de nossas crianças como discutimos anteriormente.

Referências bibliográficas

  •  Foucalt, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
  • Freitas, Maria Tereza de A. (Org.). Vigotski um Século Depois. Juiz de Fora: EEDUFF, 1998.
  • Junior, Wilson do Carmo. A Brincadeira de corpo e alma numa escola sem fim: reflexões sobre o belo e o lúdico no ato de aprender. São Paulo: Revista Motriz. Vol. 1, nº1, p. 15- 24, junho/1995.
  • Leontiev, A . N. Linguagem, Desenvolvimento e Aprendizagem. São Paulo: Ícone/Editora da USP, 1988.
  • Oliveira, Alexandre Augusto Cruz de. A Utilização dos jogos e brincadeiras infantis nas aulas de educação física. UFF/ CEG/ DEFD. Niterói, 1999.
  • Pozo, Juan Ignacio. Teorias Cognitivas da aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
  • Rego, Teresa Cristina. Vigotsky: Uma perspectiva histórico-cultural da educação. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
  • Rodrigues, José Carlos. O Corpo na História. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.
  • Vayer, Pierre. Psicologia Atual e da Educação. Rio de Janeiro: Manoel Dois, 1986.
  • Vygotsky, Lev Semenovich. A Formação Social da Mente. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora, 1984.