A Morte do Trabalho e o nascimento do cinismo
Integra
Era sexta-feira à noite. No sofá da sala, a TV mostrava um trabalhador entregador contando sua história no Globo Repórter. A legenda o apresentava como “empreendedor”. Ele, cansado, sorria para a câmera. Dizia que trabalhava por conta própria, era seu próprio chefe. Mais uma história de superação, diziam.
Mas há algo incômodo nesse enredo. Quando um trabalhador é chamado de “empreendedor” no horário nobre, o que vemos não é só o retrato de uma conquista pessoal. É também o reflexo de uma disputa ideológica: o apagamento da cena da palavra “exploração”. Porque, se todo mundo é empreendedor, quem seria o patrão?
O rapper Mano Brown costuma dizer que, na quebrada, desde sempre o sonho do trabalhador foi não ter patrão. Quando era menino, já ouvia isso. Sair do registro da carteira, o CLT, abrir o próprio negócio, ter a ilusão da liberdade. No fundo, um desejo legítimo: negar o patrão. Mas negar o patrão não significa conquistar a autonomia para o trabalho.
Num episódio do Mano a Mano, Brown conversou com Jonas Manuel e Wilson Barbosa sobre isso. Jonas lembrou que as classes dominantes passaram o século XX inteiro tentando desarticular os trabalhadores enquanto classe. O ataque foi direto, mas também simbólico. Transformaram o operário em “empreendedor de si mesmo”. Assim, a luta de classes se desfaz no discurso da oportunidade e do mérito.
O problema é que essa tal autonomia tem limite. O entregador que abre o próprio negócio não controla os meios de produção. Ele não manda nos aplicativos, nem nos algoritmos que ditam o ritmo da vida. No máximo, troca o patrão de carne e osso por um patrão invisível, hospedado em nuvem, com sede no Vale do Silício.
E há um detalhe que ninguém conta: o mundo não é um terreno livre pra empreender. O imperialismo, desde o início do século passado, tratou de construir seus cercados. Os Estados Unidos e a Europa Central montaram seus oligopólios e organizaram as regras do jogo. Controlam a tecnologia, a indústria, as cadeias logísticas e até a comunicação. Como empreender além desses muros? O pequeno negócio não consegue furar o bloqueio dos monopólios. No máximo, sobrevive entre as brechas.
No fim das contas, vendem a morte do trabalho como se fosse liberdade. Mas é só mais uma maneira de precarizar a vida e disfarçar a dependência. Ricardo Antunes, professor da Unicamp lembra que a uberização é um conceito que trata do processo de individualização e invisibilização das relações de trabalho, que assumem a aparência de “prestação de serviços”
Na tela da TV, o trabalhador sorria cansado. Do outro lado da câmera, o patrão — seja ele qual for — continuava invisível.
Professor Alexandre Machado Rosa