Apresentação Motricidades (v. 2, N. 2)
Por José Paulino Castiano (Autor).
Resumo
As Epistemologias do Sul, desenvolvidas por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses, são mais do que uma “proposta teórica”. Para mim são, sobretudo, um novo paradigma de compreensão e de articulação (ou coordenação) da ação no mundo que se engaja abertamente em favor de uma parte bem identificada da humanidade: aquela que historicamente foi e ainda é periferizada como negros, povos e comunidades indígenas, mulheres, pobres, sem-terras... – quer se encontrem no Norte, quer se encontrem no Sul geográficos. Mais concretamente, este paradigma de teorização e de ação se assenta em três “orientações”: 1ª- aprender que existe o Sul, 2ª- aprender a ir para o Sul e 3ª- aprender a partir do Sul e com o Sul.
Creio que o presente número da Motricidades se situa na última “orientação”, embora, no seu fundamento último, todas estejam subjacentes. Todavia, apesar do seu fundamento estar alicerçado no amplo conjunto temático que as Epistemologias do Sul têm proposto desde a sua existência, há um tema que é tratado a partir desta última dimensão de “orientações” (aprender a partir do Sul e com o Sul) e que percorre todos os artigos. Trata-se do tema interculturalidade ao qual eu acrescento o adjetivo crítica, por razões que a seguir apresento.
O maior destaque que posso dar às autoras e aos autores é o de terem conseguido extrair das Epistemologias do Sul esta interculturalidade à qual identifico como crítica. A “crítica” que aqui se refere exerce-se a partir dos domínios da epistemologia (crítica ao epistemicídio) e do poder (crítica ao capitalismo neoliberal, ao patriarcalismo e às políticas que perpetuam as desigualdades de gênero e étnico-raciais), partindo, ambas, das questões levantadas por toda uma produção teórica no quadro das Epistemologias do Sul. A educação (escola e universidade) ganha uma centralidade particular para a prática transformadora que resulta do caráter engajado das próprias Epistemologias do Sul. Pois, a escola e a universidade prefiguram-se como centros da crítica teórica e, ao mesmo tempo e, sobretudo, como campos privilegiados para a ação “contra-hegemônica” das Epistemologias do Sul, cujo fim libertador é a afirmação de saberes marginalizados e a articulação da ação dos diversos sujeitos periferizados e vitimizados na história.
De que se ocupa(ria) a interculturalidade crítica, sobretudo quando vista sob o olhar atento das Epistemologias do Sul? A meu ver, encontramos nos artigos sugestões temáticas, das quais sugiro extrairmos, transversalmente, as seguintes:
Em primeiro lugar a recusa de esconder as relações de poder por trás da noção “cultura”, palavra-raiz da interculturalidade. Pois, como escrevem as autoras Denise A. Corrêa e Fernanda Z. Arthuso no artigo “Educação intercultural indígena: reflexões no contexto escolar Terena da aldeia Ekeruá”: Em uma perspectiva crítica, o discurso intercultural, assumido como o diálogo entre culturas, baseado no respeito e reconhecimento de suas diferenças, é, em suma um discurso ingênuo que omite os conflitos, as relações desiguais de poder... Este é apenas um exemplo de como, ao longo deste número da Motricidades, se evita um relativismo cultural, de certo modo ingênuo, segundo o qual ou todas as culturas são “boas”; ou uma cultura é “boa” e outra, por definição e devido à sua historicidade dominante, é “má”. Por seu termo, o artigo “Quando o colono é negro: educação e práticas sociais de reprodução do racismo em Angola” de Alberto K. Nguluve mostra bem esta postura “crítica” da interculturalidade. Ou seja, não se apresenta uma interculturalidade sem a conflitualidade interna inerente a todas as culturas. Por exemplo, no interior dos movimentos da mulher negra revelam-se diferenciações estruturais baseadas no poder (pertença de classe, status, profissão etc.) que são expostas na sua conflituosidade.
Em segundo lugar, a interculturalidade crítica é reconhecível pelo tema de denúncia sistemática da colonização do pensamento do outro que levara, em última instância, ao epistemicídio. Vejamos o seguinte exemplo de denúncia no artigo “Educação e primeiros letramentos no Brasil: redução cultural indígena” de Guilherme L. Cardozo: [...] a invenção de uma língua escrita para as línguas indígenas [...] não significou em nenhum momento prestígio aos aspectos da cultura nativa, mas uma estratégia para dirimir diversidades, padronizando o colonizado. O que a Arte de Gramática fez foi estabelecer a essa língua fabricada, denominada Língua-Geral pelos jesuítas, uma sintaxe portuguesa, a fim de adaptar essa nova língua ao seu iminente extermínio. A Língua-Geral é criada para reduzir as diversidades linguísticas e, posteriormente, ser legada ao esquecimento. Este aspecto de denúncia ao sistema de colonização por via do “encobrimento” das culturas do Outro, e, sobretudo de suas epistemologias, como Enrique Dussel classifica, está mais pronunciado no ensaio de Saskya M. Lopes, “Interseccionalidade de raça e gênero nas escolas brasileiras e os projetos de lei silenciadores”, assim como no artigo de Aline S. Denzin e Luiz Gonçalves Junior, “Africanidades para e na educação das relações étnico-raciais”, apesar de também patente em todos os artigos que compõem o número da Motricidades. Outra característica importante é que o epistemicídio se atualiza, não ficando refém do passado colonial. O focus de vários artigos aqui contidos na denúncia da condição neoliberal do epistemicídio mostra esta atualização, mas, sobretudo, a sua direção para uma ação transformadora, como torna explícito o artigo “Pós-colonialismo, relações étnico-raciais e universidade” de Luciane R. D. Gonçalves e Cairo M. I. Katrib ao escrevem que: As Epistemologias do Sul, por emergirem em outras dimensões espaciais e temporais, mostram-se como conhecimentos científicos capazes de resistir, questionar e desconstruir o paradigma hegemônico. Desse modo, contribuem para denunciar supressões e, ao mesmo tempo, valorizar saberes que resistem ao processo homogeneizador.
Alicerçada de perto pelas Epistemologias do Sul, em terceiro plano, a interculturalidade crítica encontra a sugestão de se opor transversalmente (talvez até melhor transculturalmente) ao patriarcalismo. Este anti-patriarcalismo pode atestar-se no ensaio de Saskya M. Lopes. Neste aspecto, a interculturalidade crítica não somente exerce crítica como contribui para, até certo ponto, apresentar uma nova cultura, mais humanista, universalista.
A denúncia às desigualdades baseadas em características étnico-raciais constitui outra proposta temática do programa crítico na perspectiva da interculturalidade crítica. Pela sua própria história de escravidão e pela situação atual, este tema parece ser específico do Brasil. Porém, neste número da Motricidades, está inserido um artigo inovador na análise das questões raciais em contexto dos países africanos de expressão oficial portuguesa. Trata-se do artigo de Alberto K. Nguluve que escreve o seguinte, dando o exemplo de Angola: [...] o racismo é, ainda hoje, um fenômeno complexo que remete não apenas às questões sobre a humilhação ou discriminação da pessoa a partir dos diferentes conceitos (raça, cor da pele e cultura) e status sociais hierarquicamente construídos. A partir dele se constrói e reproduz o discurso que contribui para consolidar formas e processos que dão voz à exclusão ou à inclusão social. O racismo, na sua versão localizada nas ex-colônias portuguesas, é pouco estudado pelos cientistas sociais, pois, muitos encaram como “um problema brasileiro” que não nos diz respeito ou numa atitude de “não queremos importar problemas”. Por isso, este texto é, de certa forma, corajoso, principalmente ao levantar este outro aspecto particular étnico-racial: baseando-se em Víctor Kajibanga, denuncia-se a “crise da racionalidade lusotropicalista e do paradigma da crioulidade” defendendo que a figura do mestiço é uma tentativa de perenidade cultural portuguesa, e [...] um discurso que mascara o racismo colonial na medida em que exalta o crioulo como fruto da “boa relação” entre brancos e negros e não a condição de “abuso sexual e violência”, processo do qual resultariam os crioulos.
Por último, gostaria de destacar uma característica peculiar da interculturalidade crítica. Trata-se do reconhecimento da educação (escola e universidade), por um lado, como o campo de batalhas de epistemologias e, por outro e exatamente por isso, ela é tomada como o campo privilegiado para a sua ação transformadora. Vejam-se os exemplos trazidos neste número da Motricidades, nomeadamente o da Escola em Ekeruá e o estabelecimento da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS). Denise A. Corrêa e Fernanda Z. Arthuso escrevem sobre a educação indígena, tomando como seu exemplo a Escola na Aldeia Ekeruá: É preciso nos voltarmos ao que nos ensinou a convivência na comunidade Ekeruá: aprender a fazer da escola um lugar de partilha; de não fragmentação dos tempos e espaços; de aprender mais do que ensinar; de ouvir mais do que falar e de não termos medo de compartilhar nossos saberes e ignorâncias, enfim, estarmos abertos ao diálogo do encontro olho no olho e receber do outro o que ele pode nos oferecer. E sobre a UPMS escreve Boaventura Monjane no ensaio “Lições da Universidade Popular dos Movimentos Sociais na África Austral: terra, luta e emancipação”: (tem como objetivo) proporcionar a auto-educação dos activistas e dirigentes dos movimentos sociais, bem como dos cientistas sociais, dos investigadores e artistas empenhados na transformação social progressista. Torna-se evidente que a UPMS é, antes de mais, um campo de coordenação da ação solidária entre os – por que não chamar Marx, Freire e Fanon juntos? – proletários, oprimidos e condenados da Terra.
Resumindo, vejo três valores neste número da Motricidades. Primeiro, por dar continuidade a um diálogo Sul-Sul muito específico, entre os países de língua oficial portuguesa; oxalá mais trabalho conjuntos em outras áreas sigam. Segundo, por entender que abre, ou melhor, sugere temáticas para uma dimensão específica das Epistemologias do Sul: a interculturalidade crítica; esta é a contribuição particular sobre a qual argumentei. E terceiro, embora não menos importante para um trabalho de investigação, por ser um número orientado por “pensamento engajado” de todos/as autores e autoras.
Maputo, Moçambique, julho de 2018.