Integra

1. Origem, objetivo e metodologia do estudo

 O presente estudo originou-se na perspectiva da problematização encontrada no sentido da aproximação de corpos teóricos para a intervenção pedagógica da educação física (SOBRAL, 1992; BRACHT, 1993; KOKOBUN, In: FERREIRA NETO, GOELLNER, BRACHT, 1995; GAMBOA, 1994), sobretudo no que diz respeito à biomecânica, que mantém incursões presas ao estatuto da física clássica, bem como ao esporte de rendimento, por conta de sua evolução histórica orientada pelos campos hegemônicos da ciência e da educação física (VILELA JUNIOR, 1996; SILVA, NOZAKI, 1996).

 Uma vez apontados e avaliados os aspectos epistemológicos que têm impedido a aproximação da biomecânica para o subsídio da prática pedagógica em educação física, os esforços têm se voltado à superação do atual estágio, entendendo que este último faz-se presente por conta das ações concretas humanas e não por um estado metafísico, sendo assim necessários estudos que contextualizem a biomecânica nos cursos de formação de professores (NOZAKI, 1997), bem como outros que avaliem a possibilidade de elaboração deste corpo de conhecimento para a utilização dos professores na escola, junto ao paradigma da Cultura Corporal, que possui em seu bojo formulações para um projeto emancipatório da civilização humana (COLETIVO DE AUTORES, 1992).

 Desta forma, este estudo tem por objetivo apresentar uma classificação biomecânica dos movimentos corporais, que pretende servir como instrumento para análises qualitativas, na intenção de facilitar a observação dos movimentos dentro da aula de educação física, no âmbito da prática de intervenção pedagógica escolar.

  Esta classificação foi elaborada a partir de uma experiência pedagógica na disciplina Tópicos Especiais em Desportos com ênfase em Aspectos Didáticos da Técnica Esportiva, ministrada no segundo semestre do ano letivo de 1998, no curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal de Juiz de Fora, de onde, a partir da discussão de várias técnicas esportivas, foi sistematizada uma classificação biomecânica dos movimentos corporais, que serviu para analisar algumas aulas de modalidades esportivas elaboradas por alunos daquela disciplina.

2. Classificação biomecânica do movimento corporal para análise qualitativa

  Levando-se em conta que as formas de análises qualitativas propostas por autores do campo da biomecânica e cinesiologia (RASCH, BURKE, 1977; HAY, REID, 1985; HALL, 1993) não partem do objetivo de instrumentalização pedagógica para o professor de educação física, mas sobretudo da intenção de aprofundamento e decomposição dos fundamentos mecânicos/cinesiológicos envolvidos em cada tarefa motora, o objetivo central desta classificação foi revelar os fundamentos biomecânicos envolvidos em cada modalidade, sintetizando-os em um sistema de categorização que possibilite a análise qualitativa da técnica de um modo mais amplo, e não apenas presa a um determinado esporte ou gesto motor.

 Para o mapeamento dos conceitos biomecânicos existentes nos fundamentos técnico-esportivos, foram escolhidas pelos alunos da referida disciplina as modalidades de atletismo, basquetebol, voleibol, handebol, tênis, ginástica artística e natação, bem como a capoeira. A partir deste mapeamento inicial, elaborou-se uma classificação biomecânica dos movimentos corporais (Quadro 1).

 Esta classificação contou com quatro categorias básicas, o deslocamento, o equilíbrio, a projeção e a recepção, de onde supõe-se enquadrar os fundamentos técnicos de um modo geral. A dificuldade era criar um sistema que conseguisse agremiar e ao mesmo tempo separar fundamentos técnicos diferenciados quanto ao seu objetivo, condicionados pela sua natureza esportiva.

 Assim, uma diferenciação inicial encontrada nos deslocamentos e projeções do tipo salto, seria quanto ao objetivo desses dois fundamentos, que podem ser do corpo em relação ao espaço, em modalidades em que o deslocamento final é contabilizado (corrida de 100 metros, salto em distância/altura, nado crawl), ou ainda do movimento para a execução técnica (drible do basquetebol, cortada do voleibol, corrida de aproximação para o salto em altura). Desta forma, a categoria do Deslocamento foi dividida quanto ao seu objetivo (deslocamento do corpo em relação ao espaço e deslocamento para a execução técnica), e quanto ao fluido em que é executado o movimento (ar e água).

 Na tensão ao deslocamento, teríamos o grupo do Equilíbrio. Contudo, nem todo equilíbrio tem por objetivo manter-se sem movimento, pois existe o equilíbrio instável (HAY, 1981), onde a intenção é deixar o corpo predisposto ao movimento. Portanto, neste grupo, a divisão estaria quanto ao objetivo, manter o equilíbrio aumentando a estabilidade, como por exemplo nas lutas, na trave da ginástica artística. Ou, ao contrário, o objetivo é predispor o corpo para perder o equilíbrio, como no mergulho da natação, ou na posição de largada da corrida de 100 metros no atletismo. Ainda neste grupo, a divisão já comentada a partir do fluido pode ser observada por exemplo com a flutuação na natação, se considerada uma forma de anular as forças e manter-se em equilíbrio.

 O grupo da projeção possui o maior número de divisões categóricas. Inicialmente é necessário diferenciar o tipo de projétil, que pode ser o humano, no caso já comentado dos saltos, ou algum implemento, como bola, dardo, disco. Uma vez já apresentada a diferença de objetivos dos projéteis humanos, conhecidos como saltos, que equivalem aos do deslocamento, quanto à projeção de implementos, poderíamos elaborar três categorias. Inicialmente, em relação ao objetivo, separamos os lançamentos e arremessos das rebatidas, pela diferenças mecânicas que estas possuem ao reter maior ou menor contato com o implemento antes de sua projeção. Já quanto à trajetória articular, vemos a presença de movimento linear (arremesso de peso do atletismo, toque do voleibol, passe de peito do basquetebol) e do movimento angular (lançamento de dardo do atletismo, passe longo do handebol). Por fim, quanto ao deslocamento corpo/espaço, podemos perceber fundamentos efetuados com o corpo parado (saque de tênis) e outros em movimento (cortada do voleibol).

 O grupo da recepção só existe em modalidades esportivas que utilizam-se da projeção de implementos (basquetebol, handebol), sendo considerada apenas recepção mecânica quando da retenção destes últimos. Portanto, apesar de modalidades do tipo voleibol trazerem o nome de recepção como um de seus fundamentos, não são considerados aqui neste grupo fundamentos tais como a manchete e o toque, por não reterem o implemento junto ao corpo. Aqui a divisão existente remontam a dois aspectos. O primeiro é quanto ao deslocamento corpo/espaço, que pode ser efetuado parado (pegada do beisebol), ou em movimento (recepção do basquetebol). O segundo é quanto ao movimento articular, que pode ser feito com ou sem amortecimento.

3. Considerações e perspectivas futuras

 O presente estudo é um resultado preliminar das análises das técnicas esportivas, objeto de discussão da referida disciplina. Os alunos desta última utilizaram-se da classificação proposta para a elaboração de aulas de ensino das diversas técnicas das modalidades esportivas. Inicialmente pode-se dizer que, apesar da classificação apresentada não trabalhar com categorias mutuamente excludentes, mostou-se bastante satisfatória para enquadrar os diversos movimentos estudados.

 Percebemos que em um único fundamento esportivo, como por exemplo a bandeja do basquetebol, existem várias categorias em destaque (deslocamento para a execução técnica, projeção humana para a execução técnica, arremesso de implemento com movimento, equilíbrio na aterrissagem). Isto nos mostra que para o professor ensinar este movimento, deve compreendê-lo em toda sua extensão, percebendo suas fases e a íntima correlação entre elas. Este parece ser um dado interessante para o tratamento didático.

 É importante lembrar que este estudo originou-se da análise de gestos esportivos. Contudo, foram discutidas na disciplina movimentos básicos do tipo lançamento, arremesso (NOZAKI, 1996) que em nossa percepção formam importantes elementos para a educação física. Consideramos que os conteúdos da Cultura Corporal estão longe de se limitar apenas aos esportes, mas também nas lutas, nos jogos, na ginástica, brincadeiras, assim por diante.

 O próximo passo no sentido de aproximar as formulações da biomecânica na perspectiva da Cultura Corporal, será uma disciplina de nome Biomecânica para a Educação Física Escolar. Nesta disciplina, a intenção será, a partir da classificação criada, aprofundar nos fundamentos mecânicos de cada categoria, para montar uma disciplina que possa discutir movimentos básicos tais como corridas, saltos, equilíbrio, relacionando-os com os conteúdos da biomecânica. Desta feita, a intenção será analisar aspectos técnicos das aulas de educação física, avaliando a importância da garantia da técnica mesmo na orientação de um projeto pedagógico que se oponha diametralmente ao tecnicismo.

Notas:

O autor é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora

Referências bibliográficas

.Bracht, valter. Educação Física/Ciências do Esporte: que ciência é essa? Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Maringá, v.14, n.3, p.111-118, mai., 1993.

.Coletivo de Autores. Metodologia do ensino em Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.

.Gamboa, Silvio Sánchez. Pesquisa em Educação Física: as inter-relações necessárias. Motrivência. ano 5, no 5,6,7, p.34-46, dez, 1994.

.Hay, James G. Biomecânica das técnicas desportivas. 2 ed. Rio de Janeiro: Interamericana, 1981.

_____________, Reid, J. Gavin. As bases anatômicas e mecânicas do movimento humano. Rio de Janeiro: Prentice Hall do Brasil, 1985.

.Hall, Susan J. Biomecânica básica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993.

Kokobun, Eduardo. Negação do caráter filosófico-científico da educação física: reflexões a partir da biologia do exercício. In: Ferreira Neto, Amarílio, GOELLNER, Silvana Vilodre, BRACHT, Valter (org). As Ciências do esporte no Brasil. Campinas: Autores Associados, 1995.

.Nozaki, Hajime Takeuchi. Arremessando e lançando nas aulas de educação física: um plano com a presença da biomecânica. In: I Encontro Fluminense de Educação Física Escolar, 1996, Niterói. Anais... Niterói: DEFD/UFF, 1996, 135p. p.54-59.

_____________ Biomecânica e educação física: do seu quadro de relações a uma possível contextualização. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UERJ, 1997.

.Rasch, Philip J., Burk, Roger B. Cinesiologia e anatomia aplicada. Rio de Janeiro: Guanabara/Koogan, 1977.

.Sobral, Francisco. Problemas da investigação científica em ciências do desporto: teses e propostas de orientação. Revista da Educação Física/UEM. Maringá, v.3, n.1, p.57-61, 1992.

.Silva, Rejane Valvano Correa da. Nozaki, Hajime Takeuchi. Para gostar de ler... biomecânica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Florianópolis, v.18, n.1, p.27-33, set, 1996.

.Vilela Júnior, Guanis. Aspectos históricos da biomecânica na educação física brasileira. Dissertação de Mestrado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1996.