Resumo

Resumo: A biomecânica como possível corpo de conhecimento para a educação física estabeleceu-se na década de 80 (BATISTA, 1989; NASSER, In: NETO, GOELLNER, BRACHT, 1995), recebendo atualmente críticas no que diz respeito ao ocasionamento de um deslocamento epistemológico devido à dificuldade de aproximações no âmbito da educação física (BRACHT,1993; NOZAKI, 1996). No contexto escolar, encontra-se uma dificuldade de aplicação dos conceitos biomecânicos devido ao seu tratamento que prioriza a física clássica e os exemplos do esporte de rendimento. Assim, o objetivo desse estudo é a formulação de aproximações teóricas que diz respeito à aplicabilidade da biomecânica para a aula de Educação Física. Como etapa inicial foram desenvolvidos os conceitos de movimento linear e angular do membro superior para as projeções de implementos, ressaltando as suas diferenças biomecânicas e a nível de finalidade (ganho de velocidade, força e precisão). Em uma segunda etapa foi elaborado um modelo teórico de aula de Educação Física para o primeiro segmento (1a a 4a série), que buscou tratar a diferenciação desses dois padrões de movimento, incentivando a descoberta e soluções de situações onde cada movimento seria melhor utilizado (TAFFAREL, 1985). O estudo apontou elementos concretos para se pensar a aplicabilidade da biomecânica na aula de Educação Física e o afastamento do caráter empírico da didática, apesar da clara certeza de que a biomecânica é insuficiente para compor os elementos didáticos dentro de uma perspectiva da cultura corporal (COLETIVO DE AUTORES, 1992). Estima-se a necessidade de aplicação desse estudo em uma situação real de aula, envolvendo o público selecionado, no intuito de avaliar sua real viabilidade.

Integra

A dificuldade da biomecânica em oferecer subsídios para o professor da escola

A biomecânica como possível corpo de conhecimento para a educação física estabeleceu-se na década de 80 (BATISTA, 1989; NASSER, In: NETO, GOELLNER, BRACHT, 1995), recebendo atualmente críticas no que se refere à tensão epistemológica com a influência (ou deslocamento) que ela desfere à educação física e à dificuldade de aproximações teóricas entre essas duas áreas (BRACHT,1993; NOZAKI, 1996). A pequena incursão da biomecânica pode ser explicada à luz de sua formação histórica, uma vez que foi implementada na educação física em um contexto de desportivização, onde o alto rendimento foi tomado como paradigma (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1991). Desta feita, a biomecânica não contempla a Educação Física ministrada nas escolas, seja em suas pesquisas, seja em suas abordagens didáticas (aqui entendidas como livros-texto).

Nos livros didáticos encontramos duas dificuldades para a aproximação do contexto escolar. A primeira, de caráter geral, é a priorização de formação de conceitos físicos, em detrimento de sua utilização na educação física, que pode ser evidenciada tanto a partir do tratamento do corpo rígido como objeto da biomecânica, como por meio da linguagem matematizante utilizada na explicação dos conceitos, e cobrada nos exercícios de fixação. Essa característica é de natureza geral por se tratar de um impedimento não só em relação à formulação teórica para o contexto escolar, como para qualquer forma que exista o movimento humano, enfim biológico.

Assim, quando autores tais como James Hay (1981), James Hay e J. Gavin Reid (1982) e Susan Hall (1993) abordam os conteúdos da cinemática (subdivisão da mecânica), parecem estar preocupados muito mais em apresentar os conceitos físicos, do que discutir a sua possibilidade no âmbito da educação física. Por exemplo, quando abordam os projéteis (corpos lançados ao ar, sem propulsão própria), detêm-se prioritariamente em discutir os fatores físicos que influenciam a queda e o alcance (horizontal ou vertical) dos mesmos. No entanto, consideram como projéteis, além do corpo humano em situação por exemplo de salto, os corpos rígidos tais como bola, disco, dardo, implementos de uma forma geral. Neste momento existe uma descaracterização do objeto da biomecânica. Vale lembrar que no caso dos implementos, mais do que estudá-los enquanto projéteis, a prioridade deveria estar no movimento efetuado, no nosso caso pelo aluno, para a consecução do lançamento.

Por fim, a segunda dificuldade encontrada para a aproximação da biomecânica ao contexto escolar diz respeito à eleição do esporte (geralmente de rendimento) como objeto da educação física, fruto da desportivização já ressaltada. Assim livros tais como o de Hay (op.cit.), cujo nome é "Biomecânica das técnicas desportivas", e outros tais como o de José Luiz Fracarolli (1981) não tratam de outras formas de manifestação da cultura corporal (COLETIVO DE AUTORES, 1992), destinando parte do livro para descrever a biomecânica de um determinado esporte. Além da redução do conteúdo a ser ministrado, existe nos livros uma indicação para uma educação física voltada ao esporte em uma perspectiva competitivista (GHIRALDELLI JÚNIOR, op.cit.), que poderia ser caracterizada, em outra instância, como tecnicista, ou ainda, orientada para o paradigma da aptidão física (COLETIVO DE AUTORES, op.cit.).

Portanto, vislumbrar a utilização da biomecânica em uma outra perspectiva, arriscando a dizer, contra-hegemônica, que busque ajudar a construir uma educação física voltada para uma outra prática social, transformadora, da cultura corporal, é um desafio que se torna premente. Este trabalho, longe de querer solucionar dando um ponto final a este problema, buscará formular aproximações teóricas que diz respeito à aplicabilidade da biomecânica para a aula de Educação Física. Assim, inicialmente discutir-se-á alguns conceitos biomecânicos que estão envolvidos na projeção de implementos tais como bola, peso, dardo, e que relacionam-se com padrões de movimentos (gestos motores) diferenciados. Em seguida, apresentar-se-á um modelo de aula de Educação Física para primeiro segmento (1a a 4a série) montado a partir dos conceitos anteriormente tratados, no intuito de evidenciar a possibilidade da utilização da biomecânica no contexto escolar.

Arremesso e lançamento: seus princípios biomecânicos

Como ressaltado anteriormente, a bibliografia em biomecânica, ao discutir as projeções, detém-se em apontar os fatores intervenientes da física que atuam em torno dos projéteis. No entanto, quando trata-se de aprofundar as estratégias a nível de movimento humano, realizado por meio das articulações, que são responsáveis pela projeção, a discussão torna-se diluída. Assim, nesse momento, explicitar-se-á os condicionantes biomecânicos dos padrões de movimentos que geram diferentes projeções.

Como nos lembram D. Donskoi e V. Zatsiorski (1988), existem três formas de movimento: linear ou translação, angular ou rotação e generalizado. Quando executamos uma projeção de um implemento (bola, peso, disco) a partir de movimentos dos membros superiores, podemos efetuá-la basicamente por meio de um movimento linear ou angular. Para aclarar tal afirmação, tomemos como exemplo o arremesso de peso e o lançamento de dardo do atletismo. Apesar das duas modalidades terminarem com a projeção do implemento que fará uma trajetória parabólica até encontrar o solo, o movimento realizado pelas articulações no ato de cada uma dessas projeções possuem diferentes padrões. No arremesso de peso, a trajetória é linear, conseguida através de uma combinação de movimentos das articulações do ombro e do cotovelo (apesar de cada articulação apenas promover isoladamente movimentos de rotação). Já no lançamento de dardo, as duas articulações combinam-se para a realização de um movimento angular.

Pois bem, a questão que a biomecânica deveria aprofundar-se é: por que existem dois tipos de movimentos ou gestos motores (linear e angular) para projetar implementos? A resposta para esta questão provém dos fundamentos da cinemática e da cinética. No movimento angular (lançamento), existe uma maior distância percorrida pelo movimento, o que proporciona uma maior aceleração antes da soltura do implemento. Assim, essa estratégia leva vantagem em relação ao movimento linear no que diz respeito à atribuição da velocidade ao implemento, que condiciona, juntamente com outros fatores (ângulo de soltura, altura relativa dos pontos de soltura e chegada), uma maior distância final a ser alcançada.

Entretanto, se considerarmos o arremesso de peso, perceberemos que possui o mesmo objetivo do lançamento de dardo, ou seja, projetar à maior distância o implemento. Assim, a questão que permanece é por que não efetuamos o mesmo padrão de movimento, o angular, para as projeções de peso, uma vez que tal padrão pode proporcionar uma maior velocidade ao implemento? Aqui é necessário considerarmos um fator cinético, o peso do implemento, ou seja, a maior resistência que oferece o peso em relação ao dardo. Para que se diminua a resistência para um movimento angular, além da possibilidade de diminuir a massa (que neste caso é inviável), podemos diminuir a distância da concentração da massa em relação ao eixo de rotação, o que é conseguido quando aproximamos o peso ao ombro. Por isso é que o arremesso, com um menor raio é efetuado a partir de um movimento linear. Pode-se dizer que essa estratégia, ao diminuir a resistência, proporciona um ganho de força ao movimento.

Outra característica além do ganho de força no movimento linear é o ganho da precisão. Em modalidades tais como no jogo de dardo a projeção também é realizada a partir do movimento linear. Esse jogo, diferentemente do caso do atletismo, demanda não de um ganho na distância do implemento, mas de uma precisão de sua chegada. O movimento linear proporciona essa precisão à medida que possui apenas uma direção. Quando o implemento perde contato com mão, segue a direção da trajetória linear executada. No movimento angular a precisão se torna mais dificultada devido ao fato do implemento tomar a direção da força tangencial, ou seja, sai pela tangente da curva no momento em que perde contato com a mão. Assim, em um movimento curvilíneo, existem várias direções que o implemento pode tomar a partir das tangentes da curva, o que dificulta a consecução da precisão, principalmente em modalidades tais como o jogo de dardo.

Os movimentos linear e angular não possuem sempre a denominação de arremesso e lançamento, respectivamente. No futebol, por exemplo, chama-se arremesso lateral um movimento executado angularmente. Entretanto, para este estudo, manter-se-á a denominação do atletismo, ou seja, arremesso para o movimento linear e lançamento para o angular. O que percebemos com essa discussão é que o arremesso e o lançamento possuem diferenças no que diz respeito à consecução de algumas características do tipo velocidade, força e precisão, assim como demandam de padrões motores distintos. Na Educação Física do primeiro segmento, talvez seja importante que a criança vivencie esses dois gestos distintos, no sentido de compor o seu repertório da cultura corporal. Mais do que a simples automação desses padrões motores (movimento linear e angular dos membros superiores), é importante que a criança estabeleça relações de entendimento que levará a possíveis tratamentos com várias outras situações, priorizando a criatividade nos moldes que sugere Celi Nelza Zülke Taffarel (1985). Portanto, a seguir apresentar-se-á um modelo de aula de Educação Física para primeiro segmento (1a a 4a série) que busca diferenciar esses dois padrões motores, fundamentados pela biomecânica, assim como atuar na contextualização das atividades para um aprendizado significativo por parte da criança.

Planificando uma aula com ajuda da biomecânica

O presente modelo foi baseado em uma aula de Biomecânica ministrada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro para o curso de licenciatura em Educação Física. Trata-se de uma aula onde buscava-se relacionar os conceitos cinemáticos no contexto da Educação Física do primeiro segmento, com duração de aproximadamente 50 minutos. Como já dito, a intenção era trabalhar dois padrões de movimentos distintos, o linear e angular, para a execução de projeções de implementos.

Assim, logo após breve aquecimento com um pique alternando-se o ritmo[1], foi proposto um circuito com três estações. Na primeira estação, com bolas de borrachas (do tipo frescobol) solicitava-se que executasse projeções à maior distância possível. Na segunda estação, utilizando medicine-balls (em torno de quatro a cinco quilos), a solicitação era similar à primeira estação. Por fim, na terceira estação, dispondo de bolas de borrachas e massas (pinos), foi pedido que o grupo que ali estivesse elaborasse um jogo onde derrubasse as massas, e que estas fossem colocadas à altura da cabeça. Uma condição era que em todas as estações só se utilizassem projeções com um dos membros superiores.

Todos os grupos apresentaram soluções similares para cada estação. Na primeira estação o padrão de movimento foi o lançamento (movimento angular), sendo o arremesso (movimento linear) escolhido como forma de solucionar a solicitação da segunda estação. Tais soluções acompanham a fundamentação anteriormente tratada no que diz respeito à consecução de velocidade por parte do movimento angular e diminuição da resistência no movimento linear. Já para a terceira estação a solução somente algumas pessoas conseguiram perceber que a melhor forma de efetuar a projeção com vista à consecução da precisão é o movimento linear. Ainda o desejo de imprimir velocidade à bola era muito grande.

Uma última atividade foi proposta em forma de jogo. Foi utilizado o jogo bola à torre (jogo de passes), alterando-se regras durante o jogo. A única solicitação era de que não se poderia criar regras em relação ao número mínimo de passes até atingir a torre. No início, como a bola era relativamente leve para os alunos, o jogo tornou-se apenas de lançamentos longos entre as duas equipes, sem a troca de passes. Chegando-se ao entendimento de que o jogo deveria haver o elemento passe, e que este deveria estar assegurado de alguma forma sem que se estipulasse um número mínimo antes do lançamento final, a turma chegou à formulação de que este jogo deveria ser feito por meio de arremessos. Neste ponto, a turma chegou ao entendimento de que sendo o arremesso a forma técnica que garantia uma projeção curta que evitava tiros diretos, conseguiu atentar para o fato de que uma outra forma de garantir os passes era via modificação da técnica, ou seja, utilizando a biomecânica.

Ao final da aula discutiu-se entre os alunos os diferentes tipos de projeções que implicam em arremesso e lançamento. No caso do primeiro segmento, tal discussão poderia partir da vivência das próprias crianças em outras modalidades tais como atirar uma pedra, o jogo de acertar a boca do palhaço na festa junina, fundamentos esportivos, entre outros. É importante que se atente também às adaptações em relação ao peso da bola, a fim de não sobrecarregar as articulações dos alunos.

Considerações finais

Como qualquer modelo teórico, a presente aula, apesar de já ter sido ministrada para uma turma de graduação em educação física, precisa passar por uma situação real de aplicação, ou seja, para o primeiro segmento, no intuito de avaliar a sua viabilidade.

De qualquer maneira, os elementos da biomecânica poderiam, como foi tentado explicitar ao longo deste trabalho, ajudar a oferecer elementos didáticos ao professor, afastando o caráter empírico de seu trabalho. Naturalmente em uma perspectiva da cultura corporal é ingênuo achar que a biomecânica por si só possa oferecer elementos para compor uma aula de Educação Física. Sabemos que outros contextos tais como os culturais, sociais, filosóficos e psicológicos também devem estar presentes orientando o processo pedagógico.

Entretanto, se partirmos da suposição de que dentro da perspectiva da cultura corporal também existe espaço para discutir tecnicamente o movimento, e que esta é uma instância importante a ser garantida, também através de ações pedagógicas do professor, chegaremos ao entendimento que existe a possibilidade da biomecânica atuar não só dentro da educação física, mas também aliada a um processo de contraposição a valores dominantes em uma perspectiva de transformação social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BATISTA, Luiz Alberto. A transferência de conhecimento em educação física: o caso da biomecânica. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFF, 1989.
  • BRACHT, Valter. Educação Física/Ciências do Esporte: que ciência é essa? Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Maringá, v.14, n.3, p.111-118, mai., 1993.
  • COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino em Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
  • DONSKOI, D., ZATSIORSKI, V. Biomecânica de los ejercicios fisicos. Moscou: Raduga, 1988.
  • FRACAROLLI, José Luiz. Biomecânica: Análise de movimentos. Rio de Janeiro: Cultura Médica, 1981.
  • GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. Educação Física Progressista: a pedagogia crítico-social dos conteúdos e a Educação Física brasileira. São Paulo, Loyola, 1991.
  • HAY, James G., REID, J. Gavin. As bases anatômicas e mecânicas do movimento humano. Rio de Janeiro: Prentice Hall do Brasil, 1982.
  • NASSER, John Peter. Biomecânica do esporte/educação física. Origens e tendências no Brasil. In: NETO, Amarílio Ferreira, GOELLNER, Silvana Vilodre, BRACHT, Valter. As ciências do esporte no Brasil. Campinas: Autores Associados, 1995.
  • NOZAKI, Hajime Takeuchi. Relações epistemológicas entre educação física e biomecânica: quais são suas contradições? In: XVII Encontro Nacional dos Estudantes de Educação Física, Cuiabá, 1996. Resumos.. Cuiabá: Executiva Nacional dos Estudantes de Educação Física, 1996, 72 p., p. 46.