As diretrizes e os parâmetros curriculares nacionais para a Educação Física: São a solução para a realidade brasileira?
Por Dinah Vasconcellos Terra (Autor).
Em III EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
A tarefa de refletir sobre a pergunta do tema se apresenta como um grande desafio. Desafio este, na medida em que o "sim ou o não" possam criar uma grande expectativa de que a resposta venha trazer uma possível solução. Independente disso, nossa proposição se dará em refletir sobre as iniciativas de políticas públicas educacionais apresentadas pelo governo nos últimos cinco anos.
Na perspectiva de que o texto não seja a integra de nossa comunicação, apresentaremos um ensaio introdutório como ponto inicial, para refletirmos sobre os princípios contidos no Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), o que num segundo momento nos dará elementos para aprofundarmos as discussões durante o debate as Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental e nossas experiências no município de Uberlândia na orientação da formação continuada dos professores das Redes Municipal e Estadual enquanto proposta concreta de intervenção na realidade.
Eixos iniciais para o debate
O Brasil, país de múltiplas diferenças culturais e desigualdades sociais, apresenta-se claramente configurado dentro de perspectivas históricas de classe que sempre permearam seu contexto de desenvolvimento sócio-econômico.
Tais perspectivas, manifestadas na luta de classes, sempre se caracterizaram dentro do que denominamos campos em disputa por uma hegemonia política, instrumental e teórica (PALAFOX, p.XII, 1996) em torno de modelos de sociedade projetados como sendo os mais adequados para a garantia da sobrevivência, desenvolvimento e felicidade da espécie humana.
Esta questão, frontalmente desconsiderada em toda a documentação que tivemos oportunidade de analisar, demonstra uma preocupante leitura a-histórica da realidade que, contrariamente ao que se propõem os PCN’s, pode contribuir, diante das ações tomadas, com a continuidade da reprodução do modelo de sociedade atual e das relações sociais dominantes que contribuem com a formação de cidadãos professores e alunos submissos e alienados do conhecimento, prática institucional e dos mecanismos de dominação e controle social exercidos pelo poder econômico que os sustenta, objetiva e intersubjetivamente.
Em termos metodológicos, entendemos que a leitura a-histórica da realidade pode levar também aos pesquisadores a cometer equívocos de interpretação das fontes de estudo utilizadas, quando as mesmas não são corretamente demarcadas no processo de pesquisa e exposição de resultados.
Lamentavelmente, acreditamos que este tipo de fatos aconteceram ao longo do trabalho introdutório em 3 grandes momentos e que, no nosso entendimento, deverão ser refletidos sob pena de continuar apresentando, pela pretensa neutralidade filosófica e ética colocada a longo dos PCN’s, uma leitura ideológica e dicotomizada da realidade social e educacional de nosso país, favorecendo assim, a manutenção do status quo e os interesses das classes detentoras do poder econômico.
a) A concepção de cidadania apresentada nos PCN’s aponta velhas aspirações humanas já manifestadas ao longo da história pela filosofia, como uma formação autônoma, crítica e participativa para agir com competência, dignidade e responsabilidade tendo como meta o ideal de uma igualdade crescente entre os cidadãos.
Neste campo de discussão, os PCN’s deixam de mostrar criticamente que determinadas categorias de análise (autonomia, igualdade, etc.), apresentam sentidos e significados ideologicamente diferenciados quando colocados numa perspectiva dialética de estudo. Como exemplo podemos mencionar Locke (1632-1704), pai do liberalismo, para quem a igualdade é um aspecto fundamental de desenvolvimento social. Somente que para ele, esta igualdade, refere-se às condições de troca entre proprietários de mercadorias, incluindo aqui o próprio TRABALHO que pode ser VENDIDO ao proprietário pelo trabalhador (LOCKE, 1977). Desta forma, para o Liberalismo e o Neo-liberalismo, esta categoria representa na verdade, uma forma de relação social proposta pela burguesia cujo fundamento é a TROCA entre cidadãos livres e iguais que tem a lei como instrumento de mediação jurídica. Lei que por ser concebida e construída institucionalmente com base na necessidade de manutenção de privilégios e portanto, de desigualdades entre proprietários privados e as classes trabalhadoras, sempre mascarou ideologicamente esta relação diante da sociedade, sendo os trabalhadores destinados à subordinação instrumental e intersubjetiva dos poderes econômico e estatal.
Assim perguntamos: para além dos adjetivos apresentados para a concepção de cidadania pelos PCN’s, que igualdade social, política e econômica é, em essência, defendida? E, se isso é tratado por acaso, nos conteúdos de área, porque não é explicitado nem no documento introdutório nem no documento intitulado "Convívio social e Ética: apresentação dos temas"?
Vários outros exemplos e contradições apontados no documento introdutório dos PCN’s podem ser encontrados em decorrência do equívoco metodológico aqui apontado. Se afirma que na sociedade democrática, ao contrário do que acontece nos regimes autoritários, o processo educacional não pode ser instrumento para a imposição, por parte do governo, de um projeto de sociedade e de nação. Tal processo deve resultar do próprio processo democrático, nas suas dimensões mais amplas, envolvendo a contraposição de diferentes interesses e a negociação política para encontrar soluções para os conflitos sociais. Nesse sentido, diante do conteúdo a-histórico apresentado pelos PCN’s, podemos afirmar que, contraditoriamente ao discurso acima apresentado e, ainda que os mesmos não estejam sendo no momento impostos, os mesmos se tornaram, de fato, um instrumento para manifestar um projeto de sociedade e nação que, por não revelar a natureza e a contraposição histórica existente entre os diferentes interesses encontrados nos conflitos sócio-políticos atuais, acabaram-se tornando um instrumento destinado a transmitir uma concepção conservadora de Educação e sociedade.
b) A leitura realizada em torno das tendências pedagógicas e a fundamentação psico-pedagógica utilizadas para fundamentar os PCN’s são feitas de acordo com os moldes de um pedagogicismo cronológico que menciona, mas não explicita, as bases filosóficas subjacentes as pesquisas realizadas neste setor.
Tanto a Pedagogia Libertadora quanto a Crítico Social dos Conteúdos estão em constante reflexão e, de acordo com sua finalidade fundamental enquanto instrumentos de crítica profunda e radical à Educação como um todo, vem apontando desde 1991, além de suas limitações e dificuldades teóricas, críticas objetivas ao enfoque "construtivista" que é descrito nos PCN’s. Discussão esta não contemplada na fundamentação apresentada (SAVIANI, 1991). Por outro lado, "misturar" Piaget com Vigotsky sem apontar claramente suas diferenças filosóficas entre os dois autores no que diz respeito as concepções subjacentes de homem, mundo e sociedade, assistimos mais uma vez a construção de uma tendência psico-pedagógica desprovida de elementos filosóficos de reflexão que permitam criticamente aos educadores, apontar com autonomia as diferentes contradições e limitações sócio-históricas e culturais que, dentre outros fatores, limitam efetivamente sua ação individual e coletiva na realidade social.
Como contribuir para que o aluno possa construir sua cidadania pela elaboração ao longo de sua vida escolar, de conceitos como autonomia-heteronomia; liberdade-servidão; direitos-deveres; civilização-barbarie; ordem-desordem; racionalidade-irracionalidade; saber-ignorância; modernidade-tradição em seus diferentes ciclos de aprendizagem, sem que o educador conheça os elementos de análise histórica e filosófica destes dualismos que, além de condicionar sua própria existência, estão também contidos no pensamento científico e filosófico dos autores utilizados?
Reduzir a fundamentação dos PCN’s a processos de análise dos atos de aprender e ensinar, construir e interagir, da forma como estão colocados significa tornar ainda mais abstrata, a possibilidade de que o professor possa vir a ser esclarecido e orientado sobre como elaborar propostas claras sobre o que, quando, como ensinar e avaliar, a fim de possibilitar o planejamento de atividades de ensino para aprendizagem de maneira adequada e coerente com seus objetivos.
Diante da complexidade destas questões perguntamos: o que significa ter propostas claras ou aprendizagem de maneira adequada e coerente com seus objetivos? Ainda que a diversidade de formação cultural, incluindo a profissional, seja tão diferenciada no Brasil, será que não estaremos com a fundamentação introdutória apresentada, menosprezando a capacidade e possibilidades de aprendizagem e reflexão crítica de nossos professores? Não estaremos com a leitura apresentada incorrendo na reprodução de um profundo equivoco apropriadamente apontado pelo Prof. Miguel G. Arroyo (1955), no sentido de que a Educação moderna vai se configurando nos confrontos sociais e políticos como um dos mecanismos para controlar e dosar os graus de liberdade, de civilização, de racionalidade e de submissão suportáveis pelas novas formas de produção industrial e pelas novas relações entre os homens?
c) A noção de escolaridade em ciclos apresenta-se distorcida de seu real significado ao eliminar sua base psicológica e epistemológica e simplificar sua função a uma necessidade basicamente administrativa e burocrática, quando, entre outros motivos, afirma-se que os PCN’s adotam a proposta de estruturação por ciclos, pelo reconhecimento de que tal proposta permite compensar a pressão do tempo que é inerente à instituição escolar, tornando possível distribuir os conteúdos de forma mais adequada à natureza do processo de aprendizagem (p.49).
Nesse sentido, consideramos indispensável que seja esclarecido o fato de que a noção de ciclo se encontra relacionada com uma Psicologia da Aprendizagem de cunho sócio-histórico-dialético que, contrariamente as bases da lógica e da Psicologia formal, procura analisar a dinâmica do pensamento infantil e os mecanismos mediante os quais se consolida a apropriação do conhecimento socialmente produzido, num contexto dialético. Pela noção de ciclo de escolarização redefine-se também, como os conteúdos de ensino devem ser tratados integralmente, na medida em que a possibilidade de conhecimento dos indivíduos vão se ampliando num tipo de pensamento que, de forma espiralada (COLETIVO DE AUTORES, 1992), vai sendo construído histórica e socialmente, num mecanismo de desenvolvimento dinâmico, dialógico, lúdico e problematizador que segue o caminho da sincrése, do analítico e do sintético (PALAFOX,,1995). A noção de ciclo deve estar explicitada em todos os momentos de analise do ato de aprender e ensinar, construir e interagir.
Finalizando, consideramos que tomando como referência, não as deliberações, do Plano Decenal de Educação, o qual, por diversos motivos de origem metodológica e política, consideramos, em sua essência, antidemocrático e demagógico, e sim as determinações do I e II Congresso Nacional de Educação-CONAD, os Parâmetros Curriculares Nacionais não atendem as necessidades pluri-culturais da sociedade brasileira e desconsideram as iniciativas dos educadores que reconhecem e valorizam as diversidades sócio-econômicas, regionais e culturais da comunidade atendida, sobretudo, no âmbito da escola pública (CONAD,1996).
Nesse sentido, e explicitando aqui com liberdade nossa opção política e científica, somos contrários a qualquer iniciativa que procure orientar técnica e cientificamente o setor da Educação sem estar acompanhada de uma política ampla e abrangente que contemple, ao mesmo tempo, o salário, as condições de trabalho, as necessidades de capacitação profissional dos educadores e a transformação do modelo de sociedade atual, em busca da efetiva valorização do professor e das camadas populares, da escola pública e a produção do conhecimento emergido da prática real e concreta da sociedade brasileira.
Notas:
A autora é Professora do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Uberlândia.
Para maior aprofundamento sobre os PCN’s na área da Educação Física consultar o livro Educação Física Escolar Frente á LDB e aos PCN’s: profissionais analisam renovações, modismos e interesses. Org. Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte. Editora Sedigraf. Ijuí.1997.
Referências Bibliográficas
Arroyo, M. Educação e Exclusão da cidadania. In. BUFFA, E. et.al. Educação e Cidadania: quem educa o cidadão ?. São Paulo, Cortez, 1995.
Coletivo de autores. Metodologia do Ensino de educação Física. São Paulo, Cortez, 1992.
Palafox, G. Implicações do processo ensino-aprendizagem escolar na construção da personalidade do Educando. Uberlândia, Rev. Em busca de novos caminhos. NEIA-ESEBA/UFU, 1(1):43-50, 1995.