Integra

Cá estamos nós vivendo mais um ano novo. Antes tarde do que mais tarde, feliz 2013.

E como não podia deixar de ser a vida volta ao normal muito rápido quando se trata de trabalho. E eu já estou com o pé na estrada fazendo avançar a pesquisa sobre os olímpicos. Isso quer dizer que 02 de janeiro já estávamos eu, Marcio Tralci Filho e Eduardo Carlassara com planilhas nas mãos, vários nomes, possíveis contatos em plena ilha de Florianópolis não para curtir belas praias, mas buscando brasileiros que representaram o Brasil em Jogos Olímpicos. Planejamos essa viagem e as demais viagens de janeiro desde o início de dezembro. Nós 3 e os demais 18 membros do grupo que buscaram os contatos, traçaram os planos de viagem e as diferentes ações com paradas e estadias.

Em terras locais contamos, como sempre, com o apoio de amigos, conhecidos, participantes diretos e indiretos do grupo como os sempre solícitos Roberto Mesquita e Alexandre Nunes, em Porto Alegre, nosso segundo destino.

E então, nas cidades programadas, começamos as entrevistas. Ah! Como é bom ser surpreendida com as histórias de pessoas tão diferentes, mesmo tendo acompanhado de perto tantas delas. Deixarei os conteúdos dessas narrativas para um próximo post. O que ficou me soprando ao ouvido dessa vez foi uma outra questão: o tempo das coisas. Em 15 anos de pesquisa com os olímpicos acredito que foi a primeira vez que, planejamos detalhadamente uma viagem, fazendo os contatos com tanta antecedência que os próprios atletas pediram pra deixar um pouco mais pra frente. Acreditava eu que não seria possível nada dar errado quando o planejamento foi feito de forma tão primorosa.

Pé na estrada, como em um road movie, começam de fato as histórias. As surpresas, os imprevistos, as dúvidas, os erros de caminho (muito embora o GPS seja hoje um grande aliado) mostram que sistema fechado, pra valer, só mesmo a morte. Isso porque, conforme experiências anteriores, com tudo certinho é possível fazer até 4 entrevistas por dia!

Tcs, tcs… que experiência que nada. A beleza da pesquisa, assim como da vida, é a possibilidade do inesperado, de poder ser surpreendido pelas coisas do caminho.

Sabemos que uma entrevista demora em média de 50 minutos a 1 hora, mas de repente somos surpreendidos por pessoas que de fato entendem a proposta e compartilham suas vidas, memórias e histórias com o ritmo e a intensidade com que elas ocorreram. E assim o tempo do relógio pouco serve para contar o que passou. Vão-se uma, duas até três horas ou mais lembrando com emoção, carinho, saudade daquelas cenas pessoais, familiares, esportivas que ao serem recontadas ganham novo brilho, outro significado. E aí, aquele planejamento meticuloso, detalhado discutido inúmeras vezes mostra-se pouco eficiente…

Onde estaria então o erro? E foi com nesse questionamento que acordei pensando na manhã do último sábado. Depois de mais uma viagem pelo interior do Rio Grande do Sul percebi o quanto a pesquisa sobre os olímpicos se assemelha a aventuras como a escalada de uma grande montanha ou as grandes travessias. Lembrei da Travessura do Canal da Mancha da querida Ana Mesquita que descreve o quanto ela teve que esperar em terra para poder entrar na água e realizar seu sonho e cruzar o Canal da Mancha a nado… e quebrar um recorde. Foram meses de planejamento e treinamento para chegar até aquele momento, mas por mais que todos os detalhes tivessem sido minimamente estudados ela dependia das condições da maré, dos ventos, da temperatura. Ou seja, havia ainda uma condição imponderável externa a ela assim como aos alpinistas que vão em busca do cume de montanhas como o Aconcágua, o Mont Blanc ou o Himalaia. A montanha está lá, como sempre esteve e sempre estará. Mas, não basta apenas o desejo da conquista. É preciso esperar o tempo das coisas, por mais que ele demore, por mais que ele cause ansiedade e amplie a sensação de impotência.

Foi a partir dessa analogia que consegui sossegar um pouco. Afinal, tínhamos nos programado para fazer de 3 a 4 entrevistas cada e as coisas não estavam saindo bem assim. Gastamos tempo esperando, buscando, localizando pessoas, coisas, contatos, endereços, dificultando a execução de nosso planejamento. Mas, assim como para cruzar o Canal da Mancha ou atacar o cume é preciso paciência para deixar algumas coisas acontecerem. E o tempo se apresenta de diferentes maneiras. Da mesma forma que o discurso e sua narrativa se apresentam como um dos pilares para a compreensão das histórias de vida, o desenrolar temporal dessa narração se apresenta como um segundo elemento imprescindível para uma cartografia de memórias.

Quando começam as narrativas somos surpreendidos pela organização temporal das memórias do narrador que de forma sintética pode ser classificado em tempo cíclico e tempo linear. O tempo cíclico relaciona-se com a recursividade presente em eventos que se alternam e se repetem determinando prazos capturados pelo tempo linear. Assim são as estações do ano, marcadas pelo frio ou calor, chuva ou sol, que se repetem incessantemente a milênios, mas que os calendários do tempo linear definem em dias e meses precisos em cada um dos Hemisférios. Ainda que o tempo seja quase sempre visto como um elemento linear, onde ao nascer o sujeito traça uma linha e por ela segue até chegar à morte numa perspectiva de continum, tem-se também a concepção daquele tempo que parece nunca se esgotar, transformando-se na medida em que se reveste de significado. Já a concepção linear do tempo, que marca a moderna cultura ocidental, se expressa em convenções estabelecidas que darão origem aos calendários, aos relógios e outros determinantes que indicam a exatidão de eventos ou de rotinas de curto ou longo prazo.

Diante dessa ordem o ser humano desenvolveu a memória e a hereditariedade. Na memória estão implicadas mais que a presença e a soma total de resíduos de vivências ocorridas, supondo um processo de reconhecimento e identificação, não bastando que fatos ocorridos se repitam. É preciso que sejam ordenados, localizados e relacionados com diferentes pontos no tempo, implicando, necessariamente, o conceito de uma ordem serial, correspondendo ao plano espacial.

Posto isso, é possível, então, reconhecer a dimensão que o relato de história de vida adquire tanto para o narrador como para o pesquisador. Passível de ser analisada em uma perspectiva linear ou cíclica, dela se pode extrair elementos históricos coletivos, mas também individuais capazes de compor uma cartografia do sujeito e do grupo ao qual ele pertence e das transformações significativas ocorridas ao longo dessa trajetória.

Nessa viagem uma vez mais fui surpreendida por pessoas que, sem saber, confirmaram essa discussão. Mostraram de forma sensível e inesperada que é não é possível ouvir com atenção boas histórias, interagir com o narrador e a narrativa se tivermos pressa ou se já formos preparados de antemão para uma outra tarefa sem saber ao certo quando a primeira terminará. E que também é preciso ter a paciência do tempo cíclico para lidar com a afoiteza do tempo linear que comanda os prazos que os planejamentos nos impõem.

Isso significa que nunca é demais saber que podemos ainda aprender. Que os planejamentos podem e devem existir para nos proporcionar as bases materiais para executar os planos, mas que é preciso uma coluna nessa planilha para o inesperado se manifeste, que o imponderado se apresente com todas as suas cores, para que cada um de nós envolvidos com a pesquisa possa se surpreender. Porque, se não for por isso, não há razão para se fazer pesquisa com histórias de vida. Cada uma delas é um canal ou uma montanha. Logo ali, pronta para ser conquistada, mas que sem o devido respeito nos coloca de frente com a fragilidade de nossa onipotência, podendo por um lado nos ensinar a esperar, dando o tempo necessário para o entendimento de que o mesmo objetivo pode ser alcançado de diferentes formas. E embora o relógio seja o mesmo para todos o entendimento da duração daquilo que ele marca pode ser diferente para muitos.

Por katiarubio
em 6-01-2013, às 14:54

1 comentário. Deixe o seu.

Comentários

Profa Katia,
As entrevistas estão sendo documentadas em vídeo? Vamos poder assistir no Youtube? A MidiatecaCEV está à disposição.
Parabéns pelo trabalho.
Laércio