Resumo

Em julho do ano passado postei um texto nesse blog denominado “Do imperialismo linguístico ao imperialismo acadêmico” para denunciar uma situação ocorrida em um desses muitos congressos que vamos por aí onde o idioma oficial é o inglês. Convencionou-se adotá-lo como oficial porque assim nos foi imposto pelos detentores do poder acadêmico e não houve ninguém, nem nenhum movimento, que se organizasse que maneira eficaz o suficiente para contrapor essa “convenção”. E assim nos habituamos a buscar professores, cursos, tradutores para tentar ficar lado a lado com os donos do poder, afinal precisamos disso em nossas carreiras. E muitas vezes, por mais que nos esforçássemos nunca éramos bons o suficiente para sermos compreendidos no âmago de nossas questões mais urgentes ou mais pungentes. Afinal, diziam os menos respeitosos, isso são detalhes da língua que pouco e nada contribui para a construção ou ampliação do conhecimento. E quantas vezes não mordemos os lábios por nos sentirmos desrespeitados não só na nossa condição de pesquisadores, mas de cidadãos de um país ou do mundo.

Ouvi por muito tempo que o mundo era assim mesmo. Os mais fortes apontam, determinam e os mais fracos obedecem. E nessa ordem estavam não apenas pessoas com mais conhecimento, dinheiro, poder ou tudo isso junto, mas também a relação entre as instituições e seus instituídos, os países e a geopolítica. Sendo eu originária de um país colonizado isso então ganhava contornos mais agressivos. Até bem pouco tempo atrás eu era cidadã do Terceiro Mundo, depois passei a pertencer a um país em desenvolvimento, para depois ser emergente e hoje ser uma respeitada professora da sétima maior economia do mundo. Caramba! E isso tem menos de 50 anos… o que representaria isso para a História?

Representa a possibilidade de ver uma mudança de jogo em que já não admito ouvir uma referência a mim com as expressões sudaca ou brazuca. Desculpem os atrevidos, descolados ou ainda informais. Eu sou brasileira. Aquela que já foi tudo aquilo do parágrafo anterior, que pedia desculpas ao abrir uma palestra em língua inglesa por não ter domínio total daquele idioma e que via meus textos serem rejeitados nas revistas internacionais por não serem escritos por um “nativo”, afinal nossas traduções nunca eram boas o suficiente para estar ao lado de orgulhosos produtores de conhecimentos nativos.

Acompanho desde o último sábado dia 03 de março a polêmica causada por uma declaração infeliz do secretário geral da FIFA a respeito das obras da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Disse ele que o Brasil precisava de um chute no traseiro para que as obras andassem a um ritmo mais acelerado…

Como cantaria Noel Rosa: Quem é você que não sabe o que diz. Meu deus do céu que palpite infeliz…

É muito provável que na escola onde o senhor Jérome Valcke estudou não havia disciplinas bem dadas de antropologia e pouco tenha discutido o conceito de eurocentrismo, ou francocentrismo mais especificamente, que tanto atropelou o mundo ao longo de incontáveis séculos, embora no Brasil, e mais especificamente na Universidade de São Paulo onde sou professora, se tenha o maior respeito pelo Prof. Claude Lévi-Strauss. Sua fala aponta o quanto está impregnado no pensamento de pessoas como ele a superioridade de sua casta, de seus antepassados que se referiam aos povos das Américas, da África, da Ásia e até de alguns da própria Europa, como aqueles selvagens, bárbaros ou coisa que o valha. Na posição que ele ocupa, de um quase representante de Estado (afinal de contas a FIFA conta com mais países associados do que a própria Organização das Nações Unidas), não se admite esse tipo de expressão, mesmo em uma roda de amigos dos mais íntimos, quanto mais em uma coletiva de imprensa. Que coisa lamentável. Que falta de preparo. Que falta de cuidado. Que desconhecimento das coisas que passam no mundo contemporâneo.

Essa notícia me pega em um momento em que tenho ouvido de atletas olímpicos o mesmo sentimento diante da tentativa de imposição da submissão por parte de alguns atletas, dirigentes ou mandatários do esporte mundial e o quanto eles têm que ser firmes em seus princípios e convicções para não sucumbirem diante de uma profecia auto realizadora de fracasso iminente.

Desde outubro do ano passado acompanho a posição do governo brasileiro diante das determinações da FIFA e do COI em relação à lição de casa brasileira para recepção dos dois maiores mega eventos esportivos da atualidade. Passada a euforia inicial de entrar para o mapa dos grandes eventos planetários veio a ressaca das negociações relacionadas a obras, soberania nacional e outras questões que esses eventos hoje contemplam. Sabe-se sim que é necessário conceder em parte para receber de outra, mas isso tudo é muito recente ao repertório do povo brasileiro que historicamente teve que dobrar os joelhos diante de interesses fossem eles econômicos, políticos, sociais ou qualquer outra categoria de análise.

Confesso que temi à concessão pura e simples das exigências impostas pelos donos dos espetáculos. Aguardei ansiosa pelo desfecho do desrespeito com que a presidenta Dilma foi tratada ao não ser recepcionada pelos altos dirigentes para negociar a Lei Geral da Copa. Pensei comigo que sendo ela a mulher que é e com o passado que tem não poderia tolerar de forma resignada às ordens ardilosas de pessoas como o senhor Valcke que punham em risco e em jogo a nossa soberania e algumas conquistas históricas. Fui levada a crer que sua postura conciliadora naquele momento fazia parte de uma estratégia que buscava o instante exato de levar à mesa de negociação os nossos interesses. Mas, pelo que vejo, os negociadores da Copa do Mundo não fizeram a mesma análise de conjuntura que o time brasileiro. E uma vez mais se puseram em campo vestidos da arrogância dos civilizadores que invadiram a América, a Ásia e a África proclamando ao mundo não a sua tomada, e sim o seu descobrimento. E não contentes com a imposição da própria cultura sobre a cultura local determinaram ainda padrões de comportamento, de pensamento e até de fé sobre os “nativos”, “desalmados” e “aculturados”. Esqueceram-se apenas esses senhores que se passaram mais de 500 anos desde que isso ocorreu e que as ciências humanas se desenvolveram ao ponto de nos proporcionar inclusive a condição de poder avaliar e julgar o comportamento dos colonizadores.

Que felicidade a nossa, senhor Valcke, e infelicidade a sua, de ter diante de si cidadãos capazes de se orgulharem de fazer parte de um momento da história do Brasil de resgate da dignidade, da capacidade de se ter figuras de projeção e de identidade que estão dentro do próprio país e não em continentes distantes com muito mais anos de existência que o nosso. Que erro de avaliação, senhor, ao acreditar que um saquinho cheio de promessas de projeção internacional seria suficiente para lhe dar o direito de tratar com a arrogância e o desrespeito não apenas um interlocutor do governo, mas toda uma nação.

Volto a dizer. Vivo no Brasil, trabalho para sua transformação porque também tenho a noção exata de nossos problemas, de nossas limitações, mas isso não dá a mim, nem a qualquer sujeito nesse mundo que não tenha direito a voto, de determinar os rumos que devemos tomar.

Parabéns ministro Aldo Rebelo. Sua atitude firme e imediata de responder à forma desrespeitosa como fomos tratados, de como me senti tratada e desrespeitada, me leva a crer que podemos ter uma Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos diferentes. Não apenas sendo campeões, trazendo medalhas, mas podendo erguer a cabeça e afirmando que desejamos receber a quem quiser ver esses espetáculos no Brasil, com o orgulho de ser um país diferente, cheio de imperfeições, mas com dignidade, dignidade essa que pode ter faltado a outros que pagaram um preço muito mais alto do que o lucro resultante dos espetáculos. Pagaram com o desrespeito a sua soberania.
E não tente, senhor Valcke, querer usar a mesma e velha desculpa comum ao meio acadêmico para justificar o desastre que causou: foi um erro dos tradutores que não compreenderam a intenção do que foi dito!

Por katiarubio
em 6-03-2012, às 20:05

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Comentários

Parabéns, Katia, belo artigo. Argumentação e indignação impecáveis.Bj

Por José Cruz
em 6-03-2012, às 21:57.

Edison
Como disse no texto, não nego nossos problemas, mas isso não dá a esse senhor, nem a qualquer outro, de vir aqui dizer o que temos a fazer. O respeito é a condição básica de qualquer convivência.

um abraço

Katia

Kátia,
Entendo a sua indignação com o sr. Valcke por não ter utilizado as palavra adequadas, mas disse uma verdade incontestável. O Brasil está atrasado nos cronogramas das obras e vejo poucas possibilidades de que se cumpram o que foi acordado. Faltam hotéis e infraestrutura em muitas cidades escolhidas para sediar os jogos. Aos olhos de quem mora no exterior, o Brasil é um país grande, cheio de belezas naturais, carnaval, samba, biquini, violento e pouco responsável. Acredito que os governos anteriores, na ânsia de mostrar serviço, venderam essas “qualidades” que se espalharam pelo mundo. Até hoje vejo cartazes com fotos de praia e mulheres de biquini, tucanos e onças. O que fazer?

Por Edison Yamazaki
em 7-03-2012, às 2:35.

Olá Katia.

Em primeiro lugar gostaria de parabeniza-la pelo seu grande trabalho. É de pessoas como você, que fogem do senso comum que precisamos na área de Educação Física.

Em segundo lugar gostaria de me apresentar. Sou Educador Físico, tenho 26 anos, formado em Agosto do ano passado pela Universidade Paulista.

Sempre estive interessado em ingressar na área acadêmica, e esse ano decidi tentar fazer um mestrado. Queria conversar com você para pedir uma orientação e esclarecer algumas dúvidas que tenho para ingresso na EEFE USP.
Você poderia me informar quais dias encontro você na EEFE USP?

Aguardo contato.

Meu email e meu telefone estão á disposição.

Att.

Jan Ribeiro

Por janribeiro
em 16-03-2012, às 10:13.

Laercio

Quer dizer então que começamos com Mandarim, depois passamos para o Hindi, para então chegar no inglês? Bem que poderia haver um jeito mais fácil de resolver essa questão.
O Jan ja me encontrou, obrigada pela ajuda

Katia

Jan,
Pra falar com a Profa Kátia basta clicar no contato da página dela no quem-é-quem.

Profa Katia,
Esse negócio de dominação pela linguagem vai longe, desde que a turma precisava escrever oa trabalhos em latim e ao contrário. Em todo caso, acho melhor a gente providenciar um curso de Mandarim:

“Segundo a última edição do livro “The Ethnologue: languages of the world”, o número de línguas faladas no mundo é de 6912. Confira as dez primeiras línguas mais faladas no mundo e o respectivo número de pessoas.

1º. Mandarim – 1051 milhões – China, Malásia e Taiwan.
2º. Hindi – 565 milhões – Índia, regiões norte e central.
3º. Inglês – 545 milhões – EUA, Reino Unido, Partes da Oceania.
4º. Espanhol – 450 milhões – Espanha e Américas.
5º. Árabe – 246 milhões – Oriente Médio, Arábia, África do Norte.
6º. Português – 218 milhões – Brasil, Portugal, Angola.
7º. Bengalês – 171 milhões – Bangladesh, Nordeste da Índia.
8º. Russo – 145 milhões – Rússia e Ásia Central.
9º. Francês – 130 milhões – França, Canadá, Oeste e Centro da África.
10º. Japonês – 127 milhões – Japão.”

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