As relações de trabalho do jogador coisificado
Por Rafael Moreno Castellani (Autor), João Batista Freire (Autor).
Resumo
Recentemente, estivemos diante de acontecimentos no âmbito do futebol mundial que se tornaram manchetes em todos os jornais e programas esportivos do mundo, sobretudo por envolverem um dos clubes mais ricos e importantes e um dos melhores jogadores de todos os tempos, FC Barcelona e Lionel Messi, respectivamente.
Poderíamos falar da surpreendente (ou não) e histórica goleada sofrida pela equipe catalã nas semifinais da Champions League para a equipe do Bayer de Munich. Mas não falaremos. Sobre isso, há um número considerável de boas análises. Abordaremos, neste texto, um episódio que teve essa derrota como disparador: a notícia de que o principal jogador da história do FC Barcelona desejava mudar de equipe. E que seu desejo não foi respeitado!
Se a relação de poder entre um atleta - um dos melhores e mais bem pagos de todos os tempos - e o clube se dá dessa forma, o que pensar sobre as demais 99,99 % das relações de trabalho entre o empregado e o empregador no contexto do futebol profissional?
Cabe, então, retomarmos uma discussão importante e presente no âmbito acadêmico, mas ainda pouco realizada fora dele. O processo de mercantilização do futebol e, sobretudo, o atributo de mercadoria destinado ao jogador, intensificado a partir de um processo de coisificação do jogador, conforme Florenzano (1998).
Pois é... Nem mesmo a exclusão da lei do passe, “que causou, e ainda causa, controvérsias entre jogadores” (Martins, 2017), parece ter dado a tão desejada autonomia laboral ao atleta. E neste caso, o atleta em questão é detentor de fama, reconhecimento e poder. Bem... ai voltemos a falar do Messi.
Antes de continuarmos, vale ressaltar que de modo algum estamos colocando o Messi no papel de coitado. Afinal, entendemos que um ser humano, seja ele atleta ou não, que trabalhe num dos postos (clubes) mais desejados por sua categoria profissional e possua uma renda (entre salários, direitos de imagem, patrocínios e premiações) tão absurdamente alta e desproporcional em relação aos demais, em um mundo onde há tanta miséria e desigualdade, não merece ter a ele adjudicado esse papel. Mas o que estamos questionando é justamente o fato de privá-lo da sua condição de ser humano à medida que é tratado, como costumeiramente em todo contexto do futebol profissional, como um produto. Afinal, o que se vende e compra sem que seja considerada a sua vontade, se não coisas e mercadorias?
Considerar o atleta como um produto, uma coisa, uma mercadoria é algo que está tão enraizado no âmbito do futebol profissional que, além de serem comprados e vendidos, são tidos como peças - que são compradas, vendidas e repostas - e como máquinas - que quando quebram ou não servem mais, são descartadas.
Este caso do jogador Lionel Messi nos permite, mais uma vez, estabelecer uma analogia entre futebol e política. No início deste ano, com a nova reforma trabalhista assinada pelo Governo Bolsonaro, está prevista, dentre outras coisas, a pactuação direta e individual entre o empregado e o empregador. Ou seja, o empregado passa a ter total liberdade para negociar diretamente com o empregador sobre suas condições de trabalho. Pois é, como esperado e já previsto em diversas críticas, essa relação de poder é de tamanha desigualdade que nem mesmo um dos maiores jogadores de todos os tempos teve sua vontade respeitada nesta negociação com o clube.
Quando negociam com seus empregadores, os jogadores de futebol são, na maioria das vezes, muito jovens. Suas famílias os veem como a esperança de uma vida melhor para todos os membros dessa família. Tanto jogadores como famílias são despreparados para negociar com pessoas tão experientes como os empresários do futebol e/ou dirigentes dos clubes. Diante das promessas de um futuro melhor, de altos salários e da oportunidade de agarrar aquela que pode ser a única chance de ascensão social, assinam contratos sem prever as consequências futuras. Mesmo antes de efetivada a relação direta entre empregado e empregador (no caso do Brasil), percebendo o potencial de um atleta, os clubes impõem cláusulas que atribuem pesadíssimas, por vezes impagáveis, multas em caso de rescisão contratual. Recentemente, o F.C. Barcelona contratou um jovem e talentoso jogador português impondo multa rescisória de 500 milhões de euros. Muito provavelmente, esse jovem não se livrará do clube que o contratou, a menos que seu talento não se desenvolva e ele não sirva mais para nenhum clube de expressão.
Desde as civilizações mais antigas, a escravidão é uma das marcas, ou manchas, da produção. Por muitos séculos os escravos eram povos conquistados. A escravidão dos povos africanos pela civilização branca é mais recente, e impulsionou a economia europeia a partir do século XVI. A abolição da escravidão deu-se a menos de dois séculos, mas a ideologia que orientou o trabalho escravo não foi abolida. Empregadores de diversos setores insistem em manter uma mal disfarçada escravidão nas relações com seus empregados. O esporte, especialmente o futebol, trincheira tradicional do autoritarismo, talvez seja o exemplo maior dos vestígios escravocratas nas relações empregado-empregador.
Que fique claro que de modo algum estamos comparando o jogador de futebol a um escravo, mas que, ao atribuir a eles, jogadores, o papel de produto e mercadoria, levantamos similaridades quanto a negação dos seus direitos, vontades, sentimentos e subjetividade.
Integra
Recentemente, estivemos diante de acontecimentos no âmbito do futebol mundial que se tornaram manchetes em todos os jornais e programas esportivos do mundo, sobretudo por envolverem um dos clubes mais ricos e importantes e um dos melhores jogadores de todos os tempos, FC Barcelona e Lionel Messi, respectivamente.
Poderíamos falar da surpreendente (ou não) e histórica goleada sofrida pela equipe catalã nas semifinais da Champions League para a equipe do Bayer de Munich. Mas não falaremos. Sobre isso, há um número considerável de boas análises. Abordaremos, neste texto, um episódio que teve essa derrota como disparador: a notícia de que o principal jogador da história do FC Barcelona desejava mudar de equipe. E que seu desejo não foi respeitado!
Se a relação de poder entre um atleta - um dos melhores e mais bem pagos de todos os tempos - e o clube se dá dessa forma, o que pensar sobre as demais 99,99 % das relações de trabalho entre o empregado e o empregador no contexto do futebol profissional?
Cabe, então, retomarmos uma discussão importante e presente no âmbito acadêmico, mas ainda pouco realizada fora dele. O processo de mercantilização do futebol e, sobretudo, o atributo de mercadoria destinado ao jogador, intensificado a partir de um processo de coisificação do jogador, conforme Florenzano (1998).
Pois é... Nem mesmo a exclusão da lei do passe, “que causou, e ainda causa, controvérsias entre jogadores” (Martins, 2017), parece ter dado a tão desejada autonomia laboral ao atleta. E neste caso, o atleta em questão é detentor de fama, reconhecimento e poder. Bem... ai voltemos a falar do Messi.
Antes de continuarmos, vale ressaltar que de modo algum estamos colocando o Messi no papel de coitado. Afinal, entendemos que um ser humano, seja ele atleta ou não, que trabalhe num dos postos (clubes) mais desejados por sua categoria profissional e possua uma renda (entre salários, direitos de imagem, patrocínios e premiações) tão absurdamente alta e desproporcional em relação aos demais, em um mundo onde há tanta miséria e desigualdade, não merece ter a ele adjudicado esse papel. Mas o que estamos questionando é justamente o fato de privá-lo da sua condição de ser humano à medida que é tratado, como costumeiramente em todo contexto do futebol profissional, como um produto. Afinal, o que se vende e compra sem que seja considerada a sua vontade, se não coisas e mercadorias?
Considerar o atleta como um produto, uma coisa, uma mercadoria é algo que está tão enraizado no âmbito do futebol profissional que, além de serem comprados e vendidos, são tidos como peças - que são compradas, vendidas e repostas - e como máquinas - que quando quebram ou não servem mais, são descartadas.
Este caso do jogador Lionel Messi nos permite, mais uma vez, estabelecer uma analogia entre futebol e política. No início deste ano, com a nova reforma trabalhista assinada pelo Governo Bolsonaro, está prevista, dentre outras coisas, a pactuação direta e individual entre o empregado e o empregador. Ou seja, o empregado passa a ter total liberdade para negociar diretamente com o empregador sobre suas condições de trabalho. Pois é, como esperado e já previsto em diversas críticas, essa relação de poder é de tamanha desigualdade que nem mesmo um dos maiores jogadores de todos os tempos teve sua vontade respeitada nesta negociação com o clube.
Quando negociam com seus empregadores, os jogadores de futebol são, na maioria das vezes, muito jovens. Suas famílias os veem como a esperança de uma vida melhor para todos os membros dessa família. Tanto jogadores como famílias são despreparados para negociar com pessoas tão experientes como os empresários do futebol e/ou dirigentes dos clubes. Diante das promessas de um futuro melhor, de altos salários e da oportunidade de agarrar aquela que pode ser a única chance de ascensão social, assinam contratos sem prever as consequências futuras. Mesmo antes de efetivada a relação direta entre empregado e empregador (no caso do Brasil), percebendo o potencial de um atleta, os clubes impõem cláusulas que atribuem pesadíssimas, por vezes impagáveis, multas em caso de rescisão contratual. Recentemente, o F.C. Barcelona contratou um jovem e talentoso jogador português impondo multa rescisória de 500 milhões de euros. Muito provavelmente, esse jovem não se livrará do clube que o contratou, a menos que seu talento não se desenvolva e ele não sirva mais para nenhum clube de expressão.
Desde as civilizações mais antigas, a escravidão é uma das marcas, ou manchas, da produção. Por muitos séculos os escravos eram povos conquistados. A escravidão dos povos africanos pela civilização branca é mais recente, e impulsionou a economia europeia a partir do século XVI. A abolição da escravidão deu-se a menos de dois séculos, mas a ideologia que orientou o trabalho escravo não foi abolida. Empregadores de diversos setores insistem em manter uma mal disfarçada escravidão nas relações com seus empregados. O esporte, especialmente o futebol, trincheira tradicional do autoritarismo, talvez seja o exemplo maior dos vestígios escravocratas nas relações empregado-empregador.
Que fique claro que de modo algum estamos comparando o jogador de futebol a um escravo, mas que, ao atribuir a eles, jogadores, o papel de produto e mercadoria, levantamos similaridades quanto a negação dos seus direitos, vontades, sentimentos e subjetividade.