Resumo

Recentemente, estivemos diante de acontecimentos no âmbito do futebol mundial que se tornaram manchetes em todos os jornais e programas esportivos do mundo, sobretudo por envolverem um dos clubes mais ricos e importantes e um dos melhores jogadores de todos os tempos, FC Barcelona e Lionel Messi, respectivamente. 

Poderíamos falar da surpreendente (ou não) e histórica goleada sofrida pela equipe catalã nas semifinais da Champions League para a equipe do Bayer de Munich. Mas não falaremos. Sobre isso, há um número considerável de boas análises. Abordaremos, neste texto, um episódio que teve essa derrota como disparador: a notícia de que o principal jogador da história do FC Barcelona desejava mudar de equipe. E que seu desejo não foi respeitado!

Se a relação de poder entre um atleta - um dos melhores e mais bem pagos de todos os tempos - e o clube se dá dessa forma, o que pensar sobre as demais 99,99 % das relações de trabalho entre o empregado e o empregador no contexto do futebol profissional?

Cabe, então, retomarmos uma discussão importante e presente no âmbito acadêmico, mas ainda pouco realizada fora dele. O processo de mercantilização do futebol e, sobretudo, o atributo de mercadoria destinado ao jogador, intensificado a partir de um processo de coisificação do jogador, conforme Florenzano (1998).

Pois é... Nem mesmo a exclusão da lei do passe, “que causou, e ainda causa, controvérsias entre jogadores” (Martins, 2017), parece ter dado a tão desejada autonomia laboral ao atleta. E neste caso, o atleta em questão é detentor de fama, reconhecimento e poder. Bem... ai voltemos a falar do Messi.

Antes de continuarmos, vale ressaltar que de modo algum estamos colocando o Messi no papel de coitado. Afinal, entendemos que um ser humano, seja ele atleta ou não, que trabalhe num dos postos (clubes) mais desejados por sua categoria profissional e possua uma renda (entre salários, direitos de imagem, patrocínios e premiações) tão absurdamente alta e desproporcional em relação aos demais, em um mundo onde há tanta miséria e desigualdade, não merece ter a ele adjudicado esse papel. Mas o que estamos questionando é justamente o fato de privá-lo da sua condição de ser humano à medida que é tratado, como costumeiramente em todo contexto do futebol profissional, como um produto. Afinal, o que se vende e compra sem que seja considerada a sua vontade, se não coisas e mercadorias?  

Considerar o atleta como um produto, uma coisa, uma mercadoria é algo que está tão enraizado no âmbito do futebol profissional que, além de serem comprados e vendidos, são tidos como peças - que são compradas, vendidas e repostas - e como máquinas - que quando quebram ou não servem mais, são descartadas.

Este caso do jogador Lionel Messi nos permite, mais uma vez, estabelecer uma analogia entre futebol e política. No início deste ano, com a nova reforma trabalhista assinada pelo Governo Bolsonaro, está prevista, dentre outras coisas, a pactuação direta e individual entre o empregado e o empregador. Ou seja, o empregado passa a ter total liberdade para negociar diretamente com o empregador sobre suas condições de trabalho. Pois é, como esperado e já previsto em diversas críticas, essa relação de poder é de tamanha desigualdade que nem mesmo um dos maiores jogadores de todos os tempos teve sua vontade respeitada nesta negociação com o clube.

Quando negociam com seus empregadores, os jogadores de futebol são, na maioria das vezes, muito jovens. Suas famílias os veem como a esperança de uma vida melhor para todos os membros dessa família. Tanto jogadores como famílias são despreparados para negociar com pessoas tão experientes como os empresários do futebol e/ou dirigentes dos clubes. Diante das promessas de um futuro melhor, de altos salários e da oportunidade de agarrar aquela que pode ser a única chance de ascensão social, assinam contratos sem prever as consequências futuras. Mesmo antes de efetivada a relação direta entre empregado e empregador (no caso do Brasil), percebendo o potencial de um atleta, os clubes impõem cláusulas que atribuem pesadíssimas, por vezes impagáveis, multas em caso de rescisão contratual. Recentemente, o F.C. Barcelona contratou um jovem e talentoso jogador português impondo multa rescisória de 500 milhões de euros. Muito provavelmente, esse jovem não se livrará do clube que o contratou, a menos que seu talento não se desenvolva e ele não sirva mais para nenhum clube de expressão.

             Desde as civilizações mais antigas, a escravidão é uma das marcas, ou manchas, da produção. Por muitos séculos os escravos eram povos conquistados. A escravidão dos povos africanos pela civilização branca é mais recente, e impulsionou a economia europeia a partir do século XVI. A abolição da escravidão deu-se a menos de dois séculos, mas a ideologia que orientou o trabalho escravo não foi abolida. Empregadores de diversos setores insistem em manter uma mal disfarçada escravidão nas relações com seus empregados. O esporte, especialmente o futebol, trincheira tradicional do autoritarismo, talvez seja o exemplo maior dos vestígios escravocratas nas relações empregado-empregador.

            Que fique claro que de modo algum estamos comparando o jogador de futebol a um escravo, mas que, ao atribuir a eles, jogadores, o papel de produto e mercadoria, levantamos similaridades quanto a negação dos seus direitos, vontades, sentimentos e subjetividade.

Integra

     Recentemente, estivemos diante de acontecimentos no âmbito do futebol mundial que se tornaram manchetes em todos os jornais e programas esportivos do mundo, sobretudo por envolverem um dos clubes mais ricos e importantes e um dos melhores jogadores de todos os tempos, FC Barcelona e Lionel Messi, respectivamente. 

     Poderíamos falar da surpreendente (ou não) e histórica goleada sofrida pela equipe catalã nas semifinais da Champions League para a equipe do Bayer de Munich. Mas não falaremos. Sobre isso, há um número considerável de boas análises. Abordaremos, neste texto, um episódio que teve essa derrota como disparador: a notícia de que o principal jogador da história do FC Barcelona desejava mudar de equipe. E que seu desejo não foi respeitado!

     Se a relação de poder entre um atleta - um dos melhores e mais bem pagos de todos os tempos - e o clube se dá dessa forma, o que pensar sobre as demais 99,99 % das relações de trabalho entre o empregado e o empregador no contexto do futebol profissional?

     Cabe, então, retomarmos uma discussão importante e presente no âmbito acadêmico, mas ainda pouco realizada fora dele. O processo de mercantilização do futebol e, sobretudo, o atributo de mercadoria destinado ao jogador, intensificado a partir de um processo de coisificação do jogador, conforme Florenzano (1998).

     Pois é... Nem mesmo a exclusão da lei do passe, “que causou, e ainda causa, controvérsias entre jogadores” (Martins, 2017), parece ter dado a tão desejada autonomia laboral ao atleta. E neste caso, o atleta em questão é detentor de fama, reconhecimento e poder. Bem... ai voltemos a falar do Messi.

     Antes de continuarmos, vale ressaltar que de modo algum estamos colocando o Messi no papel de coitado. Afinal, entendemos que um ser humano, seja ele atleta ou não, que trabalhe num dos postos (clubes) mais desejados por sua categoria profissional e possua uma renda (entre salários, direitos de imagem, patrocínios e premiações) tão absurdamente alta e desproporcional em relação aos demais, em um mundo onde há tanta miséria e desigualdade, não merece ter a ele adjudicado esse papel. Mas o que estamos questionando é justamente o fato de privá-lo da sua condição de ser humano à medida que é tratado, como costumeiramente em todo contexto do futebol profissional, como um produto. Afinal, o que se vende e compra sem que seja considerada a sua vontade, se não coisas e mercadorias?  

     Considerar o atleta como um produto, uma coisa, uma mercadoria é algo que está tão enraizado no âmbito do futebol profissional que, além de serem comprados e vendidos, são tidos como peças - que são compradas, vendidas e repostas - e como máquinas - que quando quebram ou não servem mais, são descartadas.

     Este caso do jogador Lionel Messi nos permite, mais uma vez, estabelecer uma analogia entre futebol e política. No início deste ano, com a nova reforma trabalhista assinada pelo Governo Bolsonaro, está prevista, dentre outras coisas, a pactuação direta e individual entre o empregado e o empregador. Ou seja, o empregado passa a ter total liberdade para negociar diretamente com o empregador sobre suas condições de trabalho. Pois é, como esperado e já previsto em diversas críticas, essa relação de poder é de tamanha desigualdade que nem mesmo um dos maiores jogadores de todos os tempos teve sua vontade respeitada nesta negociação com o clube.

     Quando negociam com seus empregadores, os jogadores de futebol são, na maioria das vezes, muito jovens. Suas famílias os veem como a esperança de uma vida melhor para todos os membros dessa família. Tanto jogadores como famílias são despreparados para negociar com pessoas tão experientes como os empresários do futebol e/ou dirigentes dos clubes. Diante das promessas de um futuro melhor, de altos salários e da oportunidade de agarrar aquela que pode ser a única chance de ascensão social, assinam contratos sem prever as consequências futuras. Mesmo antes de efetivada a relação direta entre empregado e empregador (no caso do Brasil), percebendo o potencial de um atleta, os clubes impõem cláusulas que atribuem pesadíssimas, por vezes impagáveis, multas em caso de rescisão contratual. Recentemente, o F.C. Barcelona contratou um jovem e talentoso jogador português impondo multa rescisória de 500 milhões de euros. Muito provavelmente, esse jovem não se livrará do clube que o contratou, a menos que seu talento não se desenvolva e ele não sirva mais para nenhum clube de expressão.

     Desde as civilizações mais antigas, a escravidão é uma das marcas, ou manchas, da produção. Por muitos séculos os escravos eram povos conquistados. A escravidão dos povos africanos pela civilização branca é mais recente, e impulsionou a economia europeia a partir do século XVI. A abolição da escravidão deu-se a menos de dois séculos, mas a ideologia que orientou o trabalho escravo não foi abolida. Empregadores de diversos setores insistem em manter uma mal disfarçada escravidão nas relações com seus empregados. O esporte, especialmente o futebol, trincheira tradicional do autoritarismo, talvez seja o exemplo maior dos vestígios escravocratas nas relações empregado-empregador.

     Que fique claro que de modo algum estamos comparando o jogador de futebol a um escravo, mas que, ao atribuir a eles, jogadores, o papel de produto e mercadoria, levantamos similaridades quanto a negação dos seus direitos, vontades, sentimentos e subjetividade.