Avaliação em Educação Física: Domínios Afetivos + Congnitivos + Psicomotores * 3 = Média ???
Por Gilbert Coutinho Costa (Autor).
Em VI EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
A avaliação em Educação Física tem sido ao longo da sua história influenciada por diferentes concepções filosóficas de homem e de sociedade que, por sua vez, tem contribuído para diferentes concepções na formulação de objetivos de ensino-aprendizagem e conseqüentemente avaliação. Enquanto nas outras áreas do conhecimento escolar estas questões parecem estar melhor definidas, na educação física ainda não temos clareza de muitas questões: que conteúdos (conhecimentos/habilidades) devemos transmitir/desenvolver em nossos alunos? Que conhecimentos/habilidades são fundamentais que os nossos alunos aprendam? O que devemos avaliar? Que critérios devemos utilizar para classificá-los como aptos ou inaptos, para promovê-los para a próxima série/ciclo ou para reprová-los?
Se o leitor é capaz de compartilhar dessas incertezas, talvez se sinta mais confortável ao perceber a complexidade deste processo e reconhecer com perfeita naturalidade a nossa incompetência na tarefa de avaliar. Se nas outras disciplinas esta angústia parece ser menor devido à delimitação do campo de intervenção, onde, por exemplo, a Matemática trabalha e avalia o raciocínio lógico-matemático, as Línguas Portuguesa e Estrangeira trabalham e avaliam a comunicação e expressão através do ler, falar e escrever, a Educação Física trabalha "apenas" com o movimento humano. E como avaliar o movimento humano? Se possuímos estas incertezas é porque acreditamos que é o ser humano que está no centro deste processo. O movimento é o meio que utilizamos para promover o desenvolvimento de todas as potencialidades humanas. Não devemos nos limitar apenas à avaliação dos movimentos e, no entanto, não dispomos de instrumentos para avaliar toda a complexidade que é o ser humano.
A Educação Física sob a influência das instituições médicas e militares nos primórdios da sua consolidação na sociedade brasileira e, mais tarde tendo a psicologia behaviorista fundamentando a pedagogia tecnicista com os seus comportamentos observáveis passíveis de mensuração, definiu precisamente o que deveria ser avaliado (preferimos chamar de medido) em Educação física, que Souza (1993) denomina de tendência clássica: princípios biofisiológicos (capacidades físicas como força, velocidade, resistência, coordenação, agilidade; parâmetros do corpo como peso, estatura, perímetro de braço e perna etc.) e princípios técnico-desportivos (habilidades motoras, perfeição do gesto desportivo, conhecimento aprofundado de regras, rendimento máximo em competições etc). Embora a psicologia humanista de Rogers tenha negado tudo isso, influenciado a pedagogia e colocado o homem no centro do processo educativo, não apresentou instrumentos para avaliar o homem integralmente; permitindo assim a manutenção da avaliação, digo, medida, dos princípios biológicos e tecnicistas.
Neste enfoque, concordamos com Freire quando afirma que, "a história da avaliação em Educação Física é a história das medições" (1989, p.201). Para ilustrarmos esta afirmativa citamos os trabalhos de Flinchum (1981) que preconiza um teste de habilidade motora na qual a criança precisa submeter-se a uma corrida de 32 metros, arremessar com precisão, chutar e arremessar bolas o mais longe possível, saltar em profundidade e em distância (parado), saltar verticalmente, correr até um ponto, pegar um objeto e trazê-lo para o professor, subir e descer duas escadas de seis degraus (uma escada de parede e uma escada predial), andar sobre uma trave de equilíbrio baixa e outra alta.Todos estes testes descritos da página 100 à 108, além de toda parafernália exigida para a sua realização ainda requer 1 diretor, 1 ou 2 apontadores,1 ajudante, 1 ou 2 auxiliares e 1 cronometrista para as provas que exigem marcação do tempo. Os resultados em cada prova são classificados como "ótimo, bom, regular, fraco ou não executado".
Data-se também desta época as propostas de Mathews (1984) de avaliação (medida) da educação Física através da aptidão física considerando o "preparo psicológico, o nível de saúde, a mecânica corporal e a antropometria física" através dos testes de força, capacidade aeróbica, flexibilidade e peso corporal. Podemos citar ainda os trabalhos de Bressane (1982), Otañez (1984), Faria Júnior (1984) e Almeida (1986), todos apresentados in Faria júnior (1986), de cunho altamente tecnicista, voltadas para a aptidão física e/ou rendimento desportivo conforme a tendência pedagógica da época.
Um fato quase inevitável ao pesquisador que busca fundamentos históricos ao seu trabalho, é interpretar os fatos do passado à luz do presente, tempo a que o pesquisador pertence. Embora as pesquisas/propostas/práticas citadas tenham pouco mais de uma década, eram perfeitamente justificadas pela concepção da época, regulamentadas inclusive por decreto presidencial (69.450/71). O nosso trabalho assume um caráter de denúncia quando, após virarmos o século e o milênio, estarmos a mais de cinco anos diante de uma nova legislação (que sepultou o decreto 69.450/71), ter surgido inúmeras tendências progressistas e vasta publicação negando unanimemente o tecnicismo, ainda hoje temos professores ensinando e avaliando nesta perspectiva.
Convém evidenciarmos que, "considerando que o ensino se mede pela aprendizagem, que sentido educativo estamos dando a nossa ação quando avaliamos força, resistência, velocidade, habilidade motora ou conhecimento de regras desportivas?" (Costa, 2001, p. 67). Consideramos que, quando estes quesitos são avaliados, que eles não sirvam para a padronização e classificação dos resultados, mas sim, para a descoberta dos limites e potencialidades de cada aluno.
A tendência humanista a que nos referimos, segundo Souza, "ocorre a partir do final da década de setenta em crítica à pedagogia oficial e à política de educação física e desportos da época, que privilegiava a iniciação desportiva na escola vislumbrando o esporte de rendimento" (1993,p. 126, in Votre, 1993). Uma referência desta tendência é o trabalho de Oliveira (1985), intitulado Educação Física Humanista que, ao colocar o homem integral no centro do processo educativo, a preocupação central da avaliação passa a ser os múltiplos aspectos deste homem, sobretudo traços psicológicos referentes à personalidade (expressas através do movimento) e as mudanças qualitativas ocorridas em cada indivíduo. Esta tendência adjetivada por Souza (ibid) como reformista, assume o caráter informal desta avaliação qualitativa e participativa, sem qualquer preocupação com os aspectos metodológico-instrumentais, conteúdo-finalidades ou padronização de produtos da aprendizagem por não dispormos de instrumentos de aferição para medirmos interesse, participação, cooperação, organização, relacionamento, criatividade, respeito mútuo, dignidade, solidariedade, senso crítico etc.
Outra concepção de avaliação evidenciada por Souza (ibid) é a crítico-social, de caráter progressista, defendida por Freire (1982), Luckesi (1984), Demo (1987), Esteban (2001), entre outros que criticam a avaliação como um produto da aprendizagem e concebem-na como um processo contínuo de novas aprendizagens.Nesta concepção, não só o aluno, mas o professor e os seus métodos, o grupo e a escola são avaliados.É Freire quem esclarece que "A avaliação é da própria prática educativa, e não de um pedaço dela" (1982, p.94, in Brandão,1982). O fator complicador na questão da avaliação em Educação Física não está no seu processo ensino-aprendizagem, mas sim nas exigências técnico-burocráticas expressas nas normas da escola de que o produto deve sempre ser uma nota/conceito; e isto é um problema administrativo, não do conhecimento.Esteban nos convida a refletir sobre os múltiplos aspectos da avaliação, independente da nota/ conceito:
"A partir do exame o/a professor/a pode avaliar se o/a aluno/a foi capaz de responder adequadamente a suas perguntas. Porém o erro ou acerto de cada uma das questões não indica quais foram os saberes usados para respondê-la, nem os processos de aprendizagem desenvolvidos para adquirir o conhecimento demonstrado, tampouco o raciocínio que conduziu à resposta dada. Para a construção do processo ensino/aprendizagem, estas são as questões efetivamente significativas, e não o erro ou acerto como ressalta a lógica do exame" (2001, p.100).
A própria autora questiona "Seria possível extrair do exame mais informações que o erro ou acerto da criança?" (ibid, p.101). Em se tratando de Educação Física, embora observáveis, os dados subjetivos não mensuráveis ganham uma dimensão infinitamente superior aos aspectos quantitativos sem termos que convertê-los em nota/conceito.
Para Foucault, o exame é um instrumento disciplinador, "é um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados" (1991, p. 164). Muitos professores de Educação Física avaliam os seus alunos pela freqüência, pontualidade, participação ou uso de uniforme que, embora assumindo um caráter disciplinador na criação de hábitos desejáveis pelo professor, perde-se o objetivo de avaliar o real progresso do aluno, além de tornar-se um instrumento de punição e não de promoção humana.
Embora sem nenhum amparo legal, algumas escolas adotam o sistema de que a disciplina Educação Física não reprova. Este fato angustia os professores que percebem nesta atitude, um desmerecimento com a sua área de conhecimento: afinal, existe um professor para ministrar a disciplina, um conteúdo a transmitir, um diário para lançar freqüência e rendimento, provas para aplicar, trabalhos para orientar, conselhos de classe para participar, enfim, tudo o que as outras disciplinas curriculares possuem e, por que no final de todo este processo as outras disciplinas podem reprovar o aluno que não alcançou a média definida e a educação física não pode?
Consideramos que, questões como esta são equivocadas: deveríamos perguntar qual o sentido da reprovação? Por que as outras disciplinas reprovam? Concordamos com Castro quando afirma que: "A reprovação de um aluno só faz sentido quando ele não aprende um conteúdo, considerado essencial, que seja parte de uma seqüência a ser continuada numa etapa posterior" (2001, p.107). Nesta perspectiva, qualquer que seja a tendência de avaliação em Educação Física, nenhum domínio avaliado justificaria a retenção de um aluno em uma série ou ciclo, pela função que ela exerce, a não ser pelo caráter punitivo. E parece ser este o motivo da indignação de alguns professores: a perda do instrumento de poder diante do aluno.
Se assumirmos que em nossa disciplina a nota/conceito não é relevante, no entanto, para os alunos ela continuará sendo; e, uma vez exigida pela escola, podemos utilizá-la como um elemento motivacional para a participação em nossas aulas. A auto-avaliação, fundamentada na filosofia existencialista de que, segundo Souza "só o indivíduo pode realmente conhecer a sua experiência, definir o que é significativo em termos de aprendizagem e determinar o esforço despendido para a realização de uma tarefa" (1993, p.127, in Votre,1993), quando trabalhada com critérios bem definidos e justificáveis, levariam aos alunos a se comprometerem com o conhecimento (que têm ou que ainda não têm) e não apenas com a nota/conceito, contribuindo assim, para o desenvolvimento de uma consciência crítica e responsável.
Desde as práticas mais retrógradas até as mais progressistas de avaliação, o seu fundamento sempre foi externo à educação e/ou à pedagogia. A psicologia foi a área do conhecimento humano que mais contribuições forneceu ao processo avaliativo em educação. E é fundamentado em uma de suas correntes que temos experimentado novos instrumentos de avaliação considerando este momento como um processo e não como um produto da aprendizagem. Num trabalho de 1997, já defendíamos uma metodologia de avaliação pautada no conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, da corrente sócio-histórica da psicologia de Vygotsky. Quatro anos mais tarde, Esteban vai se referir a este conceito como "um processo interativo para solucionar um problema que ao menos uma das pessoas envolvidas não é capaz de desenvolver sozinha" (2001, p.129). Já havíamos evidenciado o paradoxo da educação escolarizada que desenvolve praticamente todo o seu processo ensino-aprendizagem de forma coletiva (o professor diante da turma) e, a etapa de avaliação se dá de forma individualizada (o aluno diante da prova). Toda a riqueza dos fenômenos de interação social ocorridos durante as aulas, sobretudo nas aulas de Educação Física, em nome da objetividade precisam ser desconsiderados na hora da realização da prova. Esteban novamente esclarece que "o processo coletivo estimula o sujeito a ultrapassar suas possibilidades e favorece a construção de um movimento que impulsiona a transformação" ( ibid, p.130), conforme defendemos na época:
"Baseado neste conceito, a avaliação entendida como um processo e não um produto da aprendizagem, as provas escritas, por exemplo, poderiam perfeitamente ser realizadas em duplas, onde o aluno com dificuldades seria ‘puxado’ por aquele mais capaz. As respostas brotariam da discussão de ambos sobre a questão, a avaliação motivada pela ‘boa nota’ a ser perseguida, seria um momento riquíssimo e propício para a continuação da aprendizagem onde todos estão motivados, e não um fim em si mesmos" (Costa, 1997, p. 84).
Esta metodologia pode ser aplicada também nas avaliações práticas onde um aluno mais habilidoso ajuda a ensinar e a corrigir os erros dos colegas com maior dificuldade que, talvez até por uma linguagem mais acessível, permita uma maior compreensão das explicações dadas.
Conclusão
Muitas pesquisas ainda precisam ser feitas, novas experiências precisam ser vivenciadas e desafios precisam ser vencidos. Ainda hoje quando defendemos esta metodologia, somos taxados de preguiçosos que querem ter apenas metade do trabalho para corrigir as provas. É novamente é o depoimento de Esteban que nos consola e nos faz continuar apostando nesta perspectiva: "Para a escola o que ele ço aluno] pode fazer sozinho ele aprendeu. O que ele faz com o outro, ele está colando, ele não aprendeu" (2001, p. 148).
Como professores de Educação Física, temos um fantástico campo de observação e avaliação do nosso aluno que nenhuma outra disciplina curricular possui. Isto nos permite ter conceitos (não notas) diferenciados dos alunos frente às demais disciplinas, como fatos observados nos conselhos de classe onde muitos alunos declarados "fracos, desinteressados, limitados", pelos outros professores, são muitas vezes os melhores alunos de Educação Física.E nos sentimos frustrados por não podermos medir a expressividade, o gesto, a interação, a criatividade, a alegria de brincar...
Obs. O autor, professor Gilbert Coutinho Costa, é Mestre em Educação (UFF), Professor e Coordenador do Curso de Educação Física da Universidade Salgado de Oliveira -Universo -Niterói e Professor da Rede Pública Municipal de Itaboraí.
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