Sobre
Quem ama o futebol também ama as lembranças de grandes jogos e grandes jogadores. Os melhores do pós-guerra — Puskás, Di Stéfano, Eusébio, Pelé — cruzaram o caminho de um homem que marcou o moderno futebol ofensivo mais do que qualquer outro:
Béla Guttmann, húngaro judeu, ex-jogador, treinador de sucesso planetário, mitificado sobretudo depois de arrebatar por duas vezes a Liga dos Campeões da Europa no comando do Benfica, de Lisboa — tendo derrubado, para tal, nada menos que a poderosíssima dupla espanhola, Barcelona e Real Madrid.
Mas se é amado até hoje dentro da comunidade benfiquista por tais façanhas, Béla Guttmann é, paradoxalmente, odiado em igual medida. Pudera: depois da conquista frente ao Real, em 1962, o húngaro se desentendeu com a direção do clube lisboeta e não renovou o contrato, debandando de lá não sem antes anunciar uma maldição aparentemente profética: a de que o Benfica não voltaria a vencer uma competição continental pelos próximos cem anos.
Escreve Claussen que alguns torcedores do time, “antes da final da Liga dos Campeões contra o Milan em 1990, teriam ido ao cemitério de Viena e de lá teriam trazido um naco de grama do túmulo de Guttmann, para quebrar a maré de derrotas nas finais europeias”.
Não deu certo: o Benfica perdeu a decisão, assim como ocorreu em todas as outras vezes em que fora finalista nas eras pós-Guttmann: em 1963, também contra o Milan; em 1965, contra a Inter de Milão; em 1968, contra o Manchester United; bem como nas finais da Liga Europa, a antiga Copa da Uefa, contra o Anderlecht, em 1983, e o Chelsea, em 2013.
E em maio deste ano, o fantasma de Guttmann voltou a assombrar, quando o Benfica caiu em nova decisão da Liga Europa, desta vez frente aos espanhóis do Sevilha.
De temperamento forte, Béla Guttmann foi uma espécie de José Mourinho de seu tempo. Tanto pela capacidade superior de “ler” o futebol em suas variantes técnica, tática e física, quanto pelas recorrentes polêmicas em que se envolvia.
Apesar de ter sido um jogador de algum talento, foi como treinador que se sobressaiu, num tempo de transição do futebol, entre o amadorismo e o profissionalismo.
Austero, Guttmann jamais se submeteu a dirigentes ou a jogadores-estrela, o que, com frequência, o fazia debandar — ou ser debandado — dos clubes que dirigia.
Antecipando o movimento de globalização no futebol que se acirraria mais marcadamente a partir dos anos 1990, Guttmann foi um andarilho no mundo da bola. Além da Hungria, atuou em países como Holanda, Áustria, Itália, Estados Unidos, Argentina e Portugal.
E teve ligações profundas também com o futebol brasileiro: em 1957, aceitou o convite para treinar o São Paulo Futebol Clube, com o qual se sagrou campeão paulista.
Mais do que isso, o estilo tático de Guttmann, com o inovador e ultraofensivo esquema 4-2-4, influenciou de forma certeira na maneira de jogar da própria seleção brasileira comandada por Vicente Feola que, no ano seguinte, levantaria seu primeiro título mundial.
Béla Guttmann — o livro — não é uma biografia convencional, ou, em outra perspectiva, é bem mais do que uma biografia. Com o personagem tendo nascido no último ano do século XIX, sua trajetória acaba naturalmente personificando o próprio desenvolvimento do futebol no século seguinte, em diversos aspectos: a transição do amadorismo ao profissionalismo; o sionismo/antissemitismo que envolviam os boleiros de origem judaica; a rápida massificação do futebol após seu nascimento em berço esplêndido; a evolução das regras e dos esquemas táticos; o crescimento da importância de competições como a Taça dos Campeões Europeus — a atual e badaladíssima Uefa Champions League/Liga dos Campeões da Europa —, bem como a morte de outros torneios históricos, como a Mitropacup.
O livro repassa ainda curiosidades pouco conhecidas mesmo por estudiosos do esporte, como o boom do soccer nos Estados Unidos de meados dos anos 1920, quando uma primeira onda de jogadores-imigrantes visualizavam no mercado ianque o eldorado da bola, tal como hoje seria a Inglaterra ou a Espanha.
Assim, num tempo em que a biografia virou gênero maldito no Brasil, Béla Guttmann — Uma lenda do futebol do século XX é, desde já, uma referência de como o registro de histórias de vida pode ir muito além das mesquinharias e indiscrições de cunho privado, ao compor numa mesma geleia geral informações preciosas de época, sobre questões ao mesmo tempo esportivas, sociais, políticas, étnicas, religiosas.
Detlev Claussen escreveu um capítulo especial da história da cultura e do esporte. Ele fala sobre amadores e profissionais, húngaros e vienenses, judeus e católicos, argentinos e brasileiros, heróis e patifes — e de partidas inesquecíveis.
O Autor
Detlev Claussen, nascido em 1948 em Hamburgo e criado em Bremen, estudou ciências sociais sob a orientação de Theodor W. Adorno em Frankfurt. Hoje é jornalista e professor de teoria social, sociologia cultural e teórica na Universidade de Hannover. Reside em Frankfurt. Entre suas principais publicações estão Grenzen der Aufklärung [Limites do esclarecimento, 1987], Was heisst Rassismus? [O que significa racismo?, 1994], Aspekte der Alltagsreligion [Aspectos da religião no cotidiano, 2000] e a importante biografia Theodor W. Adorno [2003].