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O título é provocativo. Mas ele começa a parecer verdadeiro, se começarmos a compreender o que está acontecendo pelo mundo, em matéria de engenharia genética. As últimas notícias discutidas pela imprensa dizem respeito à autorização da comercialização da soja transgênica pela empresa norte-americana Monsanto. Está ocorrendo uma grande polêmica a respeito, pois embora 30% da soja plantada nos EUA já sejam dessa variedade, pelo menos dois países proibiram sua comercialização, e o Brasil hesita. O "imbroglio" é bastante indicativo dos problemas legais, impactos sociais e econômicos, etc, que ocorrerão em número cada vez maior nos próximos anos. Vou tentar explicar tudo isso para o leitor neste e no próximo artigo.

Uma planta transgênica (como a soja da Monsanto) tem esse nome pois ela contém genes de outras espécies animais ou vegetais, introduzidas artificialmente pelo homem (ou seja, esse gene nunca fez parte do conjunto de genes da soja, ou genoma). Os genes contém o DNA que, através do código genético, especifica quais são as proteinas e enzimas produzidas pelas células. Atualmente os cientistas têm diversas maneiras de introduzir um novo gene em uma célula. Um dos mais usados é usar uma "fabriquinha" natural de modificação do DNA, que são os vírus. O vírus é um organismo que penetra na célula, insere o seu DNA no núcleo da célula infectada, obrigando-a a produzir cópias idênticas de si mesmo, que depois saem da célula e vão infectar outras células. É um esquema extremamente bem-sucedido e "inteligente". Pois bem, o que o cientista faz ? Ele modifica o genoma de um vírus (o que é muito mais fácil de fazer), introduzindo um pedaço de DNA que ele extraiu e sintetizou a partir de um gene conhecido de outra planta ou animal. Em seguida, infecta as células da planta que quer modificar com o vírus, alterando seu genoma permanentemente.

No caso da soja da Monsanto, foi introduzido o gene de uma bactéria que é resistente a um herbicida chamado Roundup, fabricado pela própria Monsanto. Esse herbicida é muito forte, é se aplicado indiscriminadamente, e mata não só as ervas daninhas, mas também a própria soja.  A Monsanto vende as sementes da soja Roundup, e também o herbicida. Os dois funcionam como uma chave e a fechadura, por assim dizer, e a Monsanto ganha dinheiro dos dois lados. O processo é patenteado, portanto não pode ser copiado por outras empresas. Ë um negócio extremamente inteligente, que encurrala o produtor em uma dependência eterna da empresa e exclue todas as demais empresas de comercialização de sementes e de herbicidas. No entanto, tem uma ótima contrapartida, pois aumenta em mais de 20% a produtividade da lavoura.

Esse é o futuro. É imenso o número de alterações transgênicas que estão sendo pesquisadas, patenteadas e utilizadas, na área de produção agrícola e farmacêutica. A situação me lembra um dos primeiros e mais apaixonantes livros que lí quando criança, "A Reforma da Natureza", de Monteiro Lobato, em que a capetinha da Emília, auxiliada pelo Visconde de Sabugosa, o cientista do "Sítio do Picapau Amarelo" (e que me inspirou enormemente a seguir o caminho da ciência), começa a fazer experimentos com animais, e os altera de inúmeras maneiras. Emília põe abóbora em árvores e jabuticabas nos pés, cria laranjas sem casca, muda o pulo das pulgas, cria um pássaro com as costas côncavas em forma de ninho, e um leite que apita quando está no fogo. Visconde cria animais gigantes, mexendo na suas glândulas do crescimento, inclusive uma pulga.

Monteiro Lobato foi impressionantemente profético, não só ao prever corretamente como o ser humano poderá ser um verdadeiro senhor da Criação, alterando os outros organismos (e a si próprio) ao seu bel-prazer, e com o desfrute econômico como grande motivador, mas também as conseqüências deletérias e inesperadas de se bancar Deus. As "invenções" biológicas de Emília  e do Visconde começam a dar errado e a alterar o equilíbrio da Natureza, que é o que pode ocorrer se não se tiver muita cautela com as invenções transgênicas.

A soja transgênica parece ter sido bem pesquisada, e o seu efeito sobre o meio ambiente não parece ser deletério. No entanto, outras invenções transgênicas podem ser muito perigosas. Um exemplo: um cientista texano desenvolveu uma bactéria transgênica capaz de digerir petróleo. Sua intenção era a melhor possível: ter uma maneira de dissolver as manchas de petróleo no mar e em terra, provocadas por poluição ou derramamento acidental. Foi vetado pelo governo, pois a análise de risco mostrou que poderia acontecer uma catástrofe se essa bactéria se descontrolasse e caisse nos reservatórios naturais e artificiais de petróleo.

A engenharia genética vai revolucionar o mundo. Em 20 ou 30 anos, teremos o domínio total sobre o genoma de incontáveis espécies, inclusiva a nossa, e poderemos moldá-las na direção que quisermos. No entanto, se não considerarmos todos os aspectos, da segurança biológica às repercussões econômicas em nível global, poderemos nos dar muito mal.

As tecnologias de modificação do genoma (os genes que compõe um indivíduo ou espécie animal ou vegetal) estão ainda na infância, por isso a sociedade ainda não começou a discutir seriamente os seus futuros impactos na evolução da sociedade humana. E existe muita coisa para discutir, principalmente para o público leigo, que precisa saber como funciona essa tecnologia e que vantagens e perigos ela acarreta.

Colocando de forma a mais simples possível: a ordem natural das coisas será totalmente subvertida. Será o Homem brincando de Deus, literalmente. Muitas coisas que hoje damos por inamovível, inalterável ou inatingível, será brinquedo de criança para os engenheiros geneticistas. Querem alguns exemplos ?

O Brasil é um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza, certo ? Alguns produtos, como a cana-de-açucar, a laranja, a banana e o abacaxi, são culturas possíveis apenas em uma certa faixa climática, que confere aos paises tropicais e subtropicais como o Brasil, uma vantagem comercial, que, em alguns casos, tem um valor econômico extremamente significativo (Programa Pró-Alcool, exportação de suco de laranja para os EUA, café, etc.). No entanto, não é impossível prever que um dia, não muito distante, todas essas culturas também poderão ser feitas em países de clima temperado (cana dá no Canadá ? Dá...). A subversão econômica que isso irá causar é inimaginável; mas não necessariamente a nosso desfavor (também ocorrerá a contra-mão, ou seja, trigo plantado no cerrado, figo e uvas no alto sertão nordestino).

Extensão territorial, outra vantagem brasileira, ou grau de insolação e regime de chuvas, também poderão deixar de sê-lo. A alteração genética da produtividade de certas culturas que exigem muito espaço, como pomares, também poderá levar ao uso de espaços extremamente reduzidos. Uma laranjeira poderá produzir cinco a dez vezes mais de laranjas por pé, por exemplo.

Outra coisa: a combinação e interação entre a engenharia genética das plantas e a engenharia genética dos animais fará a "Reforma da Natureza" do Monteiro Lobato, que discuti na coluna anterior, parecer uma brincadeirinha de criança. Outro exemplo ? Existem diversas doenças de gado (aftosa), de frangos de corte (coccidiose), etc., que podem ser prevenidas com vacinas, combatidas com soros e outros produtos de origem imunológica. Pois bem, hoje já existem maneiras de se modificar os genes do milho ou da soja para produzir essas vacinas e soros diretamente na semente, que por sua vez é utilizada para alimentar os animais ! Deste modo, barateia-se enormemente o ciclo de produção do agente biológico, evitando sua extração, purificação e embalagem, armazenamento e transporte em linha fria, necessidade de aplicação individual através de injeção, honorários de veterinários, etc. A semente é um armazem natural, que preserva as proteínas em forma dessicada e estável, as vezes por décadas, sem estragar. Além disso, um hectare de milho produzirá quantidades fantásticas de vacina, idêntica à obtida pelos métodos tradicionais, e que tem uma técnica de produção muito sofisticada e cara.

Ainda no campo da agricultura, a imaginação não pára. Surgirão novas espécies vegetais antes inexistentes, híbridos produzidos pela mãos dos engenheiros geneticistas. Você gosta de suco de laranja com acerola ? Bastará espremer uma nova frutinha, provavelmente chamada de aceranja. Ou então gosta de tomar um grama de vitamina C por dia, mas prefere na forma de suco de laranja? Sem problema, existirão variedades de laranjas com um grama de vitamina C por fruta, ou então com a suplementação vitamínica e mineral completa, que hoje está disponível apenas em medicamentos artificiais. Seu filho tem alguma doença metabólica e precisa tomar um certo tipo de aminoácido para o resto da vida ? Existirão alimentos naturais com a dosagem de praticamente tudo o que se quiser, até mesmo antibióticos, hormônios (insulina, hormônio de crescimento, hormônio da tiróide, e muitos outros), e a um preço muitissimo mais barato do que o remédio comprado em farmácia.

Poderão surgir também híbridos de animais e de plantas (genes de animais inseridos em plantas, o que é mais comum, ou então genes de plantas inseridos em animais). Inúmeros tipos exóticos de carnes e produtos lacticínios, com uma imensa paleta de sabores e de alternativas gastronômicas poderão aparecer. Que tal um creme vegetal com consistência e sabor idênticos ao do creme de leite (mas sem o colesterol?). Bastará haver mercado para tudo isso, e nem precisará ser muito grande.

A fronteira final, e a mais assustadora, ocorrerá com relação ao genoma humano. Só mais um exemplinho, para fazer o leitor sonhar de noite com as possibilidades infinitas que se abrem. O ser humano tem um sistema de visão excelente, com percepção de cores, alta resolução (nitidez de imagem), visão binocular, etc., etc. Mas a águia tem um sistema ainda melhor, em alguns aspectos. A capacidade de percepção à distância é muitas vezes maior do que a do ser humano (ela a usa para localizar possíveis presas). Outros animais têm visão noturna, como o gato, devido à especializações da retina (que fazem o olho do gato brilhar quando se incide uma luz). Será possível produzir bebês que tenham o olho misto de gente, gato e águia ? Essas pessoas terão empregos especializados, na paz e na guerra (por exemplo, como comandos de ataque noturno, ou atiradores de elite), e se casarão apenas entre eles, para preservar os genes e passá-los aos filhos?

Pensem nas possibilidades: audição ultrassônica de morcego, combinada com o ouvido tonal puro de um Mozart. Habilidades musculares e mentais espetaculares (esportistas capazes de saltar mais longe que um cangurú, meninos com QI de 380 e mente matemática perfeita...). Onde estarão os limites humanos, quando formos Deus, e pudermos fazer tudo isso? Onde estarão os limites morais?

Acredito que tudo isso será possível, e dentro ainda da próxima geração. O problema é se deixaremos isso acontecer, com todo o seu séquito de privilégios e aberrações. Acredito que sim.

Pensem.

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