Resumo

Autorresponsabilidade, adaptabilidade diante das mudanças e busca contínua por formação. Estes são alguns significados que os profissionais da Educação Física reconhecem em suas trajetórias profissionais, numa perspectiva de dedicação altruísta e a indissociabilidade entre vida pessoal e profissional, segundo identificado por uma pesquisa.

Integra

Entenda o essencial

  • O estudo investigou como profissionais de Educação Física percebem e constroem suas carreiras, buscando apreender os significados e sentidos atribuídos a essa trajetória.
  • A análise revelou quatro eixos temáticos centrais: adaptabilidade, pluralidade de empregos e funções, formação profissional constante e altruísmo, e indissociabilidade entre vida no trabalho e vida pessoal.
  • Os participantes enfatizaram a autorresponsabilidade pelo sucesso, a necessidade de adaptação contínua às demandas da profissão e da vida, e a importância da formação permanente.
  • Apesar das dificuldades e da multiplicidade de funções (pluriemprego), os profissionais demonstraram alto envolvimento e intenção de permanecer na profissão, evidenciando uma forte conexão com a área.

Introdução

A jornada profissional é uma construção contínua, repleta de escolhas, desafios e adaptações. Para o profissional de Educação Física, essa construção ocorre em um cenário particularmente dinâmico, marcado pela regulamentação relativamente recente da profissão (1998), por constantes debates sobre o escopo de atuação e por mudanças nas estruturas de formação (bacharelado/licenciatura, Educação a Distância …).

Ao mesmo tempo, a experiência de buscar qualificação, lidar com a instabilidade do mercado, conciliar múltiplos empregos ou transitar entre diferentes nichos (escola, academia, gestão, empreendedorismo) faz parte do cotidiano de muitos egressos da área.

Desta forma, compreender como esses profissionais navegam por suas carreiras, quais significados atribuem às suas experiências e quais estratégias utilizam para se manterem ativos e relevantes é necessário, não apenas para o desenvolvimento individual, mas para a própria identidade e fortalecimento da área.

Com o objetivo apreender os significados e sentidos subjetivos que profissionais de Educação Física atribuem às suas carreiras, a pesquisa de Voltan e Messias (2022) identificou alguns elementos centrais no significado que os profissionais da Educação Física se atribuem.

Como foi feito o estudo

Os pesquisadores adotaram uma abordagem qualitativa de inspiração fenomenológica husserliana, focada na experiência vivida. O instrumento principal foram as “narrativas compreensivas”, desenvolvidas a partir de encontros dialógicos individuais entre o primeiro autor e oito profissionais de Educação Física.

Estes, quatro homens e quatro mulheres, com idade média de 43 anos e tempo médio de atuação de 21 ano), foram selecionados por conveniência, mas buscando diversidade de áreas de atuação (empreendedorismo, academia, coordenação, ensino) e tempo de experiência (mínimo de 5 anos), residentes no estado de São Paulo.

Os encontros não foram gravados, priorizando a captação do vivido no diálogo. Após cada encontro, o pesquisador elaborou uma narrativa compreensiva, que foi discutida com um grupo de pesquisa para controle de vieses.

Posteriormente, foi construída uma “Narrativa Síntese”, integrando os elementos comuns e peculiares. A análise final dos resultados foi realizada à luz dos pressupostos teóricos do paradigma Life Design. O estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa.

E o que o estudo diz?

A análise das narrativas revelou quatro eixos principais que caracterizam a percepção da carreira pelos profissionais de Educação Física participantes:

  1. Adaptabilidade: tema central, manifestado na capacidade dos profissionais de enfrentar e superar dificuldades (financeiras, de saúde, de transição de carreira), reorganizando suas trajetórias. Inclui a “Adaptação” (como resultado e processo), a “Adaptatividade” (atitude de autorresponsabilidade e controle interno) e a “Adaptabilidade” (crença nos conhecimentos adquiridos). Exemplos incluem profissionais que adoeceram devido ao trabalho e precisaram se reestruturar, aqueles que buscaram novas posições devido ao desgaste físico, ou os que iniciaram a formação tardiamente e buscam ativamente novas práticas. O senso de autossuficiência e protagonismo na construção da carreira foi marcante.
  2. Pluralidade de empregos e funções: através da acumulação de funções (professor e coordenador/administrador, por exemplo), foi uma constante. Embora possa ser vista como consequência da busca por melhor remuneração ou da própria dinâmica do mercado, também demonstra a versatilidade desses profissionais. Alguns encaram a transição para funções administrativas como uma evolução natural frente ao desgaste da atuação direta. A necessidade de trabalhar “nos três turnos” para obter retorno financeiro foi mencionada, mas sem associar o trabalho a sofrimento.
  3. Formação profissional constante e altruísmo: com busca contínua por qualificação (formal e informal) sendo unanimemente apontada como essencial para o sucesso e a permanência na área, refletindo a dimensão de “Preocupação” da adaptabilidade. Essa busca não visa apenas a empregabilidade, mas também um desejo altruísta de oferecer o melhor serviço possível aos alunos/clientes, como ilustrado pela satisfação em ver resultados positivos nos outros ou pela transmissão de conhecimento a futuros profissionais.
  4. Indissociabilidade entre vida no trabalho e vida pessoal: com fluidos, questões como maternidade, apoio (ou falta de apoio) familiar e do cônjuge impactam diretamente as decisões de carreira. O fenômeno do spillover (transbordamento) foi evidente, tanto positivo (apoio do cônjuge facilitando o desenvolvimento profissional) quanto potencialmente negativo (conflitos devido à ausência em casa por estudos/trabalho). A identidade profissional parece fortemente integrada à identidade pessoal.

Relação com outros estudos

Os achados de Voltan e Messias (2022) dialogam com a literatura sobre desenvolvimento de carreira, especialmente sob a perspectiva construcionista do Life Design, que enfatiza a agência do indivíduo na construção de sua trajetória em contextos de mudança. A centralidade da adaptabilidade corrobora diretamente os modelos de Savickas e Porfeli (2012) sobre as Career Adapt-Abilities (os 4 C’s: concern, control, curiosity, confidence), percebidas nos relatos de autorresponsabilidade (controle) e busca por formação (preocupação, curiosidade).

A pluralidade de empregos se alinha a discussões sobre o pluriemprego na Educação Física, já apontado por outros estudos (como Both et al., 2014, citado no artigo), refletindo tanto as condições socioeconômicas da profissão quanto a diversificação de nichos de atuação.

Diretrizes profissionais

Com base nos achados do estudo, algumas diretrizes podem ser úteis para profissionais de Educação Física na gestão de suas carreiras e na interação com clientes/alunos:

  • Cultivar a adaptabilidade: reconhecendo a carreira como construção dinâmica. Desenvolver proativamente a capacidade de se ajustar a novas demandas do mercado, tecnologias e contextos de vida. Isso inclui buscar feedback, experimentar novas funções e desenvolver resiliência frente aos desafios.
  • Assumir o protagonismo: internalizando a autorresponsabilidade pelo desenvolvimento profissional. Em vez de esperar por oportunidades, buscá-las ou criá-las ativamente, seja por meio de formação, networking ou empreendedorismo, como fizeram alguns participantes do estudo.
  • Investir em formação contínua: priorizando a atualização constante, não apenas como requisito formal, mas como ferramenta estratégica para aprimorar a prática. Oferecer serviços de maior qualidade (altruísmo) e aumentar a empregabilidade e a satisfação profissional são outras estratégias.
  • Gerenciar a pluralidade e limites: se o pluriemprego ou a acumulação de funções for uma realidade, buscar estratégias para gerenciar o tempo e a energia, evitando o esgotamento. Refletir sobre os limites entre vida profissional e pessoal, buscando um equilíbrio sustentável e utilizando redes de apoio (familiares, colegas) quando necessário.
  • Integrar a experiência de vida: reconhecer que as experiências pessoais (maternidade/paternidade, relacionamentos, outros interesses) influenciam e são influenciadas pela carreira. Utilizar essa integração de forma consciente nas tomadas de decisão profissionais.

Considerações

Ao abordar a carreira do profissional de Educação Física sob uma ótica fenomenológica e à luz de paradigmas contemporâneos como o Life Design a pesquisa ofereceu uma contribuição valiosa ao dar voz às experiências subjetivas desses profissionais, revelando não apenas os desafios enfrentados, mas também as estratégias de enfrentamento e os significados construídos ao longo do tempo.

Compreender a centralidade da adaptabilidade, da autorresponsabilidade e da formação contínua, bem como a complexa interação entre trabalho e vida pessoal, fornece subsídios para a reflexão sobre a formação inicial e continuada, as políticas para a profissão e o próprio planejamento de carreira individual. Reconhecer a resiliência e o comprometimento desses profissionais, apesar das adversidades, reforça a necessidade de valorização e de melhores condições de trabalho na área.

No universo da pesquisa

Embora relevante, o estudo apresenta limitações inerentes à sua abordagem qualitativa e ao tamanho da amostra, que não permitem generalizações. Sugestões para futuras pesquisas incluem:

  • Ampliação da amostra e contexto: realizar estudos semelhantes com amostras maiores e mais diversificadas, incluindo profissionais de outras regiões do Brasil, diferentes faixas etárias (início de carreira) e contextos de formação (como egressos de cursos EAD).
  • Métodos mistos: combinar abordagens qualitativas com instrumentos quantitativos (escalas de adaptabilidade de carreira, satisfação no trabalho, burnout) para obter uma compreensão mais ampla e permitir comparações estatísticas.
  • Estudos longitudinais: Acompanhar a trajetória de profissionais de Educação Física ao longo do tempo para entender como os significados e estratégias de carreira evoluem em diferentes fases da vida e da profissão.
  • Foco em subgrupos: investigar especificidades da carreira em nichos particulares da Educação Física (alto rendimento, gestão esportiva, saúde pública, grupos especiais) ou entre profissionais que migraram de área.
  • Impacto de fatores externos: analisar mais profundamente como fatores macro (políticas públicas, mudanças tecnológicas, crises econômicas) impactam a construção das carreiras na Educação Física.
  • Intervenções: desenvolver e avaliar programas de aconselhamento de carreira baseados no Life Design, especificamente para estudantes e profissionais de Educação Física.

Referências

BOTH, J. et al. Bem estar do trabalhador docente de Educação física da região sul do Brasil de acordo com os ciclos vitais. Revista Brasileira de Edução Física e Esporte, n. 28, p. 77-93, 2014.

SAVICKAS M.L.; PORFELi, E.J. Career adapt-abilities scale: construction, reliability, and measurement equivalence across 13 countries. Journal of Vocational Behaviour, n. 80, p. 661-673, 2012.

VOLTAN, D. Z.; MESSIAS, J. C. C. A carreira do profissional de Educação Física: um estudo fenomenológico. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 36, p. e36176336, 2022. DOI: 10.11606/issn.1981-4690.2022e36176336. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rbefe/article/view/176336. Acesso em: 25 ago. 2023.