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A revista Carta Capital desta semana (edição 266, de 12/11/03) marcou um golaço ao dedicar matéria de capa à guerra que vem sendo travada nos bastidores do jornalismo esportivo. A reportagem, de autoria de Maurício Stycer, é impecável. Sem tomar partido de nenhum lado da refrega, o jornalista dá voz aos contendores e produz um texto abordando todos os aspectos relevantes da questão.

De um lado, Armando Nogueira, Juca Kfouri, José Trajano, Tostão e Jorge Kajuru. De outro, Milton Neves, Flávio Prado, Chico Lang e Roberto Avallone. No centro da disputa, uma questão simples e antiga: jornalistas podem fazer merchandising e, ao mesmo tempo, praticar a profissão com independência e credibilidade? Os do primeiro bloco, acham que não dá para conciliar jornalismo com a função de garoto-propaganda. Os do segundo time, adeptos da prática, defendem, cada qual com seu argumento, a idéia de que o jornalista não fica comprometido ao anunciar produtos ou fazer os chamados "testemunhais".

"Um faz-de-conta"

A questão pode ser simples e antiga, mas a verdade é que a guerra está ficando cada vez mais quente. Nas últimas semanas, uma dança das cadeiras dos apresentadores dos principais programas esportivos da TV brasileira teve como pano de fundo justamente essa disputa. Demitido da TV Gazeta, onde comandava o Bola Redonda, Roberto Avallone (o único que não foi entrevistado, porque, segundo a revista, não foi localizado) substituirá Juca Kfouri no Bola na Rede, da Rede TV!. Kfouri foi demitido pelo presidente da emissora justamente por se recusar a fazer qualquer tipo de merchandising. O lugar de Avallone será ocupado por Flávio Prado, que estava no Cartão Verde, da TV Cultura, e se rendeu ao merchandising. Kfouri, por sua vez, ficará com a vaga de Flávio.

Pode-se dizer que a troca de cadeiras é o lado "público" da batalha. Nos bastidores, como bem retrata a reportagem, a temperatura sobe, envolvendo processos entre os vários jornalistas, boatos e até um dossiê, sobre Juca Kfouri, entregue por Milton Neves a diversos veículos de comunicação.

O ponto alto do material produzido por Stycer sem dúvida é a seqüência de entrevistas com os jornalistas envolvidos. A partir das respostas, é possível entender com clareza a argumentação de cada lado. Da parte dos que não aceitam fazer merchandising, o argumento central é o mesmo defendido por este Observatório: jornalismo é uma coisa, propaganda é outra, bem diferente. Quando as duas coisas se misturam, a credibilidade do jornalista ou do veículo fica irremediavelmente comprometida.

O experiente Armando Nogueira, defensor desta tese, faz, porém, uma ressalva: diz aceitar o merchandising em programas de ficção ou entretenimento – "ali é um faz-de-conta" – e defende a idéia de que transmissões esportivas são entretenimento, não jornalismo. Já os programas esportivos, Nogueira os classifica de jornalísticos e não aceita o procedimento: "Conspurca a informação", explica o mestre.

Brahmas da Antárctica

Os três defensores da prática de misturar informação e propaganda têm argumentos diversos. Milton Neves inverte a questão e garante que o fato de fazer propaganda não lhe tira a credibilidade: se isto fosse verdade, diz, não estaria no ramo desde 1977, contratado hoje por diversos veículos, como a Rádio Jovem Pan, a revista Placar, a rede Record e o jornal Agora. Segundo Neves, a questão deve ser resolvida pelas emissoras, e não pelos jornalistas.

Chico Lang, colega de Avallone no Mesa Redonda, explica que quando faz testemunhais não é o "jornalista Chico Lang" que vende os anúncios, mas o "personagem Chico Lang". Ele acredita que o telespectador entende perfeitamente essa transmutação. E argumenta em outra direção: fazendo propaganda, o jornalista não precisa se pendurar em cinco ou seis empregos, abrindo vagas e ampliando o mercado de trabalho.

Flávio Prado é um caso à parte – converteu-se após anos de intransigência: "Num primeiro momento, eu era tão rigoroso quanto o Juca". Hoje, não aceita fazer propaganda de bebida, cigarro, bingo ou empresas de dirigentes esportivos, nem envolver em seus merchandisings os convidados do programa que comanda. Flávio defende o procedimento com um argumento, digamos, mais "coletivo": fazendo propaganda, acredita estar ajudando a empresa em que trabalha e trazendo recursos para a manutenção do programa e, conseqüentemente, "de um monte de gente". Ele reconhece que se trata de uma "capitulação", mas argumenta que "se não fizer, alguém vai fazer", e pelo menos impõe algumas restrições éticas à prática.

Como se pode perceber, nenhum dos argumentos anteriores rebate diretamente a questão teórica que está em debate. Neves diz que sua credibilidade está intacta porque continua contratado por grandes empresas – nada garantiria, em última análise, que ele fosse uma exceção à regra, mas o fato é que também pode bem ser que seus patrões o admirem justamente pelo desprendimento em se transformar em garoto-propaganda –; Flávio Prado é adepto do "mal menor" – nem por isso um mal, como ele mesmo, em sua envergonhada argumentação, admite; e Lang apregoa a interessante tese de que pode ser duas pessoas a um só tempo.

Tudo somado, só merece uma análise mais detida a argumentação de Armando Nogueira. O mestre parece perdoar os jornalistas que, apresentando programas de entretenimento – como ele julga ser uma partida de futebol – aceitam o merchandising. O problema aí reside não na correta avaliação de que entretenimento não é jornalismo, mas no fato de que o profissional deve saber separar as funções. Se o narrador Galvão Bueno, para citar um exemplo nacionalmente conhecido, se julga jornalista, poderia perfeitamente se preservar durante a transmissão de uma partida e deixar o merchandising a cargo de um locutor publicitário. Se, porém, ele analisar que é apenas o apresentador de um programa de entretenimento, tal qual Faustão, Gugu et caterva, não há realmente por que recusar ganhar um extra anunciando Antárticas ou Brahmas. Mas cuidando para não repetir o folclórico e finado presidente do Corinthians, Vicente Matheus, que em entrevista concedida ao vivo, por ocasião da comemoração de uma conquista de campeonato do Timão, sapecou a seguinte pérola: "Gostaria de agradecer à Antárctica pelas Brahmas que nos mandaram". 

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