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Não se acendia a chama nos Jogos de Olímpia. Portanto não existia, nem fazia sentido na época, o percurso da tocha transportadora da mesma. O atual cerimonial olímpico não teve um equivalente no longínquo passado; constitui uma tradição inventada, o que nada retira de sublimidade ao ritual e aos ideais nele incorporados. Os humanos são entes ficcionais: tudo na história da civilização é inventado para corresponder às ficções reguladoras do funcionamento social.
O ritual agora vigente surgiu nos Jogos de Berlim (1936), realizados no Terceiro Reich de malfadada memória. Apareceu como corolário da evolução do ideário e projeto olímpico e não tanto como instrumento da propaganda nazi, embora ela o tenha aproveitado. É, pois, questionável e ambivalente o historial do ritual dos Jogos e da sua simbologia. Por favor, sigam-me nas várias etapas da longa explanação!
Os Jogos de Olímpia duravam cinco dias. Abriam com o juramento dos atletas e dos seus próximos; no terceiro dia efetuavam-se os rituais sacrificiais aos deuses. Em nenhum dia acontecia o acendimento da chama, fosse por virgens ou mediante os raios do sol. Este é um imaginário elaborado, na contemporaneidade, pelos artífices do Olimpismo.
Os criadores do cerimonial colheram a inspiração na Antiguidade, nos jogos de algumas cidades, nomeadamente os de Atenas. Neles havia a corrida de tochas por equipas, ou seja, uma competição e não uma cerimónia! Esta é uma criação relativamente recente, posterior às primeiras edições dos Jogos da era moderna: Atenas (1896), Paris (1900), São Luís, EUA (1904) e Londres (1908). Neles não houve chama nem trajeto da tocha.
Os ideais da paz e fraternidade universais, tão caros a Pierre de Coubertin, ganham força e adesão após o trauma causado pela Primeira Guerra Mundial. A bandeira com os cinco anéis, a saudação, o juramento e o lema dos Jogos são oficializados em 1920 (Antuérpia) e 1924 (Paris). A dinâmica do espírito olímpico cresce paulatinamente. Assim, o comité dos Jogos de Amsterdão (1928) manda construir um estádio olímpico, com uma torre de 46 metros encimada por uma caldeira, na qual, pela primeira vez, a chama se acendeu e ardeu durante todo o certame. Começa ali o cerimonial do fogo sagrado, evocativo das dádivas de Prometeu aos humanos. Não foram então instituídos o percurso e a entrega da tocha, embora a medalha mandada cunhar pelos organizadores fizesse alusão a esse ideal apresentado por Coubertin nos Jogos de Estocolmo (1912). Foi preciso esperar pelos Jogos de Berlim (1936) para se assistir ao nascimento do cerimonial atual.
A Berlim tinham sido atribuídos os Jogos de 1916, anulados devido à guerra. Os alemães, excluídos das edições de 1920 e 1924 e readmitidos em 1928, receberam, em 1931, a incumbência de organizar a décima primeira olimpíada. Emerge na ocasião a figura de Carl Diem como secretário-geral da organização. O prestigiado teorizador do desporto e paladino dos ideais aristocráticos de Coubertin sugere a introdução do trajeto da tocha, ensaiado nos jogos germânicos de 1922, alternativos aos olímpicos. Vai mais longe e propõe um percurso, no total de 3 075 quilómetros, que ligaria o local arqueológico de Olímpia e Berlim. Para fundamento da sua proposta formula o conceito entusiasmante de que o fogo do espírito grego seria reavivado para resplandecer nos Jogos e iluminar a humanidade. O conceito obteve, em maio de 1934, o aval do COI, fascinado pela ideia de filiação do presente no passado.
É oportuno referir que Carl Diem não pertencia ao partido nazi; tinha-o por indesejável, devido à questão judaica. Todavia, a ascensão de Hitler ao poder, em janeiro de 1933, põe em perigo a realização dos Jogos; Diem e os seus pares convencem-no a utilizá-los como meio de afirmação internacional. A introdução do percurso da tocha é inclusive encarada como genial por Joseph Goebbels, ministro da propaganda. É fácil perceber a razão: o enredo da chama encaixava perfeitamente na ideologia nazi, segundo a qual os arianos tinham origem nos antigos gregos; vinha, pois, beneficiar e reforçar os laços com a Antiguidade e a tentativa de ligar Hitler a Zeus.
A chama chegou a Berlim no dia 1 de agosto de 1936, levada de Atenas num voo no final de 30 de julho. A entrada no estádio decorreu em clima de festa e exaltação nacional. A partir daquela altura o cerimonial do percurso da tocha e do acendimento da chama passa a figurar no programa adotado pelo COI para o decurso dos Jogos. Não cabe aqui abordar a quadratura ideológica nem as reações suscitadas por aquele facto na opinião internacional; pretendemos apenas registar o nascimento de uma tradição. Os dirigentes do COI saudaram a grandeza simbólica da iniciativa; e Coubertin viu nela a consumação da sua visão. Estava acrescentado um novo e excitante elemento à magia dos Jogos, não obstante a ambivalência dos fins que na ocasião serviu.
Não houve Jogos em 1940 e 1944, por causa da II Guerra Mundial. Voltaram em 1948; a abertura foi precedida pela viagem da chama de Olímpia a Londres, sem se levantar qualquer polémica em relação aos Jogos de 1936, como se não tivessem existido. Impôs-se a vontade de esquecer algo doloroso e de não beliscar um dos símbolos mais fortes e magnificentes do legado da Antiguidade; foi por isso suprimida a saudação, introduzida nos Jogos de Paris (4 de maio - 27 de julho de 1924), dada a manifesta afinidade com o cumprimento hitleriano. Enfim, a chama e a tocha olímpicas alumiam hoje a mensagem do cenário olímpico; e este prossegue o caminho da sua constante reinvenção.
(Para compor esta exposição recorri a dados contidos no ensaio de William Audureau: Le relais de la flamme olympique est-il une invention des nazis? Jornal Le Monde online, 5 de maio de 2024).
Jorge Bento
16.07.2024