Integra

Nascida e criada dentro de uma família materialista dialética não tive tempo de cultivar ilusões relacionadas a Papai Noel ou coelhinho da Páscoa. Mais do que fantasia de criança isso era considerado mentira e para o patriarca Rubio, a mentira não era uma verdade que se esqueceu de acontecer... era simplesmente uma imoralidade.

Passado mais de meio século de vida consigo hoje entender que a verdade é uma construção que demanda inteligência e capacidade de argumentação. Depende da concepção de mundo, do ponto de vista e, acima de tudo, do caráter de quem constrói a ideia a ser defendida. Mais recentemente passou a depender também de quem participa da conversa como interlocutor, ou, simplesmente, como ouvinte. Cada vez mais a verdade deixou de ser um ato construído pela razão para ser apenas uma questão de fé.

Desde que o covid-19 se tornou uma pandemia que fez o planeta se rever e se isolar tenho defendido a necessidade de repensar o esporte, e mais particularmente, os Jogos Olímpicos de Tóquio.

No princípio os organizadores negaram que haveria qualquer prejuízo à realização da competição, prorrogando ao máximo a notícia do adiamento, que só ocorreu depois da ameaça de boicote por parte de alguns Comitês Olímpicos.

Desde então ficou claro que já não haveria mais Jogos Olímpicos, aquela celebração quadrienal, pautada em um ritual mítico milenar criado na Grécia sete séculos antes de Cristo. Por mais que eu saiba que os Jogos contemporâneos não guardam quase relação alguma com essa celebração do passado, é justamente o imaginário heroico herdado dessa tradição, que move e mobiliza todo o negócio no qual são gastos os milhões de dólares do poder público e da iniciativa privada que bancam essa “festa”.

Exatamente, eu não tenho ilusões sobre o que sejam os Jogos Olímpicos da Era Moderna. Isso não quer dizer que eu não compreenda aquilo que mobiliza pessoas nos quatro cantos do mundo a se tornarem atletas. E mais, o que leva outras tantas pessoas menos habilidosas a se deslocarem para assistirem, no local do evento, os feitos quase divinos de atletas incríveis, os seres capazes de materializar a magia de um momento raro.

Ou seja, eu posso ser mobilizada por tudo o que a competição olímpica implica para o mundo, mas não sou ingênua.

Quando foi anunciado o adiamento, imediatamente pontuei que se realizados em 2021 os Jogos já não mais seriam olímpicos. Por uma simples razão: quebrou-se um ritual. Os rituais servem para conferir um pouco de sacralidade ao mundo profano em que vivemos. E a humanidade precisa, como nenhuma outra espécie, de celebrações que afirmem a própria existência. Por isso os batizados, os casamentos, os velórios. Há datas que marcam esses momentos. O Natal em dezembro, a Páscoa no primeiro final de semana de lua cheia da primavera (no hemisfério sul), o carnaval 40 dias antes e Corpus Christi, 40 dias depois. Os Jogos Olímpicos devem acontecer de 4 em 4 anos, faça chuva ou faça sol, com ou sem covid, haja ou não guerra.

Essa semana começou-se a falar abertamente sobre o cancelamento dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Finalmente. O negócio já está garantido. As companhias de seguro bancarão o prejuízo do cancelamento, o valor dos ingressos será devolvido a todos que já haviam comprado suas atrações.

Mas, pouco ouço falar sobre o ônus na vida de atletas. Não há seguro que cubra essa perda.

É tempo de se ter coragem e parar de mentir, de enganar, de protelar uma determinação que colocará fim a muitos projetos de vida, inclusive de pessoas que já tinham índice ou vaga garantida.

Isso sim seria uma atitude olímpica.