Sobre
O diálogo entre Antropologia e História, por vezes conflituoso, geralmente rende resultados frutíferos. É, talvez, dentro desse diálogo, que podemos encontrar uma das chaves de leitura possível do recém-lançado livro Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil da historiadora Ermínia Silva. Resultado de uma pesquisa apresentada como tese de doutorado ao departamento de História Social da Unicamp, esse livro descreve de modo pormenorizado o processo de organização e produção daquilo que ficou conhecido como circo-teatro, nas décadas 1870 a 1910, tendo como fio-condutor a trajetória do multi-artista Benjamim de Oliveira. O mergulho num extenso leque de fontes como jornais, revistas, depoimentos, além da bibliografia especializada, constitui um retrato rico das diversas relações tecidas entre circenses e os diferentes campos de produção cultural tais como a música, teatro, cinema e a crítica de arte, trazendo uma nova perspectiva aos estudo sobre a dinâmica artística em fins do século XIX e início do XX. 2 O pressuposto da autora, tão atual quanto pertinente para se entender a dinâmica cultural desse período, é que o circo, longe de uma entidade fechada em suas tradições, conforma-se em sua formação como espetáculo híbrido, agregando diversas modalidades artísticas. Não foram raras, porém, as discussões em torno dos elementos que as novas trupes incorporavam. Desde seu nascedouro, na Europa no século XVIII, a adoção da comicidade falada nas pantomimas e momices dos palhaços em companhias circenses causou debates acirrados em favor daquilo que certos críticos e artistas defendiam como "circo puro": apenas habilidades físicas e destreza com animais, sem uso da palavra, eram válidas. 3 Mais do que tomar partido nesse debate, a autora, compreende a arte circense de modo ampliado, como fenômeno que percorreu e (ainda percorre), durante a sua formação, o tenso diálogo entre a preservação de suas tradições e a incorporação de novas tecnologias. Nesse sentido, segundo a historiadora, "os circenses" devem ser compreendidos como um grupo que articula "uma estrutura, a princípio entendida como um núcleo fixo, com redes de atualização, envolvendo matrizes e procedimentos em constante reelaboração e ressignificação" (p. 25). É essa noção flexível do métier circense que permite à autora perscrutar a formação do circo de modo diverso, em suas mais variadas relações com outros campos artísticos. 4 Por meio de um breve histórico sobre o surgimento do circo, Ermínia Silva, demonstra que as famílias circenses quando aportaram no Brasil, em meados do século XIX, já carregavam em suas bagagens um espetáculo múltiplo, com números eqüestres, acrobacia, ginástica, teatro - cenas cômicas, operetas, pantomimas, variedades, entre outros. Em solos brasileiros, ao mesmo tempo em que o circo preservava a estrutura advinda da Europa, agregava e reinterpretava os novos elementos locais. 5 É nesse contexto, de início da arte circense no país, que um negro nascido forro fugiu de sua cidade natal com Circo Sotero, transformando-se, alguns anos depois, em um famoso ator, palhaço, cantor e instrumentista, entre os maiores do Brasil. A trajetória de Benjamim de Oliveira, mais do que fruto de uma genialidade, era expressão de uma educação da prática circense denominado pela autora de processo de "formação/ socialização/aprendizagem". Nesse processo, crianças na mais tenra idade aprendiam as diversas modalidades artísticas por meio da transmissão oral de práticas e saberes. Sem desmerecer a grandiosidade de Benjamin, a historiadora, demonstra, que trajetórias similares à dele foram inúmeras.