Cocebagem Filosófica: Funções e Significados da Aula Livre na Escola
Em IX EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
Introdução
Este trabalho é fruto de uma série de reflexões que se seguiram durante as aulas da turma 15 A, do curso de especialização em Educação Física escolar, da Universidade Federal Fluminense. Consiste portanto, numa tentativa de apresentar de maneira razoavelmente ordenada, minimamente clara e resumida, um pouco dos conteúdos que foram debatidos.
Dessa maneira, gostaria de dedicar esse breve artigo aos companheiros de turma com os quais tive a honra e o prazer de compartilhar essa enriquecedora experiência, e que por motivos óbvios, não podem ser aqui listados nominalmente, mas a quem devo todos os créditos por este trabalho, sem mencionar, obviamente, os professores que com suas cotidianas lições de humildade, impulsionaram essa valiosa aprendizagem. Tudo isso, mais que um agradecimento, é uma singela homenagem e o reconhecimento público, que de tão grande e sincero não caberiam numa simples nota de rodapé, sobretudo pelo conhecimento que pude (re) elaborar a partir das muitas e animadas discussões.
Cena cotidiana de uma escola: Desafios metodológicos
Numa rápida espiada na sala de professores de qualquer escola, pode-se facilmente notar um tipo de discurso quase homogêneo proferido pelos professores. Trata-se de discursos acerca dos alunos. Discursos esses que na sua esmagadora maioria dão conta de denunciar o desinteresse, a desmotivação, a indisciplina e a falta de compromisso por parte dos alunos. Esse quadro tão comum e corriqueiro em nossas escolas, traz à tona um problema que querem nos fazer acreditar que está adormecido, e que por isso mesmo não tem sido enfrentado com a devida coragem pelos profissionais que pensam e fazem a educação: o anacronismo, ineficiência e inadequação dos métodos e conteúdos da escola.
É pública e notória a grande quantidade de críticas endereçadas à instituição escolar, ao mesmo tempo em que podemos notar, paradoxalmente, uma recusa em discutir, questionar e principalmente repensar os procedimentos de ensino já há muito cristalizados e consolidados em seu interior ao longo desses muitos anos de existência.
Nos impressiona ainda mais a constatação do fato de que os profissionais que nela atuam, especialmente os professores, oferecem enorme resistência a qualquer proposta que aponte para a necessidade de tais mudanças. A ineficiência que deveria instaurar um ambiente de insatisfação generalizada, sobretudo com a forma de organização e funcionamento das escolas, acaba desencadeando uma inversão de hierarquia ética, ou seja, ao invés de buscar o redimensionamento das escolas, se estabelece um cômodo ambiente de crítica desconstrutiva e pejorativa; de culpabilização do aluno.
Não estou com isso, tentando vitimizar o aluno e diabolizar o professor, ao contrário, na posição de professor, tenho plenas condições de visualizar e reconhecer os percalços que tem de enfrentar cotidianamente essa pobre categoria profissional. Questões que vão desde baixos salários até a completa falta de condições de trabalho. Para além disso, o que estou tentando condenar aqui, é a apologia melancólica da tristeza; expressa na transferência de responsabilidade pela frustração do processo de ensino, para um dos mais prejudicados com tamanha ineficácia: o aluno.
Direcionar a culpa, ao vetor mais desprivilegiado da escola; é reproduzir e endossar uma relação de poder que já é suficientemente assimétrica; que de tão assimétrica, já não mais precisa da incompetência docente a todo tempo trabalhando para reforçá-la. E para aqueles que a todo instante, disparam suas armas, camufladas sob a forma de uma insistente crítica de que os "alunos não querem nada", vamos recorrer ao pensamento do sociólogo francês Michel Maffesoli (2004), que ao longo de seu livro "A parte do Diabo", tenta nos convencer de que a omissão é uma forma de engajamento político, acentuando o fato de que a revolta germina, ora ruidosa; ora silenciosa; ora declarada; ora sigilosa.
Trata-se de uma possível "revolução silenciosa", que estaria se disseminando nas escolas. Dito de outra forma, aquele já conhecido "jeitinho brasileiro"; aquela maneira de não cumprir as tarefas, não respeitar a carga horária; desobediência às determinações; a "cocebagem", para usarmos um jargão de linguagem popular, seriam maneiras de burlar um sistema imobilizador. Em última análise, seria uma forma de transgressão, de rebelião e revolta, mas uma revolta não declarada.
O que Maffesoli tenta, ao longo de quase todo seu projeto intelectual (2001, 2003), é nos chamar atenção para o fato de que esse espírito subversivo e transgressor, que às vezes apresenta-se sob uma pseudopassividade, estariam agora, disseminando-se, ou mesmo disseminado, por todo o espectro social, reforçando o impacto do domínio emotivo na vida da nossa sociedade. A decorrência daí é evidente, pois em alguma medida, o comportamento que os alunos apresentam em sala de aula, a que os professores não cansam de se queixar, pode ser uma forma que esses encontram de expressar sua indignação, diante de todo esse sistema de repressão a que são submetidos, ainda que nem sempre essa indignação atinja a esfera do consciente.
Entretanto, apenas reconhecer isso também não resolve os males da educação, ao mesmo tempo em que esse reconhecimento nos remete a novas questões, como por exemplo sobre o que deve ser feito a partir de agora. Obviamente, não tenho a pretensão de dar conta de tamanhos desafios. O que pretendo é, tão somente, sugerir algumas poucas possibilidades metodológicas, que pautadas em concepções teóricas diferenciadas possam ao menos tentar suprir algumas possíveis lacunas.
Esporte, lazer e informalidade: A "cocebagem filosófica"
A escola é fundamentada sob a égide de uma racionalidade totalizadora, que desencadeada ao longo do projeto iluminista da modernidade, sempre vislumbrou como projeto a dominação o controle racional; daí sua inescapável vinculação ao mundo do trabalho e da produção (ARROYO, 2002).
Uma forma de interpretar esses acontecimentos, que particularmente têm me atraído, é sob a luz da teoria do processo civilizador de Norbert Elias, que em poucas palavras, pode ser caracterizado como um longo processo não-planejado que têm por fundamento básico essencial a pacificação da cultura a partir do controle das emoções (ELIAS, 1993). Dito de outra forma, é uma tentativa de empurrar para a vida privada as manifestações das pulsões emotivas e passionais. Trata-se portanto de um deslocamento dos comportamentos "biossociais" para a margem da sociedade; da vida pública (ELIAS, 2001).
Entretanto, todo esse processo tem um preço, ou seja, pressupõe um custo psicológico relativamente grande, pois enquanto avança o processo de controle dos instintos pela racionalidade, maior seria o desarranjo psíquico desencadeados nas pessoas que a ele se submetem. Por isso mesmo, quanto mais civilizada uma sociedade maior é a exigência de espaços especificamente destinados à vivência de emoções. É nesse sentido que as instituições esportivas preenchem suas funções, que segundo Proni (2002), são comumente categorizadas em "funções manifestas", que dizem respeito a supressão das necessidades de atividade física e de aprendizagem moral; as "funções latentes", que seriam a compensação do estresse provocado pela rotina de trabalho e a "funções agonísticas" que dizem respeito a satisfação "dos instintos mais profundos do ser humano, o instinto combativo, que está relacionado à luta pela sobrevivência e ao impulso sexual" (p.45).
O mesmo autor, apresentando as proposições teóricas de Jean-Marie Brohm, lembra-nos que as funções do esporte são "múltiplas, contraditórias, complexas e evolutivas" (ibid.). O que não chega a se opor fundamentalmente às categorias funcionais expostas anteriormente, apenas condiciona sua classificação de acordo com determinadas relações sociais, de ordem econômica, sociopolítica, psicosocial e mitológica, que passam a engendrar dimensões de análise, que juntas, fundamentam toda análise de Brohm.
Nos limites a que esse trabalho se propõe, me contentarei ante as "funções agonísticas", por acreditar que estas admitem uma ordem da realidade e um modelo de análise sociológica na ordem do incognoscível; fundamental para um projeto teórico que pretende superar os desgastados pressupostos positivistas e racionalizantes, e considerar o ser humano em sua totalidade estruturante, e que reconheça os poderes dos afetos, dos sentidos, da subjetividade e da imortal memória de nossa animalidade.
Nesse sentido, privilegiaremos as funções psicosociais do esporte expressos na forma de uma canalização da energia social e transmutação da energia psíquica agressiva em uma forma controlada, permitida e por isso mesmo aceitável. Uma manifestação cultural que permite a produção e a descarga de emoções.
Evidentemente que a instituição escolar, condicionada, ao menos em alguma medida, pelo tipo de organização geral e pelos valores culturais que regem a sociedade, reproduz esse mesmo processo. Em outras palavras, se em uma sociedade que repousa na permanente sublimação dos impulsos; do aprisionamento da energia corporal e agressiva, saber como lidar com a violência é uma grande questão, por conseqüência também o é para a escola.
Diante da rigorosa exigência de auto-regulação posta nas escolas, seria desejável, em contrapartida, o oferecimento e disponibilização de um tempo/espaço que possibilitasse o extravasamento das energias e pulsões contidas por esse processo civilizador.
Esse extravasamento não pode ser compreendido como compensação às tensões provenientes desse esforço civilizador, já que o próprio Elias (apud. LUCENA, 2001), chama-nos atenção para o fato de que as vivências e experimentações emotivas do esporte também geram níveis de tensão, já que o esporte está sujeito a um sistema de regras racionalizáveis; regularmente organizadas, representando, por conseqüência, uma experiência institucionalmente organizada e regulamentada. Lucena (op.cit.), a partir de uma aproximação com a sociologia configuracional de Elias, nos esclarece que "a prática de esporte como uma ação só é possível a partir do exercício dos controles" (p.53) o que acaba reforçando a caracterização das pistas, ginásios e estádios como espaços de "descontrole controlado".
Isso sublinha as características do esporte, não só por suas capacidades e qualidades catárticas, mas também por sua violência ritualística, de forma que os instintos e paixões reprimidas possam se liberar sem perigo, mas gerando tensões. Não se trata de erradicar a violência, mas de torná-las suportáveis através de sua ritualização.
À guisa de conclusão
A escola a todo tempo exige dos alunos um "refinamento das atitudes", que só é possível após a internalização dessa auto-regulação, que por sua vez também só é possível se houver possibilidades das vivências e tensões emocionais diferenciadas. A Educação Física na contramão dessas análises sociológicas, tenta a todo instante se equiparar as demais disciplinas escolares, apropriando-se dos elementos mais retrógrados que nelas residem.
Penso, que para longe disso, as aulas de Educação Física podem e devem ser espaços da busca pela dessublimação repressiva dos corpos e dos instintos, atendendo o mínimo do desejo de satisfação presente nos alunos. É uma maneira, talvez discreta, de atacar a razão tecnicista, que como afirma Certeau (2004), pensa ser possível organizar milimetricamente o mundo, esquecendo-se que os homens podem escapar silenciosa e cotidianamente desse nível de conformismo. A valorização do lazer, do ócio, da informalidade, da preguiça e de todo e qualquer tipo de "cocebagem" é uma forma de escapar da ética superprodutiva e controladora.
Essa "cocebagem" é filosófica, por isso mesmo teleológica, e representa essa escapada silenciosa de que nos fala Certeau (op.cit.); representa mais diretamente o que estou metodologicamente propondo (DIAS, 2004a e 2004b): a total e completa subversão da lógica intelectualista e racionalizante arraigada na escola; um completo e absoluto abandono dos padrões pedagógicos de ensino instituídos e canonizados, que sacrossantificam essa repugnante filosofia ética do trabalho, da obrigação e da privação que tenta nos ensinar a sofrer ao invés de desfrutar.
É a partir desse repúdio, que podemos oferecer aos nossos alunos momentos de lazer, de preguiça, de improdutividade, de uma "cocebagem" generalizada, em que estes, não estejam sob o jugo dessa racionalidade que a tudo pretende controlar. Por fim, insisto na idéia de que o "deixar jogar"; os "dias livres" nas aulas de Educação Física são dotados de funções e valores educativos; e mesmo antropológicos, com rico potencial de redimensionarem as aulas numa nova perspectiva do lazer e da informalidade.
Obs. O autor, professor Cleber Augusto Gonçalves Dias (tiocleber@aol.com) é pesquisador do Grupo ANIMA e do Instituto Virtual do Esporte (FAPERJ), professor da Prefeitura Municipal de Mangaratiba e da Prefeitura Municipal de Rio das Ostras e aluno do curso de pós-graduação em educação física escolar/ UFF
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