Integra

O distanciamento social, que está longe de ser isolamento, começou na Pensão Simpatia, minha casa, há 71 dias. Numa conta rápida já se vão quase dois meses e meio em que a única atividade social possível é a corrida rápida ao mercado e, vez por outra, uma visita relâmpago à farmácia. Sinto uma falta imensa de entrar numa padaria com gentes fazendo do café um pretexto para se encontrar, do pão francês quentinho, dos abraços e sorrisos trocados no encontro com amigos, de chegar na universidade e cruzar com colegas e estudantes, gente sempre tão cheia de vida e energia. Sempre gostei de abraços, expressão maior de afeto e de amizade. O aceno ou o aperto de mãos são ótimos indicadores de um tipo de contato social pautado pela formalidade, ainda que com toque.

Enfim, nesses quase dois meses e meio distante daquelas e daqueles a quem me relaciono socialmente com abraços, fizeram e fazem pensar e repensar a dimensão simbólica dos gestos e da liberdade.

Certa vez li um texto do psicanalista Contardo Caligaris sobre a restrição de liberdade que me deixou muito inquieta. Falava sobre o que é perder a mobilidade, a possibilidade de ir e vir para onde se deseja, e o impacto disso na subjetividade humana citando para isso o livro Trem noturno para Lisboa. Isso foi durante as prisões do mensalão e desde aquela reflexão sobre o livre arbítrio não me abandona.

Quando eu podia sair no momento em que bem entendesse essa reflexão me parecia mais filosófica do que agora em que não só não posso tomar um chá na padaria aqui perto de casa, como também não posso acompanhar nenhum campeonato das modalidades esportivas que mais aprecio. Ou seja, em tempos de isolamento somos levados a prestar atenção em coisas que antes pareciam absolutamente naturais sem jamais ter sido.

Nesses tempos de lei seca esportiva fica evidente a falta que o esporte, com E maiúsculo faz. Comercializado como mercadoria barata por uns ou banalizado como uma competição por outros parecia tão simples de se ter, e tão óbvio de se ver, que nem se cogitava a possibilidade dele não existir. E agora, diante de sua ausência é possível afirmar que o esporte é, certamente, muito mais do que uma competição. O esporte é um fenômeno tão fundamental à sociedade como a arte. Sua potencialidade reside na transcendência do humano pela superação do limite do corpo e da alma de quem se dedica a busca a perfeição do gesto que produz o recorde, a vitória e a derrota.

Entretanto, apreciar um jogo com essa disposição requer tanta educação quanto apreciar um quadro de Dalí ou Duchamp, uma poesia de Augusto de Campos, uma peça de Ionesco, uma composição de Stravinsky, Arrigo Barnabé ou Frank Zappa, ou ainda um filme do Buñuel ou do Godard. A incapacidade de reconhecer a beleza do movimento reduz o esporte ao resultado do jogo, perdendo assim todo o complexo simbólico que cerca essa criação humana.

E então temos diante de nós uma tríade perfeita: educação, esporte e arte. Não é à toa que, nos regimes totalitários tenta-se cooptar artistas, atletas e intelectuais para que estes usem a potencialidade de sua criação na veiculação de ideias que fogem aos parâmetros do diálogo democrático. E, diante da impossibilidade da cooptação, destroem-se escolas, ateliês, produtoras, clubes e times na tentativa de punir a expressão livre e criadora.

Se os Titãs já proclamaram que bebida é água e comida é pasto, eu diria que a gente não quer só comer, a gente quer comer e que poder jogar.