Integra
Não vou chover no molhado e gastar esse espaço para retomar as origens do esporte. Nem tampouco vou bater na tecla de que esse ambiente foi, e ainda é, dominado por homens, homens de uma determinada cor de pele e classe social que afirmam uma estrutura de poder que os coloca acima do bem e do mal. Isso representa dizer que tudo aquilo que não faz parte do micro universo construído por esse grupo pode ser considerado errado, incerto, impuro ou até mesmo, desviante, ainda que os “outros” sejam a maioria. É assim que se constrói o preconceito e a discriminação que estão presentes em diferentes setores da sociedade.
Preconceito significa um julgamento prévio sobre alguma coisa. Isso implica fazer um juízo antecipado sem o necessário processo de verificação sobre a veracidade do que se julga. Isso quer dizer ter uma opinião a princípio, independentemente de provas. A partir daí se dá a discriminação, uma vez que se passa a distinguir uns de outros, mesmo sem haver razões fundamentadas para tanto.
Discriminação e preconceito são construções sociais e a linguagem é o meio pelo qual eles se manifestam e atuam nos grupos sociais. A inversão desse processo se dá pelo mesmo caminho.
Vejam o que ocorre por esses dias em relação ao número 24 na camisa de alguns atletas. Duas dúzias que consagraram o astro Kobe Bryant, de quem nunca foi julgada a virilidade e a masculinidade. No país onde o basquete é uma instituição nacional pouco importa se o melhor joga de rosa ou se ostenta esse ou aquele número. No Brasil, durante décadas o jogo do bicho era uma versão possível para quem diariamente queria testar as habilidades sobre uma possível interpretação de sonhos ou de fatos. E para facilitar a vida de quem imaginava ter o poder da hermenêutica cotidiana grupos de números correspondiam a animais. E, aquele nobre animal chifrudo, rei das florestas temperadas do Norte, o veado, ganhou o número 24. E assim se construiu um estereótipo.
A filósofa Marilena Chaui define o estereótipo como um conjunto de crenças, valores ou atitudes que são transmitidos de geração para geração, sem questionamentos. Isso leva a uma cristalização de ideias sobre as pessoas e o mundo.
Então, assim diante da possibilidade de ter que encarar a discriminação e o preconceito, disfarçados em forma de piadas, muitos jogadores fugiram da camisa 24. Mas os tempos mudaram. E se essa associação indevida permaneceu na cabeça de alguns seres que pouco ou nada evoluíram com os tempos atuais, outros resolveram por um fim a uma “brincadeira” que nada tem de hilária.
Se o esporte é um palco privilegiado onde os dramas da sociedade são apresentados, foi dada a oportunidade para a reflexão sobre como a discriminação e o preconceito se manifesta em campos e quadras. Seja no número 24, seja na escolha de uniformes mais ou menos justos para homens ou mulheres, o que se espera é que o esporte avance juntamente com os muitos movimento sociais de direitos. Não há mais espaço para retrocessos quando a pauta atual já está no respeito ao feminino ou na incorporação de atletas trans.
Aproveito ainda para lembrar da passagem de 1 ano do incêndio que tirou a vida de jovens confinados em containers. Como lembrou Juca Kfouri, ainda é tempo de se tratar as famílias dos jovens que se foram com o respeito e a dignidade que pouco impera no futebol. Lembraremos sempre que atleta não é mercadoria. Que jovens não são investimentos materiais que rendem dividendos no processo de compra e venda. Os mesmos dirigentes que desprezam esse processo são aqueles que se referem com desprezo a uma camisa 24.