Competição: o Espelho de Narciso
Por Adriano Mastrorosa (Autor).
Em VI EnFEFE - Encontro Fluminense de Educação Física Escolar
Integra
Muitos aspectos presentes no cotidiano nos levam a encarar a competição como sendo uma característica natural, presente na vida do ser humano e portanto devendo ser encarada como inevitável.
Por outro lado, se tomarmos o cuidado de observar como a sociedade valoriza e incentiva a competitividade podemos verificar que tal atitude é resultado de um esforço coletivo em mostrar as grandezas do ego e se colocar em posição de destaque e, portanto, uma construção social.
Longe de querer filosofar sobre a predominância natural ou cultural da competitividade, acreditando que ambos são significativos e presentes, o trabalho a seguir se propõe a fazer uma pequena discussão sobre a influência da competitividade e seu excesso na vida cotidiana, tentando traçar uma correlação entre competição e narcisismo, se apoiando para tal em alguns textos de psicanalistas contemporâneos que pensam a sociedade e experiências empíricas sobre o assunto.
Pretendemos discorrer sobre a necessidade de competir e sobretudo de vencer, os prejuízos e implicações causadas por estas ações e a importância que assume nos dias atuais do ponto de vista psicológico e social.
A competição coroando o narcisismo
A competição está presente em nossas vidas desde muito cedo. Se levarmos em conta que o espermatozóide mais ágil e rápido será aquele que fecundará o óvulo, podemos dizer que a competição está presente antes mesmo de sermos gerados.
Ainda na infância somos submetidos às mais diversas comparações, o filho mais obediente, a criança mais comportada, a que come mais ou chora menos (1)...
Aos sete anos de idade muitos pais colocam seus filhos em escolinhas dos mais diversos esportes e ao final de cada jogo o precoce atleta é questionado: "...quem ganhou?", "quantos pontos você fez?" e assim por diante (2).
Na escola as coisas não mudam muito, sempre existe o melhor aluno, as melhores notas, mais inteligentes, o primeiro da classe.
Vestibular é a copa do mundo para o estudante, é a hora de provar que todo esforço valeu a penaa (3), é hora de brilhar e conquistar o grande prêmio, afinal apenas aqueles que estiverem no topo da lista terão o direito de ingressar na universidade escolhida.
Depois vem o primeiro emprego, a escolha do parceiro, o convívio social e continuamos tendo de provar nosso valor, tendo de ser campeões, estar sempre na frente e jamais perder...
Se prestarmos atenção, a todo o momento estamos comparando nosso desempenho, confrontando opiniões, medindo performance. Buscamos ganhar a qualquer custo, queremos ser sempre os melhores e qualquer segundo lugar soa como derrota.
A competição é a tônica dos dias atuais, a vitória tem seu valor exacerbado e qualquer resultado diferente do idealmente desejado, se torna sinônimo de fracasso.
Dentro da cultura do narcisismo fundamentada por Lasch (1984), percebe-se uma supervalorização do eu (4) e uma excessiva preocupação com a individualidade, a comparação se torna instrumento que certifica a própria grandiosidade.
Qualquer demonstração de superioridade ou fatos que evidenciem as qualidades do sujeito serve de gás, inflando seu ego e lhe garantindo uma melhor posição diante da sociedade.
Espera-se que o indivíduo seja um vitorioso e este constrói sua imagem segundo esta prerrogativa, buscando a todo custo parâmetros que o aproximem da imagem por ele criada5. Segundo Caligaris (1996,p.89) "... é a dita cultura do narcisismo, em que o fundamento do laço social são estereótipos que todos queremos espelhar."
Cria-se a necessidade de se autotestar a todo momento, na busca de aproximar-se do modelo vitorioso criado. Neste processo, qualquer tropeço é encarado como desastre pois mostra uma face indesejada, expõe nossa imperfeição e nos afasta do estereótipo concebido de perfeição e grandiosidade.
Para corresponder à condição esperada e desejada, esconde-se os aspectos negativos e se ressalta os positivos.
O indivíduo passa a viver fora da realidade, a se imaginar com características fantasiosas, passando a existir, segundo Birman (1999), na exterioridade, evidenciando a estetização do eu. Neste momento, ao outro cabe o papel de expectador, admirador e enaltecedor das virtudes do personagem criado.
"Na cultura do espetáculo, o que se destaca é a exigência infinita da performance, que submete todas as ações daquele. De novo aqui se confunde o ser com o parecer, de maneira que o aparecimento ruidoso do indivíduo faz acreditar no seu poder e fascínio. Nessa performance, marcada pelo narcisismo funesto em seus menores detalhes, o que importa é que o eu seja glorificado, em extensão e em intenção. Com isso, o eu se transforma numa majestade permanente, iluminado que é o tempo todo no palco da cena social".(Birman,1999 p.168)
Temos, pois, a cultura do espetáculo e a infinita necessidade da performance.
As exigências para consigo em busca da performance são cada vez maiores uma vez que o desejo jamais poderá ser satisfeito (kehl,1996). A corrida atrás de uma imagem idealizada, impossível de ser alcançada, resulta em frustração para o ego. Sempre haverá alguém mais novo, mais bonito, mais veloz, mais...
A competição naturalmente presente na vida do indivíduo é incentivada pela sociedade "... o sujeito da cultura do narcisismo é tão socialmente determinado quanto qualquer outro" (Ibidem). Incentivada muitas vezes a ponto de provocar no indivíduo um sentimento de fracasso absoluto por não conseguir atender ao apelo constante de performance. Sentimento este, capaz de contribuir para que o indivíduo se torne vítima de psicopatologias como depressão, síndrome do pânico e toxicomanias, comuns nos dias de hoje.(Birman, 1997)
Outro fato possível de ser verificado quando há um excesso de preocupação com a performance, com a busca de resultados e a conseqüente individualização do sujeito é a dificuldade encontrada pelas pessoas em interagirem umas com as outras e criarem laços de amizade e companheirismo, uma vez que a preocupação em se destacar ofusca o interesse pelo outro e não oportuniza o compartilhamento fraterno de problemas, alegrias, preocupações e anseios em nome do bem comum e do crescimento mútuo. O outro é o adversário e não o companheiro de caminhada.
Temos, então, uma sociedade cada vez mais preocupada consigo, indiferente aos assuntos daqueles que dividem com elas a mesma rua, o mesmo escritório, enfim, o mesmo espaço. Estão tão próximas fisicamente, mas infinitamente distantes no convívio diário.
Considerações finais
Se Tomarmos por base a natureza e sobretudo a luta pela vida comumente vista em documentários sobre a vida selvagem, onde animais mais fortes e ágeis devoram os menos em nome da sobrevivência, é fácil traçar um paralelo e encarar a acirrada competição dos dias de hoje como natural. O detalhe que muitas vezes esquecemos é que nós, ao contrário dos animais, somos dotados de consciência e temos condições de garantir a nossa sobrevivência sem termos necessariamente de devorarmos uns aos outros. Ao contrário, podemos colaborar com o próximo em nome do bem comum.
Independente de qualquer especulação filosófica a respeito da natureza competitiva ou não do homem, o incentivo da coletividade a este aspecto exacerba sua importância transformando irmãos em rivais, contribuindo com a distância entre os seres humanos e alimentando a cultura do narcisismo voltando o indivíduo para si.
Ao permitir e até valorizar a busca desenfreada pela vitória, cria-se socialmente um quadro em que a busca por sobrepujar o próximo impede qualquer possibilidade de convívio fraterno. Por outro lado, a derrota assume um caráter vexatório e indesejável. O processo perde o valor diante da necessidade de resultados positivos e é instalado o vale tudo em nome da exaltação do ego.
Faz-se necessário que evoquemos a nossa consciência, deixando de dar tamanho valor ao confronto e à competitividade junto aos nossos filhos e alunos, escolhendo entre a criação de gladiadores ou seres humanos capazes de construírem uma sociedade pautada na cooperação, na amizade, na solidariedade.
Notas
- Relações triangulares edípicas, disputa dos filhos pelo amor dos pais.
- Narcisismo dos pais refletido nas crianças. Os pais transferem seus desejos para os filhos.
- Os esforços do indivíduo e de todos que nele investiram (como os pais), dívida do indivíduo com aqueles que nele acreditaram e investiram.
- O termo Eu/Ego utilizados no texto, são entendidos conforme a definição psicanalítica do termo, definida por Freud e que pode ser consultada no Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Portalis (1998).
- Esta idéia corresponde ao termo Eu ideal criado por Freud em Para introdução do Narcisismo de 1914. Para maiores detalhes, examinar verbete em Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Portalis (1998).
Obs. O autor, professor (educação física) Adriano Mastrorosa é pós-graduado em sócio-psicologia pela FESP-SP e mestrando em educação: história, política, sociedade na PUC-SP
Referências bibliográficas:
- Birman, Joel. Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo: Editora 34, 1997.
- __________. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
- Calligaris, Contardo. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Editora Ática, 1996.
- Freud, Sigmund. Mal-estar da civilização. Rio de Janeiro. 1997
- Kehl Maria Rita. Psicanálise & mídia: Você decide... E Freud explica. In Chalhub, S. (org.) Psicanálise e o contemporâneo. São Paulo: Hecher, 1996.
- Lasch, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1984.
- Laplanche, Jean; Pontalis, Jean-Baptiste. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo. 1998