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Muitos aspectos presentes no cotidiano nos levam a encarar a competição como sendo uma característica natural, presente na vida do ser humano e portanto devendo ser encarada como inevitável.

Por outro lado, se tomarmos o cuidado de observar como a sociedade valoriza e incentiva a competitividade podemos verificar que tal atitude é resultado de um esforço coletivo em mostrar as grandezas do ego e se colocar em posição de destaque e, portanto, uma construção social.

Longe de querer filosofar sobre a predominância natural ou cultural da competitividade, acreditando que ambos são significativos e presentes, o trabalho a seguir se propõe a fazer uma pequena discussão sobre a influência da competitividade e seu excesso na vida cotidiana, tentando traçar uma correlação entre competição e narcisismo, se apoiando para tal em alguns textos de psicanalistas contemporâneos que pensam a sociedade e experiências empíricas sobre o assunto.

Pretendemos discorrer sobre a necessidade de competir e sobretudo de vencer, os prejuízos e implicações causadas por estas ações e a importância que assume nos dias atuais do ponto de vista psicológico e social.

A competição coroando o narcisismo

A competição está presente em nossas vidas desde muito cedo. Se levarmos em conta que o espermatozóide mais ágil e rápido será aquele que fecundará o óvulo, podemos dizer que a competição está presente antes mesmo de sermos gerados.

Ainda na infância somos submetidos às mais diversas comparações, o filho mais obediente, a criança mais comportada, a que come mais ou chora menos (1)...

Aos sete anos de idade muitos pais colocam seus filhos em escolinhas dos mais diversos esportes e ao final de cada jogo o precoce atleta é questionado: "...quem ganhou?", "quantos pontos você fez?" e assim por diante (2).

Na escola as coisas não mudam muito, sempre existe o melhor aluno, as melhores notas, mais inteligentes, o primeiro da classe.
Vestibular é a copa do mundo para o estudante, é a hora de provar que todo esforço valeu a penaa (3), é hora de brilhar e conquistar o grande prêmio, afinal apenas aqueles que estiverem no topo da lista terão o direito de ingressar na universidade escolhida.

Depois vem o primeiro emprego, a escolha do parceiro, o convívio social e continuamos tendo de provar nosso valor, tendo de ser campeões, estar sempre na frente e jamais perder...

Se prestarmos atenção, a todo o momento estamos comparando nosso desempenho, confrontando opiniões, medindo performance. Buscamos ganhar a qualquer custo, queremos ser sempre os melhores e qualquer segundo lugar soa como derrota.
A competição é a tônica dos dias atuais, a vitória tem seu valor exacerbado e qualquer resultado diferente do idealmente desejado, se torna sinônimo de fracasso.

Dentro da cultura do narcisismo fundamentada por Lasch (1984), percebe-se uma supervalorização do eu (4) e uma excessiva preocupação com a individualidade, a comparação se torna instrumento que certifica a própria grandiosidade.

Qualquer demonstração de superioridade ou fatos que evidenciem as qualidades do sujeito serve de gás, inflando seu ego e lhe garantindo uma melhor posição diante da sociedade.

Espera-se que o indivíduo seja um vitorioso e este constrói sua imagem segundo esta prerrogativa, buscando a todo custo parâmetros que o aproximem da imagem por ele criada5. Segundo Caligaris (1996,p.89) "... é a dita cultura do narcisismo, em que o fundamento do laço social são estereótipos que todos queremos espelhar."

Cria-se a necessidade de se autotestar a todo momento, na busca de aproximar-se do modelo vitorioso criado. Neste processo, qualquer tropeço é encarado como desastre pois mostra uma face indesejada, expõe nossa imperfeição e nos afasta do estereótipo concebido de perfeição e grandiosidade.

Para corresponder à condição esperada e desejada, esconde-se os aspectos negativos e se ressalta os positivos.

O indivíduo passa a viver fora da realidade, a se imaginar com características fantasiosas, passando a existir, segundo Birman (1999), na exterioridade, evidenciando a estetização do eu. Neste momento, ao outro cabe o papel de expectador, admirador e enaltecedor das virtudes do personagem criado.

"Na cultura do espetáculo, o que se destaca é a exigência infinita da performance, que submete todas as ações daquele. De novo aqui se confunde o ser com o parecer, de maneira que o aparecimento ruidoso do indivíduo faz acreditar no seu poder e fascínio. Nessa performance, marcada pelo narcisismo funesto em seus menores detalhes, o que importa é que o eu seja glorificado, em extensão e em intenção. Com isso, o eu se transforma numa majestade permanente, iluminado que é o tempo todo no palco da cena social".(Birman,1999 p.168)

Temos, pois, a cultura do espetáculo e a infinita necessidade da performance.

As exigências para consigo em busca da performance são cada vez maiores uma vez que o desejo jamais poderá ser satisfeito (kehl,1996). A corrida atrás de uma imagem idealizada, impossível de ser alcançada, resulta em frustração para o ego. Sempre haverá alguém mais novo, mais bonito, mais veloz, mais...

A competição naturalmente presente na vida do indivíduo é incentivada pela sociedade "... o sujeito da cultura do narcisismo é tão socialmente determinado quanto qualquer outro" (Ibidem). Incentivada muitas vezes a ponto de provocar no indivíduo um sentimento de fracasso absoluto por não conseguir atender ao apelo constante de performance. Sentimento este, capaz de contribuir para que o indivíduo se torne vítima de psicopatologias como depressão, síndrome do pânico e toxicomanias, comuns nos dias de hoje.(Birman, 1997)

Outro fato possível de ser verificado quando há um excesso de preocupação com a performance, com a busca de resultados e a conseqüente individualização do sujeito é a dificuldade encontrada pelas pessoas em interagirem umas com as outras e criarem laços de amizade e companheirismo, uma vez que a preocupação em se destacar ofusca o interesse pelo outro e não oportuniza o compartilhamento fraterno de problemas, alegrias, preocupações e anseios em nome do bem comum e do crescimento mútuo. O outro é o adversário e não o companheiro de caminhada.

Temos, então, uma sociedade cada vez mais preocupada consigo, indiferente aos assuntos daqueles que dividem com elas a mesma rua, o mesmo escritório, enfim, o mesmo espaço. Estão tão próximas fisicamente, mas infinitamente distantes no convívio diário.

Considerações finais

Se Tomarmos por base a natureza e sobretudo a luta pela vida comumente vista em documentários sobre a vida selvagem, onde animais mais fortes e ágeis devoram os menos em nome da sobrevivência, é fácil traçar um paralelo e encarar a acirrada competição dos dias de hoje como natural. O detalhe que muitas vezes esquecemos é que nós, ao contrário dos animais, somos dotados de consciência e temos condições de garantir a nossa sobrevivência sem termos necessariamente de devorarmos uns aos outros. Ao contrário, podemos colaborar com o próximo em nome do bem comum.

Independente de qualquer especulação filosófica a respeito da natureza competitiva ou não do homem, o incentivo da coletividade a este aspecto exacerba sua importância transformando irmãos em rivais, contribuindo com a distância entre os seres humanos e alimentando a cultura do narcisismo voltando o indivíduo para si.

Ao permitir e até valorizar a busca desenfreada pela vitória, cria-se socialmente um quadro em que a busca por sobrepujar o próximo impede qualquer possibilidade de convívio fraterno. Por outro lado, a derrota assume um caráter vexatório e indesejável. O processo perde o valor diante da necessidade de resultados positivos e é instalado o vale tudo em nome da exaltação do ego.

Faz-se necessário que evoquemos a nossa consciência, deixando de dar tamanho valor ao confronto e à competitividade junto aos nossos filhos e alunos, escolhendo entre a criação de gladiadores ou seres humanos capazes de construírem uma sociedade pautada na cooperação, na amizade, na solidariedade.

Notas

  1. Relações triangulares edípicas, disputa dos filhos pelo amor dos pais.
  2. Narcisismo dos pais refletido nas crianças. Os pais transferem seus desejos para os filhos.
  3. Os esforços do indivíduo e de todos que nele investiram (como os pais), dívida do indivíduo com aqueles que nele acreditaram e investiram.
  4. O termo Eu/Ego utilizados no texto, são entendidos conforme a definição psicanalítica do termo, definida por Freud e que pode ser consultada no Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Portalis (1998).
  5. Esta idéia corresponde ao termo Eu ideal criado por Freud em Para introdução do Narcisismo de 1914. Para maiores detalhes, examinar verbete em Vocabulário de psicanálise de Laplanche e Portalis (1998).

Obs. O autor, professor (educação física) Adriano Mastrorosa é pós-graduado em sócio-psicologia pela FESP-SP e mestrando em educação: história, política, sociedade na PUC-SP

Referências bibliográficas:

  • Birman, Joel. Estilo e modernidade em psicanálise. São Paulo: Editora 34, 1997.
  • __________. Mal-estar na atualidade. A psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
  • Calligaris, Contardo. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Editora Ática, 1996.
  • Freud, Sigmund. Mal-estar da civilização. Rio de Janeiro. 1997
  • Kehl Maria Rita. Psicanálise & mídia: Você decide... E Freud explica. In Chalhub, S. (org.) Psicanálise e o contemporâneo. São Paulo: Hecher, 1996.
  • Lasch, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1984.
  • Laplanche, Jean; Pontalis, Jean-Baptiste. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo. 1998