Resumo
As artes marciais podem ser descritas como um conjunto de ações que compreende técnicas de luta que requerem incansável treinamento para sua incorporação e, ao mesmo tempo, são também o caminho do guerreiro, composto por atitudes específicas, dentre as quais a mais elevada consiste em vencer a si mesmo. O esporte é um elemento fundamental do processo civilizador, um conjunto de dispositivos pedagógicos que organiza o corpo e suas expressões no sentido de simultaneamente restringi-los em sua espontaneidade e potencializá-los tecnicamente. As lutas tornam-se parte importante desse campo. Para que isso possa ocorrer, algumas delas sofrem um processo de esportivização, o que reflete em sua organização em treinamentos sistematizados e competições. O presente trabalho buscou entender os processos que legitimam uma pedagogia da dor e do sofrimento como racional e legítima e quais são suas implicações para a educação do corpo em três lutas. Para isso foi realizada uma pesquisa empírica tendo por objeto o Karatê (campo marcial-esportivo), o I Ai Do e o Nei Kung (campo marcial-filosófico), em dois espaços de treinamento de artes marciais de Florianópolis, SC. Os dados foram coletados por meio de observações de aulas e competição, observações-participantes de treinamentos e exame de faixa, e de entrevistas. As artes marciais pesquisadas e seus espaços, lugares de crenças e rituais que oferecem representações sobre o corpo que nem sempre coincidem com outras tradições, são apresentados em paralelo, seguidos por algo como uma ciência marcial, que busca dar suporte teórico às práticas físicas. O material empírico resultante pôde ser distribuído em categorias como domínio de si - movimento necessário e irrenunciável para o processo civilizador -, dor e sofrimento como fortalecedores do corpo, uma vez que os atores dos campos narram, significam e representam as dores, os sofrimentos e os sacrifícios das práticas como legítimos, honoráveis, momentos de engrandecimento que justificam as ações contra o próprio corpo, e, por fim, rituais e trotes como possuidores de forte carga simbólica, que parecem alimentar, fazer viver e transmitir as rotinas dos espaços de treinamento.