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  Aproximando do Tema


 Assim como passamos por uma revolução mundial nas comunicações, nas formas sociais e nas relações internacionais, também vivemos uma revolução em nossas concepções acerca do homem e seu universo. Na cultura ocidental, percebemos que o homem está cada vez mais alienado de si e de sua história. Como é que uma sociedade onde as instituições educacionais pregam uma abordagem fragmentada da vida, uma visão distorcida de mundo e de homem pode produzir um indivíduo consciente, crítico e criativo? Para iniciarmos esta discussão acredito ser necessário uma inquirição meticulosa do que se sabe acerca da natureza do homem e do significado da existência.


 Considerando que o homem é uma unidade dialética e não um indivíduo fragmentado em corpo, alma, mente, e entendendo que ele interage com o mundo através deste corpo em movimento, construindo uma linguagem cheia de significados, de códigos que traduzem o seu estar no mundo, suas determinações históricas e sociais, verifica-se a importância da Educação Física como prática pedagógica, porque social. Desta forma, seu objeto de estudo e aplicação relaciona-se às potencialidades do homem em movimento (manifestações da cultura corporal) produzidas e sistematizadas historicamente.


 Tendo em vista as perspectivas negativas da visão reducionista em relação ao corpo e a seus movimentos na fundamentação de uma prática pedagógica mais humanizante, procurarei, neste estudo, descartar esta visão cartesiana do homem, entendendo a Educação Física sob a ótica de uma concepção dialética do movimento, buscando-se a superação do corpo teórico existente no ocidente.


 Fiz a opção por um estudo teórico, com o objetivo de abordar a educação através do corpo considerando suas significações e manifestações, não como parte do homem, mas como o próprio homem que age fundamentalmente sobre um todo. Intenciona-se especificamente destacar a relação dialética existente entre o corpo e o movimento e sua função de produtor, reprodutor e transformador da nossa história, além de auxiliar a reflexão sobre a construção de uma prática educativa que entenda a realidade enquanto totalidade complexa e contraditória, em uma sociedade que busque desenvolver e construir o movimento humano de modo expressivo, produtivo e transformador.


   Considerações sobre o Corpo, o Movimento e a Prática Pedagógica da Educação Física


 A tradição intelectual do ocidente foi marcada pela dissociação entre o corpo e a mente, a personalidade e a natureza, o intelecto e o senso de sentimento e de intuição, de acordo com a argumentação de Whyte (1984). Esta dissociação vem impregnando toda e qualquer abordagem de vida adotada pelo homem ocidental: intelectual, religiosa, econômica ou política.
A cultura ocidental icentivou-nos a cultivar o intelecto, desde o tempo de Platão e de São Paulo até o século XX, organizando-nos pelo uso de conceitos estáticos da natureza. A ciência tratou de partes isoladas, compartimentalizadas, esgotando seus recursos reducionistas e tornando-se até uma ameaça mundial em muitas de suas invenções.


 Descartes introduziu uma rigorosa separação da mente e do corpo a partir da idéia que o corpo é uma máquina que pode ser entendida em termos da organização e funcionamento de sua peças (modelo biomecânico), como relata Capra (1982). Mente e corpo pertenciam a dois domínios paralelos e diferentes, podendo ser estudados sem referência ao outro. O corpo era governado por leis mecânicas, mas a mente (ou alma) era livre e imortal. A nossa herança cultural acostumou a pensar o homem a partir do espírito, dualisticamente, onde o valor nobre, supremo reserva-se à parte espiritual e à dimensão corpórea fica com uma função de serviçal.
Em suas análises sobre as relações de poder nas sociedades e em várias épocas, Foucault (1987) percebe de forma diferente a questão corpórea. Entende que o corpo, ao longo dos séculos XVIII, XIX e início do XX, sofreu um forte investimento do poder. Afasta ele a tese de que o poder, nas sociedades burguesas e capitalistas teria negado a realidade do corpo em proveito da alma, da consciência, da idealidade. Argumenta para tal que nada é mais material, nada mais físico, mais corporal do que o exercício do poder.


"O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’ que é igualmente uma ‘mecânica do poder’ está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina" (op. cit., p. 127).


 Entende que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre a aptidão aumentada e uma dominação acentuada, da mesma forma como a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho. Em sua época Marx, apud Romano (1985), já vislumbrava os efeitos de uma sociedade onde o corpo humano reduziu-se ao número, onde a visibilidade da carne fora cada vez mais encadeada ao lucro invisível e impiedoso, motor da sociedade moderna.


 A partir da segunda metade do século XX as sociedades industriais elaboraram novas formas de exercerem o poder sobre o corpo, mais tênues e sutis, camufladas por um discurso de culto ao corpo, de "descoberta" corporal. Sabendo que cada cultura impõe aos indivíduos o uso determinado do seu corpo, precisamos buscar elementos reflexivos que auxiliem na interpretação e decodificação dos ‘signos sociais’ que constantemente impregnam-se no corpo. Para esta reflexão considero necessário tecer comentário sobre as abordagens conceituais do corpo.


 Historicamente registram-se três momentos conceituais. No primeiro momento o corpo inspirava-se em três perspectivas básicas, quais sejam: distinção entre o corpo e a alma; relação com as divindades e a imortalidade; e pela diferença entre o homem e o animal. Em Platão, o corpo era o vilão da estrutura ontológica do homem, símbolo da decadência e uma fonte de vícios e males. Acreditava-se ter sido o corpo colocado no homem como castigo e como um perigo constante para sua evolução.


 A modernidade marca o segundo momento, sendo o corpo caracterizado por duas atitudes básicas: de libertação das influências teológicas e de vinculação às questões epistemológicas, relacionando-o as possibilidades e a validade do conhecimento humano.  Descartes foi quem inaugurou esta virada nas questões corpóreas seguido por Kant, Hurssel, Apel, Pascal, e Rhum, dentre outros.
Em ambos os momentos, o corpo continuou um humilde servo no palácio das ciências, submetido aos modelos teóricos, pois para a ciência e a técnica o corpo só obedecia e marchava. De acordo com Foucault (1987), foi por esta manipulação e dominação na utilização do corpo como ‘objeto’ que se tornou possível a consciência do próprio corpo. Assim chega-se ao terceiro momento, onde se observa uma reflexão filosófica contemporânea preocupada em aprender a sabedoria do corpo, visualizando-o como um organismo vivo, pois ao dispor do seu corpo, o sujeito é sujeito da sua ação e da sua percepção, manifestada no mundo por sua própria corporeidade, como constatam Burow e Scherpp (1985).


 Este corpo descoberto é social, real, onde a consciência do próprio corpo se deu por efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do corpo belo ... resultando no investimento do corpo contra o poder, sendo ele, nesta dialética, sujeito e objeto de transformação.


 Na interpretação de Kofes (1986), o corpo tem sempre uma linguagem de transgressão ou afirmação, sendo importante por reformular, explicitar, colocar questões que às vezes a fala é incapaz de expressar. A existência humana então não só passa pelo corpóreo como o supõe, devendo ser ele entendido na riqueza de sua totalidade que se transforma na sua dimensão humana e histórica. Penetrar dialeticamente no corpóreo significa, concordando com Medina (1987), recuperar as condições e relações em que os fenômenos se realizam, recuperar seus movimentos sociais.


 Necessita-se reconhecer que o homem é definido pelo seu corpo, sendo ao mesmo tempo seu dono e sua expressão, organizando-o pelo movimento. Movimento que se torna gesto, gesto que fala, que instaura presença expressiva e única, comunicativa e criadora, ou presença mecânica e reprodutiva, pois para Bruel (1990) ele integra uma totalidade, indo desde a expressão dos sentimentos até o gesto mecânico, sem vida.


 É inegável que a motricidade constitui-se e se constrói ao longo da história da humanidade, tanto pela relação dos antropóides com a natureza, quanto entre si, na produção e consumo dos bens socialmente necessários a sua sobrevivência, no trabalho, na construção de sua organização social.


 A maturação do indivíduo não se limita portanto só ao contexto biológico, como afirma Engels (1982); ela é também dependente do contexto histórico e cultural (mundo dos valores humanos). Deste modo, torna-se claro que o movimento humano apresenta-se sob a forma sociológica por provocar a transição de uma interioridade e modificar o ambiente dos outros e dos objetos.
Antes da primeira pedra ter sido talhada pela mão humana transformando-a em um objeto cortante, certamente passou-se períodos aos quais o período histórico que se conhece surge como insignificante. Porém, o passo decisivo havia sido dado - a mão libertara-se; e por conseguinte, o corpo todo. O movimento, ou seu significado, abriu o processo de distanciamento do homem em relação aos demais seres vivos.


 Neste estudo estou a considerar o movimento determinado no espaço e no tempo, o movimento que se constrói na relação do homem com suas condições objetivas de vida, o movimento social, não podendo portanto, ser compreendido isolado da sua história, conforme Marx (1984). A motricidade enquanto universo em construção, as relações humanas, a visão, a vontade, a atividade, o amor, ..., todos os órgãos e expressões de sua individualidade são órgãos vinculadamente sociais por seu comportamento, ou na relação com o objetivo de apropriação da realidade humana. É preciso compreender o movimento no contexto de suas dimensões reais, históricas, sociais, pois o homem não nasceu pulando, correndo, saltando..., o movimento tem sua história e precisamos contá-la, refletir suas constancias e transformações, recriá-la.


 Assim chega-se à Educação Física, prática social, milenar, portadora de uma forte carga cultural por tratar das manifestações expressivas da cultura corporal, desenvolvidas ao longo da história da humanidade, como explicita Coletivo de Autores (1992). O conhecimento próprio desta prática pedagógica se faz necessário para o entendimento da realidade atual, porém torna-se imprescindível um tratamento pedagógico em relação a sua prática cotidiana e à eleição e definição de seu objeto de estudo.


 Presencia-se a prática pedagógica da Educação Física brasileira consubstanciada no paradigma da aptidão física (Castellani Filho, 1996), pautada na perspectiva do consenso (Oliveira, 1994). Estes autores relatam a hegemonia do entendimento da Educação Física sobre o prisma da aptidão física, referenciada até como sendo a solução para casos epidêmicos e anti-higiênicos em um determinado momento histórico do Brasil, sofrendo também influencias diretas do militarismo e da competição própria do nosso modo de produção, bem como a consideração do corpo como objeto a ser manipulado, exercitado, medido, avaliado, selecionado.
Seu objeto de estudo nesta perspectiva é o desenvolvimento da capacidade física para a produção de homens máquinas, corpos dóceis, submissos e obedientes, corpos produtivos e passivos. Este paradigma que está em vigor até hoje é inclusive respaldado pela legislação vigente (decreto-lei 69450/71).


 Nos anos oitenta presenciamos um repensar de sua prática pedagógica, uma crítica às posições ‘acríticas’ assumidas por seus intelectuais e uma reflexão acerca da prática mecânica e reprodutora de suas aulas. A partir dessa ebulição, surge novas propostas, novas perspectivas de entendimento da Educação Física enquanto prática pedagógica desencadeando novas teorias, dentre elas cito a que considero mais pertinente para auxiliar na construção de uma nova prática pedagógica para a Educação Física, qual seja, o paradigma da cultura corporal (Castellani Filho,1996), a perspectiva do conflito (Oliveira, op.cit.),.


 Nesta concepção a Educação Física tem como objeto de estudo temas inerentes a cultura corporal, que a compõe historicamente: jogo, ginástica, dança, esporte, porém tendo um tratamento pedagógico diferenciado da anterior, por considerar o homem como sujeito histórico social, definindo que a consciência corporal se dá pela compreensão a respeito dos signos sociais tatuados em seu corpo. Esses são signos coletivos e diferenciados conforme a sua situação de classe.


 Esta compreensão e superação é condição para participarmos do processo de construção do nosso tempo e da elaboração de novos signos a serem gravados em nosso corpo. Para tal, sua prática pedagógica não camufla o conflito, mas age a partir dele, com ele, tentando a sua superação para a elaboração de novos conflitos e novamente sua superação ...


 Através dos estudos empreendidos, arrisco-me a afirmar que uma Educação Física realmente preocupada com o ser humano deve considerar os conflitos sociais, o homem em sua historicidade, as dimensão cultural das expressões da motricidade humana e o sentir, pensar e agir como totalidade dialética do ser, pois as sinergias musculares que caracterizam o movimento humano serão tanto mais ricas quanto mais trouxerem em seu bojo uma expressão significativa da própria vida; senão, tornam-se gestos mecânicos em nada diferentes dos de um robô, ou de uma outra máquina qualquer. Ampliar esta significação parece-me também (e não só) ser papel da Educação Física.


 Assim, percebe-se que no contexto de nossa sociedade, por diversos fatores, descuidou-se do corpo, utilizando-o sem conhecer o seu funcionamento, desestimulando suas potencialidades, fragmentando-o. Acredito que numa perspectiva de formação inacabada, o corpo não deve ser apenas um objeto constantemente julgado e discriminado, desconsiderando-se sua natureza dialética. O corpo não pode ser apenas uma peça na engrenagem social, cumprindo sua função de produtor, reprodutor e consumidor de uma política coercitiva.


 Deve sim ser considerado em todas as suas dimensões, descortinando suas possibilidades e trabalhando seus limites. Deve-se compreendê-lo como uma parte individual e coletiva do todo social na sua dimensão humana, lidar com eles sem tirar-lhes suas características pessoais, sem "moldar-lhes", mas descobrindo todos os canais para viver prazerosamente (seriamente) a vida, com tarefas individuais e coletivas, políticas e pedagógicas, corpóreas e sociais, pois é dialeticamente que o real se manifesta.


 Faz-se necessário entender que o movimento humano traduz a maneira de ser do indivíduo no mundo, indivíduo este marcado por sua realidade social (marcas tatuadas em seu corpo, de acordo com Castellani Filho,1988), e que chega-se ao movimento criador através da vivência reflexiva que gera a consciência, de uma vivência humanizada onde ele se considere construtor de seu tempo e de sua história.
 Para tanto, penso que a Educação Física precisa assumir-se como preocupada com o ser total, com a formação desse indivíduo social, considerando o movimento uma forma do ser humano ser sempre mais, cultivando a criatividade, a curiosidade epistemológica do ser humano (Paulo Freire, 1996), definindo a aprendizagem não como absorção, mas como exploração curiosa e rigorosa do seu mundo social, apropriando-se dele, para que possa intervir no mesmo e transformá-lo.


 Necessita-se para tal, mudar o eixo educativo, refletir as questões sociais e políticas nas manifestações da cultura corporal, mudar da alienação, opressão e docilização dos corpos(Foucault, 1987), para a libertação do ser, pois uma educação que não considera a historicidade, as expressões motoras, as contradições e injustiças sociais, ou seja a contextualização e a compreensão do cidadão em seu meio e do seu ser cidadão, castra as possibilidades deles se tornarem produtores culturais e agentes de seu tempo e de sua história, não devendo nem ser considerada educação.

Referências Bibliográficas

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