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Construindo a corporeidade no cotidiano escolar

Na organização que hoje norteia as escolas, encontramos diversas áreas do conhecimento estruturadas através de disciplinas escolares e como "uma disciplina se define tanto por suas finalidades, quanto por seus conteúdos" (Juliá, 2002, p. 45), a Educação Física Escolar "responsabiliza-se" pelo corpo. Ghiraldelli Jr. (1988), Carmen Soares (1994), Medina (1994) e Castellani Filho (1988) são alguns dos autores que nos auxiliam a entender a presença do movimento e dos significados atribuídos ao corpo no processo ensino-aprendizagem com a predominância de três concepções: 1) negação do corpo e do movimento neste processo - o corpo passivo, disciplinado, obediente, quieto, calado, traça o perfil ideal de aluno e de processo educacional; 2) uma visão funcionalista (propedêutica) de educação: aqui, a função aceitável de movimento contém a idéia de prontidão, principalmente no processo de alfabetização. Assim, o movimento acontece em espaços e momentos próprios, como a aula de Educação Física, o recreio, o pátio, a quadra e, como objetivo a atingir, deve facilitar, ajudar, propiciar a coordenação motora ‘fina’, auxiliando a escrita; 3) educação motora para o esporte - neste sentido, movimento quase se torna sinônimo de esporte. Nesta visão esportivizada (principalmente a partir da década de 60), impera a idéia dos movimentos, gestos, padrões esportivos (como a competitividade) orientando as aulas de Educação Física.

Estas idéias nos indicam a produção de um determinado tipo de aluno, tido como ideal para todo o processo desenvolvido nas escolas, não só nas aulas de Educação Física Escolar. Como pensarmos em diversas possibilidades de relação entre corpo e educação sem pensarmos na formação de todos os profissionais envolvidos no processo ensino-aprendizagem? Principalmente quando falamos sobre os profissionais que atuarão com as crianças e jovens em processo inicial de escolarização, que concepção de sujeito está predominando?

Trabalhamos sobre estas questões, desejando viabilizar uma proposta pedagógica que valorize os saberes, concepções, cultura e percepções, pois entendemos que as formas de conhecer e vivenciar o corpo estão inseridas em uma prática real das relações sociais (produto coletivo da vida humana) e não uma situação / entidade abstrata. Quando pensamos assim, estamos falando em corporeidade.

Daolio (1995) e Assmann (2001) nos auxiliam a entender que corporeidade
"(...) pretende expressar um conceito pós-dualista do organismo vivo. Tenta superar as polarizações semânticas contrapostas (corpo/alma; matéria/espírito; cérebro/mente) (...) constitui a instância básica de critérios para qualquer discurso pertinente sobre o sujeito e a consciência histórica." (Assmann, 2001, p. 150)

Por uma ação pedagógica significativa no curso de formação de professores e sua articulação com a educação básica

Assim, nossa discussão é epistemológica, na medida em que procura romper / esgarçar os pressupostos predominantes sobre o corpo. Mas, ao considerar o contexto histórico-social, é também uma discussão ideológica e política, na qual as correlações de forças estão em permanente tensão. Por isso, podemos desnaturalizar o corpo, de forma a evidenciar os diferentes discursos que foram e são cultivados em diferentes espaços e tempos, ou seja, questionar os saberes considerados como verdadeiros e, muitas vezes, únicos.

Ao nos debruçarmos sobre o ‘espaço epistêmico’ das práticas pedagógicas, muito nos interessa o que é produzido, efetivamente, nos cotidianos das escolas. Por isto, trazemos parte do que é construído nos cotidianos vividos: o Curso Normal Superior (CNS) do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ) e o CIEP Mal Henrique Teixeira Lott.

No CNS/ISERJ, através do elemento curricular Movimento e Expressão Corporal (MOV) e da Oficina de Jogos e Brincadeiras, inseridos no núcleo de Conhecimentos Básicos e Metodológicos, iniciamos a discussão com as definições historicamente construídas sobre corpo, enfatizando a expressão corporal na comunicação e interação social. Neste processo, enredamos as múltiplas relações entre corpo-natureza e corpo-cultura e, o movimento lúdico e criador como constituinte do ser humano. Ao longo do percurso, percebemos as relações com a construção do conhecimento e, propomos observações nas escolas de estágios enfocando a temática desenvolvida (movimento e expressão corporal).

Posteriormente, abordamos as concepções teórico-metodológicas da Educação Física Escolar: os métodos ginásticos; a psicomotricidade; a esportivização; a cultura corporal; as diferentes idades e gêneros neste processo, incluindo a singularidade dos portadores de necessidades educativas especiais. Sugerimos observação e entrevista com professores das escolas de estágio - propiciando o contato com a maior variedade possível de situações presentes no cotidiano escolar, desenvolvendo análise crítica e elaborando formas de atuação.

Também abordamos o corpo em diferentes leis, referências e propostas educacionais: a LDB, os PCNs, o RCN, a MultiEducação, assim como exemplos de escolas instituintes (Cabana, Balaia, Plural, Cidadã e do MST).

Durante os três primeiros semestres de implementação do CNS/ISERJ (1999 e 2000), ao término de cada período letivo do elemento curricular Movimento e Expressão Corporal, através de avaliação geral do semestre, sugestões foram solicitadas, incluindo conteúdo a ser aprofundado. A ludicidade foi o tema mais requisitado. Nesta mesma época, começamos a dar os primeiros passos em nossas linhas de pesquisa, integrantes do projeto pedagógico. No final de 2000, início de 2001, estas linhas começaram a delinear suas formas de abordagem através de três vertentes: Integração Ensino Superior e Educação Básica (ISEB), Educação de Jovens e Adultos (pois a Extensão nasce no mesmo ano em que o CNS inicia, através do Programa de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA) e, Memórias do ISERJ (Pro-Memo). O Lúdico e o Processo Ensino-Aprendizagem, desenrolar do elemento curricular Movimento e Expressão Corporal, tornou-se um dos desdobramentos do ISEB.

Através do proposto pelo elemento curricular Movimento e Expressão Corporal, presente no Curso Normal Superior do ISERJ, vive-se o trabalho docente no CIEP Mal Henrique Teixeira Lott, valorizando o movimento e a bagagem cultural trazida pelo aluno. Ao vivenciar a temática do corpo no cotidiano das aulas, a escola passa a ser vista como mais um ambiente em que as emoções se expressam e as diferenças se afloram. E, como é impossível viver em um mundo sem estar em contato com estas diferenças, ao professor cabe mediá-las com compromisso.

Acreditando não ser suficiente adotar uma prática em que o sujeito apenas observa o movimento corporal, as atividades cotidianas "enxergam" o movimento carregado de intenções, sentimentos, desenvolvendo habilidades significativas em uma teia de relações aperfeiçoadas do sujeito com o mundo, de modo a produzir ações que o tornem cada vez mais partícipe, isto é, mais presente, mais consciente, testemunha e interventor do mundo em que vive.

Com uma prática que estabelece relações com a complexidade do pensamento globalizante e a consciência reflexiva de si e do mundo, a partir da crítica e da reflexão transformadora, o CIEP, em seu Projeto Político Pedagógico, fundamenta-se em questões abordadas por Edgar Morin, como a complexidade. Portanto, neste contexto, as ações que permeiam as atividades escolares cotidianas, estão voltadas para a construção e valorização da cidadania, do conhecimento, da criatividade, do diálogo, do brincar e de todas as produções culturais.

Currículo "corporificado" na construção do conhecimento

A Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, a História vêm abordando o corpo humano. No entanto, na educação ainda é predominante o ‘atrapalhar’, o ser hierarquicamente ‘menor’ e ‘desprezível’ na construção de conhecimentos. Considerando a corporeidade como possibilidade, buscamos ampliar a discussão através de duas formas, maneiras como as práticas pedagógicas relacionam-se com a cultura corporal: 1º- a cultura corporal está presente em todos os tempos e espaços das escolas, não apenas na Educação Física e; 2º- os diversos paradigmas da Educação Física trazem uma formação cultural de tratar o corpo, na medida em que afirmam um tipo de corporeidade, uma ‘expectativa de corpo’, como nos diz Silva (1999). Assim, mexemos os ‘antolhos’ de que nos fala Maturana (2001), pois tencionamos, esgarçamos, conflitamos o marcado nas pessoas.

Neste processo, a corporeidade pode ser, como nos diz Pais (2004), um dos conceitos reveladores do currículo, cotidiano e efetivamente, praticado - seja na formação de professores da Educação Infantil, Educação Física ou séries iniciais do Ensino Fundamental.

Obs. As autoras, Ms Rosa Malena Carvalho (rosamalena@rionet.com.br) é do ISERJ/UERJ e Andreza Berti (andrezaberti@hotmail.com) é professora da rede estadual

Referências:

  • Assmann, Hugo. Reencantar a Educação - rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998.
  • Castellani Fº, Lino. Educação Física no Brasil: A História que não se Conta. Campinas: Papirus, 1988
  • Daolio, Jocimar. Da Cultura do Corpo. Campinas: Papirus, 1995.
  • GhiraldelliJr., Paulo. Educação Física Progressista. São Paulo: Loyola, 1988.
  • Juliá. Disciplinas escolares: objetivos, ensino e apropriação. In LOPES, Alice & Macedo, Elisabeth. Disciplinas e integração curricular: história e políticas. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 37-71.
  • Maturana, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. Minas Gerais: UFMG, 2001.
  • Maturana, Humberto & Varela, Francisco. De Máquinas e Seres Vivos: Autopoiese - a organização do vivo. 3ª ed., Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
  • Medina, João Paulo. O Brasileiro e seu Corpo. 4a ed. Campinas: Papirus, 1994.
  • Morin, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo, Cortez, 2000.
  • Pais, M. José. Vida Cotidiana - enigmas e revelações. São Paulo: Cortez, 2003.
  • Silva Elementos para compreender a modernidade do corpo numa sociedade racional. In SOARES, Carmen (org). Caderno Cedes 48 - Corpo e Educação. Campinas: Unicamp, 1999, p. 7-29.
  • Soares, Carmen. Educação Física: raízes européias e Brasil. São Paulo: Autores Associados, 1994.
  • Steinberg, Shirley. Sem segredos: cultura infantil, saturação de informação e infância pós-moderna. In STEINBERG, Shirley e Kincheloe, Joe. Cultura Infantil: a construção corporativa da infância. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.