Resumo

Em diversas descrições da criança autista é salientado que a brincadeira se apresenta de forma muito restrita e bastante peculiar, devido ao grave comprometimento geral de seu psiquismo. Contudo, as características dessa atividade tendem a ser mencionadas de maneira breve, como mais um dos sintomas do autismo, deixando-se de lado o fato de que o brincar diz respeito a uma esfera fundamental da vida infantil, com possibilidades de favorecer o desenvolvimento. Sob diferentes referenciais teóricos é afirmado que crianças autistas: 1) geralmente se comportam como se o outro não existisse e 2) a relação que estabelecem com o objeto é destituída de significado, tendendo a utilizálo em movimentos estereotipados ou como mero alvo de fixação. A partir de considerações da teoria histórico-cultural sobre o brincar, concebido como uma instância indispensável para a emergência de funções psíquicas superiores na infância, buscamos transpor as interpretações para a área do autismo. Com a preocupação na procura por práticas educativas promissoras, a presente pesquisa teve o objetivo de analisar os modos como crianças autistas se orientam para pessoas e objetos em situação de brincadeira. Os participantes do trabalho de campo foram três sujeitos, entre seis e doze anos de idade, que eram atendidos numa instituição especial, localizada numa cidade de pequeno porte do interior paulista. O trabalho de campo consistiu na realização de 13 sessões de brincadeira livre, com duração aproximada de trinta minutos cada. A pesquisadora coordenou as atividades, numa atuação que consistia em atribuir significação aos objetos, às pessoas e às ações em ocorrência, geralmente buscando desencadear jogos de faz-de-conta. A base de dados foi composta por registros em diário de campo e filmagens. As análises foram feitas segundo a abordagem microgenética. As situações registradas tiveram uma organização em três unidades temáticas: sorrindo e tocando; buscando provocar ações do outro; engajando em brincadeiras. Apesar do comprometimento global desses sujeitos, os achados indicam que a procura pelo outro pode ocorrer de diversas formas e que o uso do objeto não é apenas mecânico, como geralmente se interpreta. Constatamos que, em função dos modos de atuação da pesquisadora, emergiram muitos episódios em que se configurava o entrelaçamento das relações sujeito-sujeito e sujeitos-objeto. Isso sugere a necessidade de romper com uma certa visão dicotômica que põe a orientação para objetos em oposição à orientação para sujeitos, muito presente em estudos sobre autistas, e de apostar em mediações sociais que elevem seus modos de significar e interagir com o mundo. Para tanto, é preciso considerar não somente como o autista se relaciona com os outros, mas, sobretudo, como os outros se relacionam com o autista e, desse modo, buscar inovações nas práticas sociais voltadas ao tratamento e à educação dessas crianças.

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