Decifrar o Enigma da Política de Drogas Requer Mais Ciência do Que Nunca
Por Sidarta Ribeiro (Autor).
Resumo
Integra
Agora, mais do que nunca, o debate científico sobre a política de drogas se faz urgente. Após quase um século da devastadora guerra contra drogas como a maconha e da igualmente devastadora exaltação de drogas como o álcool, emerge em grande parte do planeta a convicção de que esse modelo fracassou [1, 2]. A proibição de algumas drogas sem qualquer base científica [3] e a consequente transformação de seu uso em caso de polícia representa um rosário de dolorosas tragédias sociais. Historicamente, a proibição falhou em reduzir o consumo de substâncias ilícitas em todo o mundo, como por exemplo no Brasil [4] e nos Estados Unidos [5]. Também não conseguiu reduzir os custos do uso problemático de drogas [6] e tampouco logrou proteger os usuários dos riscos da sobredose e da contaminação, uma vez que o controle de qualidade é inviável no mercado negro [7]. A proibição inibe o debate sobre grupos de risco, dificultando que pessoas vulneráveis tomem as devidas precauções [8].
De forma muito perversa, a proibição também infiltra e apodrece o tecido social, corrompendo os aparatos policial e jurídico do Estado, bem como as diversas instâncias de poder político em nível municipal, estadual e federal [9]. E é assim que a proibição mata, tortura e encarcera a granel [10], atingindo desproporcionalmente jovens negros de baixa renda [11], mas invariavelmente poupando os poderosos desconhecidos por trás de sua engrenagem. A Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos estima que o homicídio de um jovem brasileiro causa a perda de R$ 550 mil em capacidade produtiva do país. Com base no total de homicídios no período de 1996 a 2015, a perda acumulada passa de R$ 450 bilhões [12].
Ninguém sabe dizer qual é a extensão da contaminação do Estado brasileiro pelo narcotráfico, esse Leviatã cada vez mais poderoso, alimentado pela pujança de um mercado que já deveria há muito ter sido trazido para a luz da economia formal. O que sabemos é que as consequências da política proibicionista não se restringem aos que usam, vendem ou reprimem o consumo de drogas. As balas perdidas matam qualquer um, inclusive crianças. A intervenção militar no Rio de Janeiro, que prejudica certas facções e não outras [13], pode ser apenas o início de um longo e perigoso inverno social. Da mesma forma, causa preocupação a guinada conservadora do governo, com resolução aprovada, em 2018, no Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad), que favorece a internação psiquiátrica e o tratamento em comunidades terapêuticas de cunho religioso.
No entanto, existe esperança. Em países onde houve a legalização ou discriminalização de drogas não houve aumento do consumo, mas observou-se redução de crimes violentos e mortes associadas a drogas [14-16]. Outro modelo de regulação se faz necessário no Brasil, com base em sólidas evidências científicas e na isonomia normativa entre substâncias de potencial terapêutico ou tóxico semelhante [17]. Assim como no caso do aborto, começa a emergir a compreensão de que não se trata simplesmente de ser a favor ou contra o consumo de drogas, mas de garantir a redução de danos para todos os cidadãos, sem distinção de classe, sexo e raça [18]. Não se trata portanto de um debate restrito a este ou aquele tipo de especialista. A política de drogas é assunto tanto da psiquiatria quanto da saúde pública, da psicologia e da toxicologia, da neurociência e da genética, da sociologia e da economia, do direito e da ciência política, da história e da assistência social.
Em maio de 2018, por deliberação do Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), foi criado um Grupo de Trabalho sobre Política de Drogas com o objetivo de amadurecer esse debate de forma multidisciplinar. Também com esse intuito será realizada na 70ª Reunião Anual da SBPC, no dia 27 de julho de 2018, das 15h30 às 18h00, a mesa-redonda intitulada "Após o fim da guerra às drogas: desafios da regulamentação", com Francisco Inácio Bastos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Virgínia Martins Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Luís Fernando Tófoli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Através de seu corpo científico altamente qualificado, a SBPC se mobiliza para formular alternativas ao status quo. Que, assim como a Esfinge, ameaça nos devorar se não decifrarmos seu enigma.
REFERÊNCIAS
1. Godlee, F.; Hurley, R. "The war on drugs has failed: doctors should lead calls for drug policy reform". BMJ 355, i6067, 2016.
2. GCDP. The War on Drugs: Report of the Global Commission on Drug Policy. Global Commission on Drug Policy, 2017.
3. Gable, R. S. Drugs and Society: U.S. Public Policy, J. M. Fish, Ed. Rowman & Littlefield Publishers, Lanham, MD, pp. 149-162, 2006.
4. Cebrid. II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país. Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, São Paulo, 2005.
5. NIDA. National Survey on Drug Use and Health. National Institute on Drug Abuse, 2013.
6. Degenhardt, L.; Hall, W. "Extent of illicit drug use and dependence, and their contribution to the global burden of disease". The Lancet 379, 55-70, 2012.
7. UNODC. Recent Statistics and Trend Analysis of the Illicit Drug Market. World Drug Report 2014. United Nations Office on Drugs and Crime, Viena, 2014.
8. Ribeiro, S.; Malcher-Lopes, V.; Menezes, J. R. L. "Drogas e neurociências". Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ed. Especial Drogas, 2012.
9. Alves, M. H. M.; Philip, E. Vivendo no fogo cruzado: moradores de favelas, traficantes de droga e violência policial no Rio de Janeiro. Editora da Unesp, São Paulo, 2013.
10. MJSP. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2016.
11. Lima, R. S., et al. 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017.
12. SAE. Relatório de Conjuntura nº 4: Custos econômicos da criminalidade no Brasil. Secretaria de Assuntos Estratégicos, Presidência da República, 2018.
13. W. Ramalhoso, in UOL Notícias, A. Zaluar, Ed. (UOL, 17/02/2018).
14. Gavrilova, E.; Kamada, T.; Zoutman, Z. "Is legal pot crippling mexican drug trafficking organisations? The effect of medical marijuana laws on US crime". The Economic Journal, 2017.
15. EMCDDA. European Drug Report 2017: Trends and Developments, Lisboa, 2017.
16. Rosmarin, A.; Eastwood, N. A quiet revolution: drug decriminalization policies in practice across the globe. Release - Drugs, the Law and Human Rights, London, 2012.
17. Nutt, D. J.; King, L. A.; Phillips, L. D. "Independent Scientific Committee on Drug Harms in the UK: a multicriteria decision analysis". Lancet 376, 1558-1565, 2010.
18. Csete J. et al. "Public health and international drug policy". Lancet 387, 1427-1480, 2016.
Professor titular e diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)