Integra

Costumo observar com atenção as coisas que são postadas no facebook. Para eu que vivi em um bairro onde as pessoas colocavam as cadeiras na calçada para ver o tempo passar e socializar as notícias do dia entendo essa rede social mais ou menos como as cadeiras na calçada. Pode ser um monte de bobagens, mas pode ser também uma forma de se apropriar do que mobiliza a opinião pública no momento ou um determinado imaginário que estava lá latente, guardado, congelado e que basta um risco de fósforo para que o rastro de pólvora chegue até o depósito de dinamite, acomodado logo ali onde a vista alcançava, mas não via.

Pois bem, quem passou na calçada de casa essa semana e deixou a vizinhança toda em polvorosa foi um tal de um homem que já foi santo, ídolo, mentor, figura exemplar, símbolo de bom-mocismo, de superação e todas essas baboseiras que o marketing de autoajuda constrói para vender livro, pulseirinha amarela, squeeze, camiseta e tudo que possa ser comercializado. E numa sociedade de consumo tão bem educada a cair nesses contos de vigário vejo aqueles que compraram tudo isso, e ainda bateram no peito dizendo-se fã de um grande homem, lamentarem-se e dizerem que foram enganados.

Que vexame!

Para que a coisa não tome rumos indesejáveis vamos tentar botar ordem em algumas coisas. A primeira delas, e das mais clássicas afirmações do senso comum, “onde há fumaça, há fogo”.

Há quanto tempo mesmo começaram os boatos de que Lance Armstrong estava envolvido com doping? E então o que apareceu no meio do caminho? Um câncer, doença estigmatiza por predizer um fim, tão comum a todos, mas que evoca no doente as marcas do esporte alto rendimento: coragem, determinação, garra e uma certa dose de santificação. E para reforçar ainda mais a imagem daquele que já era um campeão fez-se um milagre: um atleta já consagrado por ter quebrado tantos recordes e expectativas agora se destaca pela condição sobrenatural de superar uma doença que só os fortes superam. E assim começa o processo de beatificação em vida de mais um santo/atleta que há de provar ao mundo que nem o céu é o limite!!! Mais provas de pista são vencidas, mais adversários são superados e ano após ano a invencibilidade daquele homem se afirma. E então mais pulseirinhas são vendidas e mais livros são publicados para estar na cabeceira de todos aqueles que querem, precisam ou temem alcançar e superar limites. Afinal, o mundo é dos vencedores.

Mas, como as ondas do mar costumam por abaixo castelos construídos perto das ondas, aquela história irreal acaba, ou melhor, se transforma em pesadelo. A trama complexa que faz alguém absolutamente comum ser um campeão cai por terra, provando que a excepcionalidade de um campeão é muito maior do que pílulas ingeridas com recomendação de gente competente e rigoroso controle, o que significa um grupo consideravelmente grande de profissionais altamente capacitados fazendo algo ilícito. E, ato contínuo, a desgraça substitui as glórias nas manchetes dos jornais de todo o mundo, arrancando de jornalistas, apresentadores e oportunistas de toda a ordem adjetivações inversas àquelas atribuídas em um passado recente glorioso.

E como na Antiguidade ou na Idade Média onde a condenação de alguém era seguida de execução pública sumária todos vão à praça para se certificar de que o veredito foi cumprido fielmente. Assim a televisão cumpriu seu papel: levou milhões de pessoas em todo o mundo a sentar-se em frente a seus megatelevisores de muitas polegadas, em alta definição, para ver a execração pública daquele que até pouquíssimo tempo era o ídolo maior de suas vidas. Em um cenário que não tinha fogueira, cadafalso ou pelourinho viu-se um sujeito elegantemente trajado (e não encapuzado) admitir seu crime, sua culpa, com um roteiro previamente ensaiado que em muito lembraria Dostoievski em “Os irmãos Karamazov”. Justificou seu erro culpando o sistema, afirmando que todos fazem e, portanto ele também faria, afinal, ele (como tantos outros) não nasceu para correr atrás. Faltou apenas a frase de Ivan Karamazov: “se Deus não existe, tudo é permitido”.

Não vejo diferença entre Lance Armstrong, Marion Jones, Ben Johnson, Tiger Woods, O. J. Simpson e tantos outros consagrados atletas que caíram em desgraça e viram a satanização de seus feitos em função de alguma bobagem, demasiadamente humana, vir a público.

Mas, minha intenção não é fazer esse papel que tantos outros doutos colegas, amigos e desconhecidos fizeram ao longo dos últimos dias. Minha proposta é falar justamente dos arrependidos, dos decepcionados, dos desiludidos que se lamentam por terem perdido um ídolo, uma referência de vida, uma muleta! Causou-me um espanto danado quando vi, inclusive, gente sugerindo que o tal do livro autobiográfico do “desgraçado” (aquele que caiu em desgraça) fosse queimado… e então o meu sangue ferveu…

Nunca é demais lembrar sobre o que significou para a história o gesto de se queimar livros. Significa tentar apagar uma ideia, uma trajetória, negar a existência de algo. Ou seja, nada mais autoritário e brutal para quem é apreciador do conhecimento ou do plano das ideias, via por onde a humanidade caminha para a superação das próprias idiossincrasias ou contradições, desejar, recomendar ou sugerir que uma obra vá para o fogo. Como se isso representasse o sua inexistência.

Para que dar fim a uma obra que é o registro vivo de um processo que é a prova maior de um ególatra como tantos outros nessa sociedade que vive de inflar egos e afirmar a vitória daqueles que conseguem mais do que 15 segundos de projeção em rede nacional? Não, senhoras e senhores, guardiões e guardiãs da moralidade e dos bons costumes esportivos ou não. Não é apagando as marcas de uma farsa que levará à inexistência do ocorrido, mas é justamente o enfrentamento dessa condição que nos fará mais atentos, mais espertos diante de novos Lances que surgirão no futuro, porque tenham certeza, eles surgirão. Afinal, o que seria do esporte contemporâneo sem todo esse circo que está formado às margens das grandes competições fazendo da vida de seus protagonistas verdadeiros reality shows quando o que os atletas precisam é de foco naquilo que buscam?

Sou adepta do coping cognitivo, ou seja, pelo enfrentamento das coisas da vida de frente, sem escamoteação. Entendo que é melhor a dor imediata de uma verdade do que o medo eterno da fuga da mentira que vive colada ao mentiroso como a sombra que se projeta onde há luz.

Quero crer que a lamentável proposta de se apagar o livro com o calor da fogueira não seja apenas dar fim a uma obra que pouco serve ao desenvolvimento da ciência ou do esporte. Vejo que o fogo, na sua representação de purificação, serviria para apagar a vergonha que muitos hoje sentem por terem admirado um “campeão”, divulgado seus feitos e recomendado que ele fosse seguido.

Lamento dizer: culpa se expia com consciência e não com a negação.

E espero que a queima de livros fique restrita a uma das tantas aberrações produzidas pelo nazismo ou pela inquisição.

Por katiarubio
em 19-01-2013, às 22:19

8 comentários. Deixe o seu.

Comentários

Adoro abrir a amplitude do olhar. Obrigada!

Por Narandra
em 20-01-2013, às 0:23.

Prezada Katia.

Mais uma revelação que não me espanta, vivemos em um mundo de hipocrisia, onde os grandes atletas mundiais utilizam de recursos ilícitos para poderem alcançar o estrelato e consequentemente a compensação financeira e não será o ultimo.

Por Katsuhico Nakaya
em 20-01-2013, às 8:08.

Obrigada pela mensagem Nakaia. É preciso muita atenção a tudo o que rodeia o atleta e ao ambiente que ele frequenta. Já não existe mais ingenuidade nesse universo.

Por katiarubio
em 20-01-2013, às 10:57.

Obrigada você pela participação

Por katiarubio
em 20-01-2013, às 10:58.

Essa polêmica toda, para mim, tem outro nome: desvio de conversa. Adorei o texto da Sra. Prof. Katia Rubio, principalmente pela sutileza da ironia que, ao que parece, pouca gente percebeu. É incrível como há tanta coisa séria lançada à banalidade e tanta coisa banal tratada com tanta seriedade.

Por Ruth Oliveira
em 20-01-2013, às 16:54.

Ruth

Da polêmica em si tenho pouco a dizer. Se ele estava certo ou errado, não compete a mim julgar. O que me chamou a atenção como mais uma vez tanta gente foi manipulada e só se deu conta disso agora. A tarefa de juiz não é para todos.

Por katiarubio
em 20-01-2013, às 17:08.

O “circo do esporte” competitivo é para isso mesmo. Lavagem cerebral aos torcedores de carteirinha que passam a idolatrar qualquer um que lhe dêem um pouco da aurea de “vencedor”. Torcedores que pegam carona na fama alheia, com doping ou não.

Bem feito aos que se acharam sábio o suficiente para seguirem uma cartilha de vida, hoje descoberta, totalmente falsa. Bem feito àqueles que participaram indiretamente de toda a farsa, mesmo percebendo toda a fumaça.

Por Edison Yamazaki
em 21-01-2013, às 2:38.

Gostaria de lembrar que há muitos personagens nessa história, e uma delas é o controlador de dopping e dos comitês Anti Dopping. São gastos bilhões de dólares para se financiar um sistema de represão….

É importante lembrar que o uso de qualquer substância é de livre arbítrio de cada atleta, e que indiretamente é utilizado pela Medicina para o tratamento de muitas doenças, portanto as cobaia humanas – os gladiadores contemporâneos – merecem todo o respeito !
Toma quem quer, e morre quem quer !