Integra

A aprovação do Parecer 138/2002 pelo Cnselho Nacional de Educação (CNE), que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Educação Física, em 03 de abril de 2002, praticamente encerra, no nível das orientações oficiais, o processo de reformulação curricular e da formação profissional na área. Restando apenas a sua homologação pelo Ministro da Educação na forma de resolução deste mesmo conselho, provavelmente os termos do referido parecer serão mantidos.

Inicialmente, é conveniente recordar que a formação profissional em Educação Física passou por uma reformulação determinada pela Resolução 003/87 do antigo Conselho Federal de Educação, após um período de discussões (1979-1987) promovido pela Secretaria de Educação Física e Desportos do Ministério da Educação e Cultura (SEED/MEC), através de vários seminários regionais para o debate da questão e encaminhamento de propostas. Tal reformulação foi concluída, em muitos casos, em meados da década de 90, quando as primeiras turmas sob o novo currículo completaram a sua formação (QUELHAS, 1995). Além disso, deve-se levar em conta que a Resolução 003/87 introduziu nesta formação inovações significativas que alteraram o modelo adotado anteriormente: a) possibilidade de formação diferenciada - licenciatura ou bacharelado; b) formação em áreas de conhecimento - do ser humano, da sociedade, filosófico e técnico; c) área de formação básica e de aprofundamento de conhecimentos; d) trabalho de conclusão de curso;

aumento da carga horária e do tempo de formação.

Apesar do pouco tempo de vigência deste modelo de formação profissional em Educação Física e da grande ausência de trabalhos e discussões que avaliassem o mesmo - tendo em vista que foram introduzidos aspectos novos e polêmicos, como a formação diferenciada, as áreas de conhecimento e a monografia de conclusão de curso - está em curso um novo processo de reformulação profissional/curricular na área. A compreensão de tal processo deve ser remetida ao reconhecimento de reformas do Estado brasileiro, onde as reformas educacionais impostas no Brasil pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) ocupam lugar-chave. Na análise de NEVES (1999)

A educação escolar no Brasil, no governo FHC, consolida a tendência já evidenciada nos governos Collor e Itamar Franco de responder aos imperativos da associação submissa do país ao processo de globalização neoliberal em curso no mundo capitalista, ou seja, o sistema educacional como um todo redefine-se para formar um novo trabalhador e um novo homem que contribua para a superação da atual crise internacional capitalista. A educação brasileira, portanto, se direciona organicamente para efetivar a subordinação da escola aos interesses empresariais na "pós-modernidade". (p.134)

De acordo com FRIGOTTO (2001), as reformas educacionais impostas pelo governo FHC representam um grande retrocesso democrático para a sociedade brasileira, abortando o projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e Plano nacional de Educação (PNE) vinculados às lutas das classes populares, que tem como eixo norteador a defesa da escola pública com gestão democrática, gratuita e universal, garantindo-se seu caráter gratuito, laico, universal e unitário. Em seu lugar, vem sendo implementado um projeto profundamente conservador, centrado na ditadura do grande capital e da ideologia neoliberal do mercado autodeterminado. Assim sendo,

O campo educativo, da escola básica à pós-graduação, no quadro do ajuste global, é, então, direcionado para uma concepção produtivista e mercantilista, cujo papel é desenvolver habilidades de conhecimento, de valores e atitudes e de gestão da qualidade, definidas no mercado de trabalho, objetivando formar em cada indivíduo um banco de reserva de competências e habilidades técnicas, cognitivas e de gestão que lhe assegure empregabilidade. (p. 64)

Nesta direção, a primeira das medidas para a redefinição do arcabouço jurídico educacional foi a criação do CNE, ainda no primeiro ano de mandato (Lei 9131/95). Contrariando a proposta da sociedade civil, já em andamento no Congresso Nacional, o CNE foi constituído como um órgão colaborador do Ministério da Educação e do Desporto (MEC) na formulação e avaliação da política educacional, eliminando, assim, a pretendida autonomia frente ao Executivo e a ampla participação da sociedade civil nas sua deliberações (NEVES, 1999; SAVIANI, 1999a). O CNE foi transformado por força de lei, em órgão de Governo e não instituição de Estado, dotando o governo de amplos poderes para definição e implementação de suas políticas para a educação. A este respeito, SAVIANI (1999b) aponta que uma das atribuições da Câmara de Educação Superior é deliberar sobre as diretrizes curriculares para os cursos de graduação propostas pelo MEC. No entanto,

"Observe-se, porém, que todas essas deliberações incidem sobre propostas e relatórios encaminhados pelo MEC e só terão validade se homologadas pelo Ministro da Educação. Aliás, como estipula o artigo segundo da lei em pauta, toda e qualquer manifestação do Conselho Pleno e das Câmaras, para produzir algum efeito sobre a educação nacional, deverá ser homologada pelo Ministro de Estado da Educação e do Desporto. Infere-se, daí, que o Conselho Nacional de Educação fica reduzido, na prática, a um órgão assessor do Ministério da Educação." (p.9)

Pode-se afirmar, com base nos trabalhos de GENTILI (1998), CANDAU (1999), CORAGGIO (1998), entre outros, que o CNE foi definido como órgão consultivo do MEC e não deliberativo, para evitar qualquer interferência que pudesse desviar a política educacional de um novo senso comum tecnocrático. Este senso comum vem sendo pautado em documentos e "recomendações" do Banco Mundial e do FMI, que entranhou-se nos Ministérios da Educação de diferentes países da América Latina, orientando os diagnósticos e as decisões políticas dos administradores destes sistemas escolares. Esse conjunto de discursos, idéias e propostas representa o Consenso de Washington, ou a forma neoliberal na esfera educacional. A saída para a crise educacional apontada pelo neoliberalismo é produto de uma dupla lógica: centralização do controle pedagógico (currículos, avaliação e formação de docentes) e descentralização dos mecanismos de financiamento e gestão do sistema.

O Edital 4/97 da Secretaria de Ensino Superior (SESU) do MEC e o Parecer 776/97 do MEC, deram curso a reconfiguração do ensino superior brasileiro, indicando as orientações gerais para a formulação das diretrizes curriculares dos cursos de graduação, apontando como princípios que precisam ser aqui destacados: (1) possibilitar diferentes formações e habilitações para cada área - privilegiar áreas de conhecimento na composição dos currículos; (2) definir competências e habilidades adaptadas às dinâmicas exigências da sociedade; (3) garantir liberdade às IES para definir pelo menos 50% do total dos conteúdos curriculares, de acordo com suas especificidades; (4) buscar a redução do tempo de duração do curso.

CATANI et alii (2001) associam o processo de reformulação curricular na educação superior brasileira à reestruturação produtiva do capitalismo global, em particular à acumulação flexível e à flexibilização do trabalho, perpassado pela "idéia de que só a formação de profissionais dinâmicos e adaptáveis às rápidas mudanças no mundo do trabalho e às demandas do mercado de trabalho poderá responder aos problemas de emprego e de ocupação profissional" (p.76). Aponta-se para um possível aligeiramento da formação, visando à expansão e massificação da educação superior no país, e para a redução da função social da educação superior ao ideário da preparação para o trabalho, a partir da redefinição de perfis profissionais baseados em habilidades e competências hipoteticamente requeridas pelo mercado de trabalho em mutação. Ademais, a adaptação curricular no formato considerado, implica, em grande medida, em benefício da expansão da educação privada mercantil. Convém recordar que, o Decreto 2207/97 permite que as instituições de ensino superior se organizem em cinco modalidades, onde apenas as universidades manterão a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e a extensão, enquanto às demais realizarão somente atividades de ensino.

Constituída a partir do Edital 4/97 do MEC, a Comissão de Especialistas de Ensino em Educação Física (COES-EF) elaborou uma proposta de diretrizes curriculares que foi encaminhada em 13 de maio de 1999, para o Departamento de Políticas do Ensino Superior (SESU). Tal proposta, apresentada na Revista Brasileira de Ciências do Esporte (KUNZ et alii, 1998) consistiu basicamente, segundo a COESP-EF, em ajustes necessários na Resolução 003/87, já que, segundo a comissão, a referida resolução já atendia em parte às orientações de reformulação curricular propostas, principalmente quanto à extinção do currículo mínimo e à organização do currículo por campos de conhecimento.

Gostaríamos agora, de refletir sobre este equivocado processo. Inicialmente, pode-se questionar quanto a forma do processo, encaminhado sem uma ampla e participativa intervenção dos diversos segmentos da área, a começar pelos prazos exíguos estabelecidos no Edital 4/97. Diferentemente, a Resolução 003/87 foi fruto de cerca de dez anos de discussões. Outro exemplo pode ser observado na experiência da área do Serviço Social, que após exaustivos debates ocorridos entre 1994 e 1996, encaminhou via a Associação Brasileira de Ensino em Serviço Social, uma Proposta Básica para o Projeto de Formação Profissional, que submetida a sua Comissão de Especialistas, foi encaminhada como proposta de Diretrizes Curriculares para a área. A própria COESP-EF ao apresentar sua proposta, menciona o que foi levado em conta na elaboração de sua proposta: o envio de contribuições de 28 IES, que se limitaram a apresentar a organização de seus cursos; os resultados de estudos sobre currículos em educação física (sem mencionar quais); algumas manifestações via internet; críticas e sugestões coletadas em eventos (sem mencionar quais); alguns documentos enviados espontaneamente em reação a primeira versão.

Com relação ao conteúdo, cabe destacar um enorme distanciamento da produção acadêmica e científica no campo da educação e educação física relacionados com a questão. Pode-se reconhecer tal fato quando a COESP-EF identifica uma sintonia da Resolução 003/87 com o ideário da flexibilização curricular proposta no Edital 4797 e Parecer 776/97, admitindo a necessidade da formação por campos de atuação profissional. Assim, além de desconsiderar os diferentes momentos históricos das propostas, omitiu-se que a principal crítica a Resolução 003/87 era a de que esta submetia a formação profissional ao mercado de trabalho, estabelecendo a formação especializada, que colocava em risco a profissão pela fragmentação do conhecimento e pelo esfacelamento em agrupamentos corporativistas (FARIA JR., 1987). A proposta da COES-EF buscou agradar a "gregos e troianos", propondo um aprofundamento em campos de atuação a partir de uma formação comum.

A aprovação pelo CNE do Parecer 138/2002, combinada com os Pareceres 9/2001, 21/2001, 27/2001 e as Resoluções 1/2002 e 2/2002 que orientam a formação por meio da Licenciatura Plena, são claros indicativos de desconsideração da proposta elaborada pela COESP-EF. Não é de se estranhar que tal fato tenha acontecido, pois o mesmo é coerente com as análises aqui desenvolvidas a respeito da forma como o governo FHC vem encaminhando sua política educacional.

Resta ainda uma grande preocupação com relação a este processo. Esta refere-se à definição do profissional de educação física como profissional da área de saúde (Parecer 138/2002), o que se deve em grande parte, ao lobby dos setores mais conservadores da educação física, representados em especial, pelo Conselho Federal de Educação Física. Como ficará a formação do licenciado em educação física a partir desta definição? Qual concepção de educação física (escolar) que orientará o processo de formação deste professor? Quais as repercussões deste fato na formação humana da educação básica e educação profissional, especialmente nas escolas públicas?

Sabe-se que o aparato legal só poderá ser superado numa outra conjuntura política. No entanto, as orientações legais precisam ser materializadas no currículo e nas práticas curriculares. É possível reconhecer contribuições que apontam outros princípios norteadores para o processo de formação profissional na área (TAFFAREL, 1998; TAFFAREL, 1997; COMISSÃO DE ESTUDOS CURRICULARES EM EDUCAÇÃO FÍSICA DA FEF/UFG, 1998-1999; entre outros). Cabe aos educadores, em especial aqueles que estão inseridos nas IES públicas, considerar estas contribuições e construir propostas e ações de resistência e enfrentamento ao projeto educacional neoliberal, caminhando na direção de uma perspectiva para além do capital. O cenário é crítico, cabendo uma pergunta: "E AGORA JOSÉ"?

Obs. O autor, Alvaro de Azeredo Quelhas, é da Faculdade de Educação da UFJF

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