Integra

Um dia antes de sair para a viagem que agora faço tive o prazer de jantar com o jornalista dinamarquês Jens Sejer Andersen. Jens (pronuncia-se Iens, in portuguese) é uma daquelas pessoas singulares que já foram mais comuns no passado. Sensível, solidário, idealista e que, para nossa sorte, envolveu-se com o esporte e hoje deposita sua energia em um movimento internacional chamado Play the Game (www.playthegame.org). Ele tinha feito contato para conversarmos sobre projetos futuros e me pegou num daqueles dias de pura exaustão, quando não é possível raciocinar nem em português, quanto mais em outro idioma. Depois de algumas tentativas infrutíferas de articular mais que dois pensamentos lógicos pedi-lhe desculpas pela minha incapacidade de comunicação no idioma bretão naquele momento. Ele me deixou muito a vontade e começou a falar em espanhol, minha verdadeira segunda língua. E então a conversa fluiu e pudemos avançar por territórios de nosso pensamento abstrato, condição possível apenas quando mais que uma pessoa compartilha dos mesmos códigos da comunicação.

Avançamos no jantar (e na garrafa de vinho) e então, para minha surpresa Jens me pediu desculpas por me fazer gastar minha energia falando em um idioma que não era o meu natal, afinal, estando em meu país ele entendia que seria uma atitude respeitosa falar a minha língua e não qualquer outra, tomada como universal, sabe-se lá por que. Sei que aquela fala não carregava qualquer hipocrisia. Ele de fato parou para pensar no que havia ocorrido ali, naquele momento, e que tinha significados mais profundos para quem olha para o mundo com o cuidado DE FATO do respeito à diferença. Jens, mais do que um estudioso da cultura e da diversidade é alguém que PRATICA o que se entende por multiculturalismo ou transculturalismo. Naquele jantar fui convidada a ser uma das speakers na conferência Play the Game 2011 e ainda sob o efeito de todos os temas conversados disse que me sentia honrada pelo convite, mas que se estivesse em um dia como aquele que passou conseguiria comunicar pouco mais que meu nome aos ouvintes. Evitando um mal estar desnecessário ele me respondeu que isso não seria problema e que se aplicaria a mesma fórmula utilizada no ano anterior com Eduardo Galeano (sim, ele mesmo), ou seja, eu iria falar em português, meu idioma natal, com o qual eu posso respeitar o lirismo das palavras, a delicadeza das metáforas e não deixar escapar o humor, sutil mecanismo do inconsciente, possível apenas àqueles que dominam perfeitamente as mazelas de qualquer idioma.

Saí do jantar pensando que talvez tivéssemos quebrado um paradigma não apenas na produção do conhecimento, mas principalmente no entendimento entre os povos… e não é disso que os estudiosos da cultura costumam se ocupar?

Dias depois aportei em território sagrado do conhecimento: um congresso. Palavra de origem latina congressus, cujo significado é encontro, podendo ser ele hostil ou amigável, e se decomposto poderíamos ainda ter com, junto de e ainda gradi, caminhar. Sempre entendi os congressos como momento de encontro entre pessoas que buscam compartilhar conhecimento, apresentar o que fazem com a coragem e a honestidade de trazerem a público aquilo que deu certo, e também errado, em suas pesquisas. Confesso que tomei essas situações como aversivas durante muito tempo, justamente por conta da barreira linguística.

Sou uma daquelas pesquisadoras que trabalha um texto como uma peça de artesanato. Não me basta apenas comunicar uma idéia seguindo o manual que nos obriga a seguir o esquema de sumário, apresentação, metodologia, discussão e conclusões. Quanto tempo mais será preciso para que os doutos entendam que, pelo menos nas ciências humanas, é possível se escrever um texto acadêmico sensível, quase poético? Faço e refaço uma frase ou vários parágrafos tantas vezes quantas achar necessário até que eles possam exprimir não apenas aquilo que penso, mas também aquilo que sinto.

Ao falar isso essa situação ganha uma outra dimensão. Que prazer poder comunicar uma idéia com a fluidez do mel que cai da colher ou então fazer um xiste aproveitando um situação que ocorre no momento da fala e que se encaixa perfeitamente à situação. Bendito sejam todos aqueles que se debruçaram sobre a linguagem e a circulação de significados que ela carrega. Lembro de ter escrito em minha tese de livre docência que a linguagem deixou de ser uma forma de relatar ou transmitir com neutralidade os significados que pretendemos expressar e passou a constituí-los. Dessa forma, os considerados fatos naturais, também denominada realidade, são tidos como fenômenos discursivos, cujos significados surgem a partir dos jogos de linguagem e dos sistemas de classificação nos quais estão inseridos. E assim, o discurso não é entendido no seu aspecto lingüístico ou como um conjunto de palavras, mas como um conjunto de práticas que produzem efeitos no sujeito.

Imaginava que seriam desnecessários todos esses argumentos em um fórum onde a cultura fosse a questão norteadora das discussões. Afinal, os desdobramentos da operacionalização de um conceito expandido de cultura são, para Escosteguy (2003), o momento em que os Estudos Culturais prestam atenção às formas de expressões culturais não tradicionais, descentrando a legitimidade cultural. Além disso, enfatizar a noção de cultura como prática a define nos campos social e econômico, dentro dos quais a atividade criativa é condicionada. Isso representa a necessidade de atentar para as relações de produção, distribuição e recepção culturais, assim como sobre as práticas econômicas que estão intimamente relacionadas à constituição do sentido cultural. Não vou aqui reescrever minha tese, mas apenas reforçá-la. Faço essa digressão para manifestar meu descontentamento com aqueles que ousam teorizar sobre o multiculturalismo, mas não conseguem superar uma condição planetária básica que é a diferença de idiomas. Onde está o respeito se imponho de antemão uma forma de comunicação tida como universal?

Longe de desejar fomentar a discriminação ou a xenofobia vejo que embora muito se tenha avançado naquilo que se refere à integração entre pesquisadores de diferentes partes do mundo, isso só pode acontecer (ao olhar de muitos) se ocorrer no idioma tido como universal no meio acadêmico que é o inglês. Não importa de onde você seja ou o que você pense, a manifestação do pensamento terá que ser nesse idioma. E essa imposição, ou espécie contemporânea de imperialismo lingüístico, gerador do imperialismo acadêmico, ganha contornos dramáticos quando não basta apenas se seguir a forma, mas é preciso caminhar par e passo também com a estrutura de pensamento do outro idioma. Ou seja, as frases têm que ser curtas e objetivas, sem muitas abstrações ou figuras de linguagem, afinal ingleses e americanos pensam assim.

Acompanho com espanto e preocupação a aquiescência a esse movimento. Por que seguir esse padrão se nossa forma de pensar e explicar o mundo é outra? Quiseram me convencer que não explicamos quase nada e que reproduzimos, em grande medida, as explicações de outros, afinal se não fosse assim por que usar tanto termos como conforme, de acordo com, segundo ou no entender de?

Lembro de uma passagem do livro Guerra e Paz, de Tolstoi, em que uma das manifestações de erudição da aristocracia russa era fazer uso de palavras em francês. No entanto, quando Napoleão chegou às portas de Moscou esse hábito passou a ser tomado como nocivo, e uma brincadeira utilizada nas festas era fazer os descuidados pagarem multa por palavras proferidas no idioma do imperialismo da época.

Não estou propondo nenhuma cruzada contra a imposição do inglês no meio acadêmico, mas lembrar que há muito mais vida inteligente para além das fronteiras onde se fala esse idioma. E se desejamos ter acesso a alguma informação que de fato nos interessa, nós buscamos as maneiras necessárias para acessá-la. Nesse sentido fica aqui registrado todo o meu agradecimento a quem de fato faz esse esforço na pessoa dos professores da ISSA como Kimberly Schimmel, Steve Jackson, Elisabeth Pike e J. Coakley que desde nosso primeiro encontro não deixaram que as barreiras lingüísticas dificultassem nosso diálogo no sentido do entendimento de fenômenos tão caros a todos nós. Saibam vocês, querido colegas, que mais do que praticarem o respeito à diferença, que tanto teorizamos e estudamos, vocês são um exemplo da superação do imperialismo acadêmico ainda tão presente em nosso meio.

ESCOSTEGUY, A. C. D. Os Estudos Culturais e a constituição da sua identidade. In.: N. M. F. Guareschi e M. E. Bruschi (orgs) Psicologia Social nos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2003.

Acessar