Doping Sangüíneo no Esporte
Por Dilson José Etcheverry Rassier (Autor), Antônio José Natali (Autor), Eduardo Henrique de Rose (Autor).
Em Revista Brasileira de Educação Física e Esporte (até 2003 Revista Paulista de Educação Física) v. 10, n 1, 1996. Da página 76 a 86
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"DOPING" SANGÜÍNEO NO ESPORTE
RESUMO
"Doping" sangüíneo é a infusão ou reinfusão de sangue no organismo de um atleta. Seu princípio fisiológico é que após a flebotomia o organismo do atleta é exposto a uma hipoxia, que induz uma eritrocitemia, gerando, assim, a produção de novos eritrócitos. Após a infusão ou reinfusão sangüínea têm-se como conseqüência uma elevada concentração de hemoglobina plasmática seguida de uma melhora da "performance". Este procedimento pode ser realizado utilizando-se o sangue da mesma pessoa (reinfusão-autóloga) ou de outra pessoa (infusão-heteróloga). A eritrocitemia pode ser induzida também através da injeção de eritropoietina recombinante humana (rhEPO). Este hormônio age sobre as colônias formadoras de unidades de eritróides desencadeando a formação de novos eritrócitos. Espera-se que indivíduos tratados com rhEPO melhorem sua capacidade de realizar exercícios físicos prolongados. Existe a suspeita de que alguns atletas das provas de resistência aeróbia têm se beneficiado deste recurso. Apesar de estarem sendo pesquisadas algumas formas de detecção, não existem, ainda, métodos analíticos de detecção desta forma de "doping" que possam ser confiáveis.
UNITERMOS: "Doping"; "Doping" sangüíneo; Eritrocitemia induzida.
INTRODUÇÃO
Nos desportos, a constante busca por melhores resultados induz técnicos e atletas a procurarem formas diversas de melhora da "performance". Neste sentido, os treinadores buscam constantemente o aprimoramento das formas de treino, assim como dos recursos ergogênicos utilizados para tais fins. O uso de alguns destes recursos pelos atletas é permitido e outros não. Dentre aqueles que são repugnados pelas entidades dirigentes do desporto encontra-se o "doping". Nos desportos de predomínio aeróbio, algumas evidências chamam a atenção para a utilização do "doping" sangüíneo. Seu princípio fisiológico é que após a flebotomia o organismo do atleta é exposto a uma hipóxia, gerando a produção de novos eritrócitos. Assim, a subseqüente infusão ou reinfusão sangüínea causaria uma elevação na concentração de hemoglobina ([Hb]) plasmática e uma conseqüente melhora da "performance" (Berglund & Hemmingsson, 1987; Pace, Consolazio & Lozner, 1945; Spriet, Gledhill, Froese & Wilkes, 1986). Mais recentemente, baseando-se nos referidos princípios fisiológicos, sabe-se que vem sendo utilizada por atletas a injeção de eritropoietina recombinante humana (rhEPO) (Casoni, Ricci, Ballarin, Borsetto, Grazzi, Guglielmini, Manfredini, Mazzoni, Patracchini, De Paoli Vitali, Rigolin, Bartalotta, Franze, Masotti & Conconi, 1993; Conconi, Casoni, Manfredini, Mazzoni, Grazzi, Guglielmini, Ballarin, Borsetto, Buzzoni, Guerra, Ricci, Dapporto & Rigolin, 1994), substância produzida a partir da glicoproteína hormonal eritropoietina (EPO) por técnica DNA recombinante, que também induz a produção de novos eritrócitos e proporciona os mesmos efeitos relativos à elevação da [Hb] e melhora da "performance" eliminando, assim, a necessidade de infusão ou reinfusão sangüínea (Adamsom & Vapnek, 1991; Casoni et alii, 1993; Conconi et alii, 1994; Ekblom & Berglund, 1991). Desta forma, o Comitê Olímpico Internacional (COI) tem banido o uso deste hormônio sintético pelos atletas, disponível no mercado desde 1988 (Casoni et alii, 1993; Conconi et alii, 1994; International Olympic Committee, 1992). Porém, sua utilização não pode ainda ser detectada (Adamsom & Vapnek, 1991). O objetivo deste trabalho é discutir os fundamentos fisiológicos do "doping" sangüíneo, assim como as técnicas pesquisadas para sua detecção. Para tal abordar-se-à primeiramente o "doping" sangüíneo, em seguida as suas formas para, posteriormente, expor suas bases fisiológicas e as propostas de detecção existentes. Ao final serão feitas algumas considerações sobre o tema.
"DOPING" SANGÜÍNEO
De acordo com o United States Olympic Committee (USOC) citado por Fox, Bowers & Foss (1991), o "doping" sangüíneo é a injeção intravenosa de sangue (sangue total, papa de hemácias ou derivados de sangue) no organismo de um atleta independentemente do fato desse sangue ser do próprio atleta ou de outra pessoa, com a finalidade de aprimorar o desempenho. A partir do conhecimento de que quando um atleta é submetido a treinamentos em altitudes elevadas, sabe-se, sua capacidade aeróbia é aumentada e, com base na resposta do organismo quando exposto a uma condição de hipóxia, iniciaram-se, nos anos 70, as pesquisas na área do "doping" sangüíneo com Ekblom, Oldbarg & Gullbring (1972). De acordo com McArdle, Katch & Katch (1992), admite-se, teoricamente, que o volume sangüíneo acrescentado contribui para um maior débito cardíaco máximo e que a papa de hemácias aumenta a capacidade sangüínea de transportar oxigênio (O2) e, desta forma, eleva-se a quantidade de O2 disponível para os músculos ativos. O "doping" sangüíneo é realizado basicamente de três formas: autóloga, heteróloga e, mais recentemente, a utilização de rhEPO, as quais serão descritas a seguir.
"Doping" autólogo
A principal característica deste tipo de "doping" é que o sangue a ser utilizado é retirado do próprio atleta, sendo armazenado para posterior reinfusão. Para prevenir uma redução drástica na concentração das células sangüíneas, cada unidade de sangue (uma unidade equivale a 450 ml) é retirada durante um período de três a oito semanas, pois em geral é este o período de tempo que o indivíduo leva para restabelecer os níveis hepáticos normais. Nesta técnica o plasma é removido e reinfundido imediatamente e as papas de hemácias são congeladas e guardadas (Gledhill, 1982). O armazenamento deste sangue pode ser feito de duas maneiras diferentes: pode ser estocado de forma convencional, ou seja, em refrigeração a aproximadamente 4oC, ou pode ser congelado após ser centrifugado e misturado com altas doses de glicerol e armazenado em nitrogênio líquido a -80oC (Jones & Pedoe, 1989). O tempo mínimo que o sangue deve permanecer armazenado antes da reinfusão deve ser de três semanas para que os níveis normais de Hb se restabeleçam no organismo dos atletas após a flebotomia, mas o período de tempo considerado ideal para o armazenamento é de oito a 12 semanas (Collings, 1988). Este período é indicado com base no fato de que seis a 7% das células vermelhas armazenadas são perdidas a cada semana quando é utilizada a técnica convencional (refrigeração a 4° C) (Jones & Pedoe, 1989). Portanto, esta técnica é limitada quanto ao ganho em "performance" dos atletas, pois no momento da reinfusão, após três ou quatro semanas de armazenamento, o sangue pode ter perdido entre 30 a 40% dos eritrócitos, prejudicando os resultados esperados (Gledhill, 1982; Jones & Pedoe, 1989). Existe ainda o fato de que, mesmo com a utilização de anti-coagulantes, o sangue vai aos poucos deteriorando-se e os eritrócitos vão tornando-se progressivamente menos flexíveis e mais frágeis (Konstrup & Ekblom, 1984), o que resulta no aumento da viscosidade sangüínea (Collings, 1988). A fragilidade aumentada das células vermelhas pode, ainda, acarretar sua fragmentação quando em sua reinfusão (Berglund, Hemmingsson & Birgegard, 1987; Collings, 1988). Já o congelamento das células sangüíneas com altas doses de glicerol tem duração indeterminada e, por isso, é a mais utilizada. Após o congelamento a -80° C com glicerol, as células são descongeladas e passam por uma série de lavagens de alta osmolaridade para a remoção do glicerol para, depois, serem novamente suspensas em substância salina normal e reinfundidas numa suspensão com hematócrito (Hct) de aproximadamente 50%. Com este procedimento, a perda de células vermelhas é de aproximadamente 15% (Berglund et alii, 1987; Collings, 1988). Tem sido mencionado também que durante o armazenamento das células vermelhas, nas técnicas referidas acima, ocorre uma redução da enzima 2,3-difosfoglicerato (2,3-DPG) o que inibiria o aumento da quantidade de O2 transportado para os músculos e consequentemente no VO2max (Smyth, 1979). Tomados os devidos cuidados técnicos, as células sangüíneas estocadas são, em seguida, reinfundidas no atleta em um período de um a sete dias antes de uma prova de resistência aeróbia. Gledhill (1982) afirma que a contagem de hemácias e o nível de Hb do sangue elevam-se em aproximadamente oito a 20%, mantendo-se elevados por pelo menos 14 dias. O "doping" autólogo, por envolver infusão intravenosa, resulta em alguns riscos como trombose venosa e flebite, principalmente se a transfusão é feita sem os devidos cuidados com a esterilização. Além disso, o Hct elevado, a viscosidade e hipercoagulabilidade do sangue aumentados após a transfusão submetem o atleta aos riscos de trombose venosa e embolia pulmonar (Jones & Pedoe, 1989). Outro problema é que a retirada de 500 ml de sangue em uma ou mais ocasiões provoca efeitos de destreinamento (Jones & Pedoe, 1989).
"Doping" heterólogo
Também chamado de "doping" homólogo (McArdle et alii, 1992), esta forma de "doping" pode ser colocada como precursora do "doping" sangüíneo. Nesta técnica o sangue a ser utilizado é retirado de outras pessoas que possuam um sangue compatível ao do atleta, podendo ser infundido imediatamente ou armazenado para posterior utilização (Jones & Pedoe, 1989). Os procedimentos de retirada, armazenamento e reinfusão obedecem os mesmos princípios do "doping" autólogo. Esta forma de "doping" sangüíneo expõe o atleta aos riscos mencionados no "doping" sangüíneo autólogo, por causa da infusão sangüínea intravenosa, e a uma série de riscos relativos à transmissão de doenças infecto-contagiosas, AIDS por exemplo, bem como de outras doenças como hepatite e doenças hepáticas crônicas (Alter, 1981; Berglund, 1988; Jones & Pedoe, 1989). Outra dificuldade que se encontra é a possibilidade de ocorrerem reações à transfusão, principalmente devido à incompatibilidade de tipos sangüíneos (Berglund, 1988; Jones & Pedoe, 1989).
"Doping" com eritropoietina recombinante humana (rhEPO)
A eritropoietina (EPO) é um hormônio glicoprotéico com peso molecular de 30 400 daltons, sendo constituído de uma cadeia polipeptídica composta de 165 aminoácidos com três pontes dissulfídicas e quatro cadeias polissacarídicas (Gareau, Brisson, Ayotte, Audran, & Chanal, 1994). A sua produção é desencadeada, principalmente, pelos rins (Fried, Barone-Varelas & Morley, 1984; Jacobson, Goldwasser, Fried & Plzak, 1957; Maxwell, Lappin, Johnston, Bridges & McGeown, 1990), embora, no período fetal e neonatal, seja produzida, principalmente, pelo fígado (Clemons, Fitzsimmons & Demanincor, 1986; Zanjani, Ascensão, McGlave, Banisadre & Ash, 1981). A EPO age principalmente sobre as células chamadas de colônias formadoras de unidades de eritróides, que são muito sensíveis à sua ação. A formação de eritrócitos é estimulada principalmente pelos mecanismos desencadeados após a formação do hemocitoblasto, antes mesmo do início da síntese de Hb. Estas colônias tendem a ser pequenas e com baixo nível de Hb (Zanjani & Ascensão, 1989), sendo consideradas o foco principal de ação da EPO. A partir da caracterização bioquímica da EPO (Cotes, 1982; Myiake, Kung & Goldwasser, 1977) utilizou-se uma técnica de DNA recombinante para desenvolver a rhEPO. Esta substância vem sendo utilizada há algum tempo no tratamento de pacientes com anemia causada por insuficiência renal crônica (Eschbach, Kelly & Haley, 1989; Hughes, Cotes, Pippard, Stevens, Oliver, Winearls & Royston, 1990; Winearls, Oliver, Pippard, Reid, Downing & Cotes, 1986) com comprovado sucesso, por aumentar a produção de eritrócitos e facilitar a doação sangüínea autóloga (Adamson & Eschbach, 1990; Goodnough, Rudnick, Price, Ballas, Collins, Crowley, Kosmin, Kruskall, Lenes, Menitove, Silberstein, Smith, Wallas, Abels & Von Tress, 1989). Com o surgimento deste hormônio no mercado, a partir de 1988, existe a suspeita de que ele venha sendo utilizado por atletas de alto nível das modalidades de predomínio aeróbio (Casoni et alii, 1993; Conconi et alii, 1994; International Olympic Committee, 1992), baseado no princípio de que uma maior produção de eritrócitos teria como conseqüência uma melhora no transporte do O2 pelo sangue, seguida de uma melhora na "performance" (Adamsom & Vapnek, 1991; Casoni et alii, 1993; Conconi et alii, 1994; Ekblom & Berglund, 1991). Neste tipo de "doping" sangüíneo, com administração de rhEPO, o efeito colateral apresentado foi aumento na pressão arterial sistólica (PAS) (Canadian Erythropoietin Study Group, 1990) em exercício realizado com carga correspondente à 200 Watts (Berglund & Ekblom, 1991) e em exercício máximo (Rassier, Ribeiro, Prompt, Natali, Cavalcanti & De Rose, 1994) depois do tratamento com rhEPO.
BASES FISIOLÓGICAS DO "DOPING" SANGÜÍNEO
O "doping" sangüíneo se apoia na idéia de que após a flebotomia, o organismo do atleta entra no estado de eritropoiese buscando o restabelecimento do nível normal de eritrócitos. Após a infusão ou reinfusão sangüínea tem-se como conseqüência uma elevada [Hb] plasmática aumentando, assim, a capacidade de transportar O2 e consequentemente a capacidade aeróbia (Berglund et alii, 1987; Buick, Gledhill, Froese, Spriet & Meyers, 1980; Willians, Wesseldine, Somma & Schuster, 1981). Historicamente, o estudo experimental com homens relativo ao aumento do Hct, ao aumento na [Hb] e à melhora da "performance" após transfusão sangüínea foi feito por Pace et alii (1945). Em outros estudos sobre infusão ou reinfusão sangüínea os autores demonstraram aumento significativo no Hct e na [Hb] (Berglund et alii, 1989; Brien & Simon, 1987; Buick et alii, 1980; Konstrup & Ekblom, 1984; Robertson, Gilcher, Metz, Casperson, Abbott, Allison, Skriner, Werner, Zelicoff & Krause, 1979; Robertson, Gilcher, Metz, Casperson, Allison, Abbott, Skriner, Krause & Nixon, 1984; Spriet et alii, 1980; Willians et alii, 1981), no VO2max (Buick et alii, 1980; Ekblom, Wilson & Astrand, 1976; Konstrup & Ekblom, 1984; Robertson, Gilcher, Metz, Bahnson, Allison, Skriner, Abbott & Becker, 1978; Robertson et alii, 1979, 1984; Sawka, Dennis, Gonzales, Young, Muza, Martin, Wenger, Francesconi, Pandolf & Valeri, 1987; Spriet et alii, 1986) e na resistência aeróbia (Buick et alii, 1980; Brien & Simon, 1987; Konstrup & Ekblom, 1984; Robertson et alii, 1978, 1979, 1984; Willians et alii, 1981). Em relação ao uso da rhEPO, alguns estudos (Gibilaro, Delano & Quinn, 1988; Mayer, Thum & Cada, 1988; Robertson, Haley & Adamson, 1988) demonstraram aumento significativo no limiar anaeróbio, no VO2max, na [Hb], na tolerância ao exercício e na capacidade máxima de esforço de pacientes anêmicos tratados com rhEPO. Robertson, Haley, Guthreie, Cardenas, Eschbach & Adamson (1990) demonstraram que a capacidade de indivíduos anêmicos, que faziam hemodiálise, para executar exercícios físicos melhorou significativamente após a correção de sua anemia com rhEPO. Estes autores observaram que todos os pacientes aumentaram o Hct significativamente e isto estava associado a um aumento no VO2max. Observaram também que em qualquer carga de trabalho, os índices de freqüência cardíaca, ventilação minuto e a percepção subjetiva de esforço diminuíram significativamente após o tratamento com rhEPO. E, finalmente, observaram que a capacidade de resistir a esforços prolongados, assim como a força isométrica e isocinética do quadríceps dos pacientes tratados com rhEPO melhoraram significativamente. O Canadian Erythropoietin Study Group (1990) demonstrou um aumento na tolerância ao exercício. Braumann, Nonnast-Daniel, Boning, Bocker & Frei (1991) demonstraram aumento na [Hb], tolerância ao esforço, aumento do limiar aeróbio e no suprimento muscular de O2. Lundin, Akerman, Chesler, Delano, Goldberg, Stein & Friedman (1991) demonstraram aumento na [Hb], associado ao aumento no VO2max e redução no metabolismo anaeróbio nas atividades diárias. No que se refere à capacidade de exercitar de indivíduos sadios que receberam a administração de rhEPO, (Berglund & Ekblom, 1991) testaram os efeitos da rhEPO nas respostas circulatórias ao exercício máximo e submáximo em 15 sujeitos. Além de um aumento significativo na [Hb], houve um aumento paralelo no VO2max. Não aconteceram mudanças significativas na freqüência cardíaca, ventilação e limiar do lactato durante o teste de corrida até a exaustão. Comparando os sujeitos tratados com rhEPO com os sujeitos reinfundidos com eritrócitos, estes autores não encontraram diferenças significativas entre os dois grupos no que diz respeito ao aumento de VO2max, em relação à taxa de aumento na [Hb]. Houve aumento maior na [Hb] no grupo submetido à reinfusão sangüínea. Casoni et alii (1993) trataram atletas de diferentes modalidades (ciclismo, futebol e corrida) com rhEPO e constataram aumento significativo na [Hb], no número de hemácias, nos eritrócitos e no Hct. Neste sentido, Rassier (1994) tratou 11 corredores de longa distância e observaram aumento na [Hb] e no tempo máximo de exercício até a exaustão em esteira. Alguns parâmetros fisiológicos importantes para o desempenho da atividade física aeróbia e inerentes ao "doping" sangüíneo, tais como a sua execução em ambientes quentes, a acidose lática, a carreação de O2, o volume sangüíneo, volume sistólico e débito cardíaco e a perda de 2,3-DPG merecem algumas considerações. Relacionando o "doping" sangüíneo ao exercício de resistência em ambientes quentes, sabe-se que uma parte significativa do débito cardíaco está envolvida na dissipação do calor e não está disponível para o transporte de O2 ao músculo limitando, assim, a "performance" (Jones & Pedoe, 1989). Com o aumento dos hematócitos através do "doping" sangüíneo, uma maior parte dos hematócitos poderá suprir o transporte de O2 ao músculo que está trabalhando, podendo ainda ser mantido com maior eficiência o processo de termorregulação (Sawka et alii, 1987). Quanto à acidose láctica muscular e sangüínea, sabe-se que esta pode ser um fator decisivo na prova de resistência aeróbia, pois a concentração elevada de lactato limita a "performance" (Nadel, 1985). Considerando-se que no organismo o sangue é um dos principais sistemas de tamponamento ácido-base, sendo as células vermelhas responsáveis por 70% da capacidade de tamponamento do sangue (Willians et alii, 1981), o aumento da massa de células vermelhas e, consequentemente, o aumento da capacidade de tamponamento do ácido láctico faz com que os músculos trabalhem mais tempo sem serem afetados pela acidose (Gledhill, 1982). Este efeito está adicionado à maior capacidade aeróbia produzida pelo "doping" sangüíneo (Buick et alii, 1980; Sawka et alii, 1987). Considerando que o "doping" sangüíneo aumenta o carreamento de O2 no sangue e que cada grama de Hb completamente saturada transporta 1,34 ml de O2, o aumento de duas gramas de Hb para cada 100 ml de sangue provoca um aumento potencial no carreamento de O2 por litro de sangue em 25 ml. Assumindo-se a saturação venosa de 50%, a metade disso estaria disponível no músculo que trabalha e no débito cardíaco de exercício de 24 l/min, 300 ml de O2 extra poderia ser entregue ao tecido (Jones & Pedoe, 1989). Neste sentido, a "performance" poderia melhorar se o débito cardíaco em exercício for mantido, não sendo alterado pelo aumento da viscosidade sangüínea, ou se os músculos exercitados utilizarem o O2 adicional. Os atletas de resistência aeróbia normalmente possuem um volume sangüíneo e plasmático maior do que indivíduos normais (Oscai, Williams & Hertig, 1968), o que reduz a [Hb] e provoca o fenômeno conhecido como anemia de atleta. Este volume sangüíneo elevado, consequentemente, aumenta o volume sistólico e o débito cardíaco máximo dos atletas. Estas alterações, juntamente com uma maior capilarização muscular proporciona uma maior extração de O2 do sangue, o que auxilia o atleta a utilizar este consumo de O2 elevado como suporte para permanecer mais tempo em atividades de resistência aeróbia. Sawka et alii (1987) demonstraram que o aumento do plasma ocorreu em uma hora após transfusão e que a transfusão do sangue total teve o mesmo efeito das células armazenadas para os sujeitos normais, ou seja, sujeitos com volume sangüíneo normal. Entretanto, segundo Gregerson & Dawson (1959) esta hipervolemia é corrigida pela redução do plasma sangüíneo, sendo apenas transiente. Por outro lado, Von Rost, Hollman, Liesen & Schultzen (1975) e Ekblom et alii (1976) não observaram alteração no volume sangüíneo 24 horas após a reinfusão. Neste sentido, Buick et alii (1980) também observaram um pequeno, mas não significativo, aumento no volume sangüíneo no período de 24 horas a uma semana após a reinfusão. Em relação à perda de 2,3-DPG, sabe-se que a Hb tem mais afinidade pela 2,3-DPG do que pelo O2, assim, estando a 2,3-DPG reduzida, ocorre um aumento na afinidade da Hb pelo O2. Isto causa uma inclinação da curva de dissociação da Hb para a esquerda resultando numa redução do transporte de O2 para os tecidos (Smyth, 1979). Entretanto, quando as células vermelhas são reinfundidas com baixo nível de 2,3-DPG, este nível se restabelece em menos de 24 horas (Beutler & Wood, 1969). Além disso, é possível fazer uma mistura das células vermelhas armazenadas com inosina, piruvato, glicose, fosfato e adenina, retornando o nível da 2,3-DPG ao normal, o que causa a inclinação temporária da curva de dissociação da Hb para a direita aumentando o transporte de O2 para os tecidos (Valeri, 1976).
DETECÇÃO DO "DOPING" SANGÜÍNEO
A suspeita de utilização de "doping" sangüíneo vem desde a década de 70. Nos Jogos Olímpicos de 1976, a imprensa divulgou que o fundista finlandês Lasse Virem estava praticando "doping" sangüíneo, pois, conseguira o primeiro lugar nas provas de 5 000 e 10 000 metros e o quinto lugar na maratona (Fox et alii, 1991). De acordo com o USOC citado por Fox et alii (1991), qualquer evidência capaz de confirmar que a prática do "doping" sangüíneo foi utilizada em um atleta será causa suficiente para uma ação punitiva, comparável àquela adotada para a utilização de uma substância proibida, relativa a qualquer um implicado por essa evidência. Até pouco tempo atrás, o controle anti-"doping" nas competições esportivas tem se limitado a análise de amostras de urina para posterior detecção de agentes químicos dopantes, por ela eliminadas, que foram ingeridos pelo atleta ou a ele administrados antes ou durante as competições desportivas. Assim, somente o "doping" químico é controlado nas competições de uma forma geral. Em 1994, nos Jogos de Inverno de Lillehamer deu-se a coleta de amostras de sangue para o controle anti-"doping". Mesmo assim, esta coleta é feita somente quando a respectiva Federação Internacional da modalidade solicita ao COI que faça testes sangüíneos. Este procedimento vem sendo adotado pela Federação Internacional de Esqui desde 1989. Especialmente para o "doping" sangüíneo ainda não existe um método de detecção plenamente confiável, mas existem algumas propostas de detecção que serão apontadas a seguir.
"Doping" convencional
Segundo Berglund et alii (1987), os níveis de EPO do grupo que recebeu reinfusão autóloga reduziram-se em 62%, em relação ao grupo controle, após uma semana de reinfusão e permaneceram com os mesmos índices por quatro semanas. Estes autores sugerem que se em exames realizados um dia após a prova apresentarem concentrações de EPO acima de 15 mU/ml junto a uma alta [Hb], é possível detectar cerca de 50% de atletas que fizeram reinfusão sangüínea. Para eles, é possível estabelecer um algoritmo baseado nas modificações dos níveis de Hb e EPO. Com testes feitos em duas séries de amostras um aumento maior que 5% na [Hb] e uma redução maior que 50% na concentração de EPO entre os exames (duas a quatro semanas), respectivamente, após a reinfusão, possibilita detectar 50 a 67% dos dopados. Mais tarde, Berglund, Birgegard, Wide & Pihlstedt (1989) descobriram que a redução na concentração de EPO deveria ser menor (30-40%) para se usar o algoritmo sugerido anteriormente como método de detecção da transfusão autóloga. Entretanto, estes autores reconhecem neste estudo que a redução na concentração de EPO sérica induzida pela transfusão, em sujeitos com esta concentração normal, é relativamente pequena. Isto coloca em dúvida se o algoritmo sugerido pode ser usado com segurança. Uma transfusão heteróloga pode ser detectada demonstrando-se que as células vermelhas estão carreando grupos sangüíneos estranhos (não-ABO), desde que um completo confronto de todos os grupos sangüíneos fosse estatisticamente uma remota possibilidade (a menos que o atleta tivesse um irmão gêmeo) (Berglund & Hemmingsson, 1987; Berglund et alii, 1987). Em outro estudo, Berglund (1988) indica que a distribuição não uniforme dos tamanhos das células vermelhas (influenciado pela idade da célula) tem sido sugerido como um método para detecção da transfusão sangüínea. De acordo com Videman, Sistonen, Stray-Gunderson & Lereim (1990), se após os cálculos os valores médios das concentrações de Hb e EPO apresentarem variações de três desvios acima dos valores médios da população, os dados deveriam ser submetidos a análises posteriores. Porém, estes autores analisaram 66 amostras num campeonato de esqui de montanha e não detectaram nenhum caso. Além disso, a infusão de sangue refrigerado convencionalmente (a 4° C) produz um rápido aumento no ferro e bilirubina séricos e uma queda na EPO sérica. Esta EPO é suprida pelo exercício físico e, assim, o baixo nível de EPO dos atletas em competições não pode ser diagnosticado (Jones & Pedoe, 1989). Buscando outra forma de detecção, Fargehol & Heir (1994) indicaram que a transfusão de uma unidade (450 ml) de todo sangue resultará em aproximadamente 10% de eritrócitos alogênicos na circulação. Para tal detecção estes métodos dependem da identificação de diferentes grupos sangüíneos entre o sangue do indivíduo e o sangue transfundido. Para isso, são necessárias técnicas de classificação como: ABO-, Rh (Cc DEe)-, K , Jk, Fy e MNSs. De acordo com estes autores, para conseguir alta probabilidade de que o sangue alogênico transfundido seja detectado, é importante investigar grande número de sistemas imunológicos de grupos sangüíneos. Baseado na posição de Fargehol & Heir (1994), parece ser mais fácil detectar células alogênicas antígeno-positivas entre antígeno-negativo do que vice-versa. Estes métodos são aceitos para demonstrar objetivamente a presença de mais de um a 5% de células transfundidas e que o sangue alogênico mostra que o doador e o receptor diferem em pelo menos um antígeno dos altamente polimorfos sistemas de grupos sangüíneos do homem.
"Doping" com rhEPO
Primeiramente, Wide & Bengtsson (1990) identificaram que as quatro diferentes preparações de rhEPO comerciais são heterogêneas e apresentam carga média semelhante à isomorfa da EPO originada no fígado. Estas descobertas foram sugeridas como base de um método (eletroforese) para detectar administração de rhEPO através do soro e urina de pessoas com produção endógena de EPO, pela diferenciação entre rhEPO e EPO. Wide, Bengtsson, Berglund & Ekblom (1994), apoiando-se em estudos anteriores, obtiveram amostras de sangue e urina de 11 indivíduos sadios masculinos tratados com rhEPO. A determinação da carga média indicou que a rhEPO estava presente no soro de todos os indivíduos 24 horas após a injeção e em 84% dos indivíduos 48 horas após. A rhEPO foi também detectada em 19 amostras de sangue tomadas de uma a 12 horas após a injeção em dois indivíduos. A rhEPO não foi detectada no soro sete dias ou mais após a última injeção. Os resultados com amostras de urina foram similares. Baseado nestes resultados os autores afirmam que os princípios deste método são válidos e que ele deveria ser melhor avaliado para ser usado em testes de controle de "doping" sangüíneo. Incentivados pelo COI para desenvolver um método de detecção do "doping" com rhEPO, Casoni et alii (1993) e Conconi et alii (1994), apoiados na idéia de que a estimulação da eritropoiese medular causada pela administração de rhEPO pode incrementar modificações nas características morfológicas das hemácias, chegaram à conclusão de que a administração de rhEPO causa o surgimento, em vários sujeitos, de eritrócitos com volume corpuscular médio maior que 120 fl (macrocitose) e com conteúdo de Hb menor que 28 pg (hipocromia) em porcentagem (0,6%) nunca alcançadas pelos indivíduos controle. Neste estudo, os sujeitos tratados com rhEPO diferenciaram-se da população controle tendo altos valores de Hct, volume corpuscular médio, macrocitose e hipocromia. Usando uma porcentagem limite (0,6%) de macrócitos hipocrômicos, este limite foi ultrapassado por aproximadamente 50% dos sujeitos tratados com rhEPO, mas por nenhum dos sujeito controle. Assim, a tese central de Casoni et alii (1993) e Conconi et alii (1994) é que a presença de macrócitos hipocrômicos no sangue do atleta indicaria o uso de rhEPO. Porém, Casoni et alii (1993) admitem que a presença de macrócitos hipocrômicos circulantes, em porcentagens não encontradas em atletas normais (não tratados com rhEPO), poderia ser empregada como um indicador indireto do uso de rhEPO somente após a população tratada e de controle serem grandemente expandidas e o estudo incluir atletas de outras raças, ambos os sexos, idade diferenciadas e praticantes de vários esportes. Entretanto, consideram a determinação desta porcentagem de macrócitos hipocrômicos como uma medida intimidadória ao uso da rhEPO pelos atletas, caso houvesse a possibilidade de realizar exames em períodos fora das competições, pois os atletas não teriam como controlar as respostas individuais aos estímulos da rhEPO. Na tentativa de elaboração de outro método de detecção do uso da rhEPO, Conconi et alii (1994) elaboraram um estudo sobre o receptor de transferrina, uma glicoproteína transmembrânica. Sabe-se que todas as células possuem estes receptores em sua superfície, mas em adultos normais 80% deles estão nas células eritróides da medula óssea. Após a maturação da célula, a parte extracelular deste receptor é cortado por proteolise e liberado no plasma. Neste sentido, baseando-se na idéia de que a concentração do receptor sérico de transferrina no plasma e na célula indica a taxa de eritropoiese (Cazzola, Ponchio & Beguin, 1992), pois a EPO estimula a eritropoiese, a determinação do valor de receptor de transferrina sérico poderia estar relacionada ao tratamento com rhEPO. Assim, Conconi et alii (1994) afirmam que quando os valores individuais de receptor sérico de transferrina observados em sujeitos tratados com rhEPO (3,35 ± 1,13 mg/ml) e em indivíduos não tratados (1,91 ± 0,45 mg/ml) são comparados, observa-se claramente que aproximadamente a metade dos sujeitos tratados com rhEPO apresentam uma concentração de receptor sérico de transferrina nunca alcançados por sujeitos não tratados. Para estes autores uma elevada concentração de receptores de transferrina após tratamento com rhEPO pode ser empregada como indicador indireto do uso de rhEPO por atletas. Por outro lado, Rassier (1994) não encontrou nenhuma alteração no volume corpuscular médio (macrocitose) e Hb corpuscular média (hipocromia) em atletas de resistência tratados com rhEPO, chegando a conclusão de que, apesar de haver um aumento na [Hb], o processo de macrocitose e hipocromia não aconteceram. Portanto, não recomenda tal técnica para auxiliar na detecção do uso de rhEPO por atletas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O "doping" sangüíneo se apoia na idéia de que após a flebotomia, o organismo do atleta entra no estado de eritropoiese buscando o restabelecimento do nível normal de eritrócitos. Após a infusão ou reinfusão sangüínea tem-se como conseqüência uma elevada [Hb] plasmática aumentando, assim, a capacidade de transportar O2 e consequentemente a capacidade aeróbia. Os estudos com homens relativo ao aumento do Htc, da [Hb] e à melhora da "performance" após transfusão sangüínea iniciaram na década de 40. Seguiram-se outros estudos nesta direção através dos quais os autores demonstraram aumento também no VO2max e na resistência aeróbia. Nos anos 70 surgiram as pesquisas na área do "doping" sangüíneo a partir do conhecimento de que quando um atleta é submetido a treinamentos em altitudes elevadas e exposto a uma condição de hipóxia (eritrocitemia induzida) sua capacidade aeróbia é aumentada O "doping" sangüíneo pelos métodos autólogo e heterólogo, em condições ideais, provocam aumentos significativos em alguns parâmetros hematológicos e fisiológicos do indivíduo, repercutindo diretamente na melhoria da sua capacidade aeróbia. Juntamente com o surgimento da rhEPO no mercado surgiu a suspeita de que este vem sendo utilizado por atletas de alto nível das modalidades de predomínio aeróbio, baseado também no princípio da melhora no transporte do O2 pelo sangue, seguida de uma melhora na "performance" em razão da eritrocitemia induzida. Por outro lado, vale ressaltar que, por envolver infusão intravenosa, o "doping" sangüíneo resulta em alguns riscos. No autólogo exemplifica-se a trombose venosa e flebite, além de embolia pulmonar pelo Hct elevado, a viscosidade e hipercoagulabilidade do sangue aumentados. No heterólogo uma série de riscos relativos à transmissão de doenças infecto-contagiosas, AIDS por exemplo, bem como hepatite e doenças hepáticas crônicas. Com administração de rhEPO, o efeito colateral apresentado foi aumento na PAS em exercício realizado com carga correspondente à 200 Watts e em exercício máximo depois do tratamento com rhEPO. Ainda não existe um método de detecção do "doping" sangüíneo plenamente confiável, mas existem algumas propostas de detecção, mesmo porque apenas em 1994, nos Jogos de Inverno de Lillehamer deu-se a coleta de amostras de sangue para o controle anti-"doping", quando a respectiva Federação Internacional da modalidade solicita ao COI que faça testes sangüíneos. Finalmente, nota-se claramente a necessidade de mais pesquisas a respeito do tema para que algumas controvérsias a respeito da fundamentação fisiológica do "doping" sangüíneo sejam sanadas e, principalmente na parte que se refere à detecção em exame anti-"doping", pois ainda existe uma certa incompatibilidade nos últimos resultados de pesquisas tanto para o "doping" convencional, hoje menos usada, quanto para a injeção de rhEPO.
ABSTRACT BLOOD DOPING IN SPORTS
Blood doping is the infusion or reinfusion of blood in the athlete’s body. Its physiological basis is that after bloodletting the athlete’s organism is exposed to a hypoxic condition that induces erythrocythaemia, and consequently new erythrocytes are produced. After blood infusion or reinfusion, a high concentration of plasmatic hemoglobin takes place followed by an increase in performance. This procedure may be done by using either the subject’s own stored blood (autologous reinfusion) or blood donated by another person (heterologous infusion). Moreover, erythrocythaemia may be induced by injection of recombinant human erythropoietin (rhEPO). This hormone operates on colony forming erythroid units inducing new erythrocytes formation. It is expected that the capacity to perform endurance exercise of subjects treated with rhEPO increases. Blood doping has aroused interest in the sports community because it cannot be detected in standard doping control tests. Although some methods of detection have been proposed, a reliable analytic method to detect blood doping has not been discovered yet.
UNITERMS: Doping; Blood doping; Induced erythrocythaemia
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