Resumo

O presente número 163 da Revista de História, que corresponde ao 2º semestre de 2010, reúne dois conjuntos de textos. Na parte inicial, encontramse artigos que foram enviados por nossos colaboradores. A segunda parte congrega artigos, ensaios historiográficos, resenhas e entrevistas que formam o dossiê “História e Futebol”, apresentado pelo texto “Como o Brasil entra em campo”, de autoria de seus organizadores Flávio de Campos e José Geraldo Vinci de Moraes. Cabe-me, assim, apresentar o conteúdo da primeira parte da revista.

O primeiro artigo, de autoria de Pedro Afonso Cristóvão dos Santos, intitulado As notas de rodapé de Capistrano de Abreu: as edições da Cole- ção Materiais e achegas para história e geografia do Brasil (1886-1887), traça uma história possível de ser escrita a partir da interpretação das notas de referência e anotações feitas, no caso, pelo grande historiador às edições de documentos coligidos por ele nos finais do século XIX. Ao contrário do senso comum que identifica esta espécie de subtexto como marca de um pretenso esnobismo acadêmico, Pedro Afonso demonstra cabalmente a riqueza de possibilidades contida nesta parte da narrativa do historiador e essencial para aquele que, como afirma o autor ao parafrasear Anthony Grafton, em sua obra de 1998, “apresenta tanto os resultados finais, como explica os caminhos necessários para se chegar a eles”. Assim, nas referências e nos comentários dos volumes estudados revela-se não só a erudição de Capistrano de Abreu e seus esforços em divulgar fontes, tornando-as acessíveis, como indícios de seu projeto historiográfico mais amplo; em particular a intenção de indicar lacunas e premências temáticas, de corrigir erros e apontar eventuais anacronismos e, sobretudo, contando com sua própria experiência, incutir nos seus leitores o rigor necessário aos estudos históricos brasileiros que apenas engatinhavam.

O artigo seguinte, de Denise Moura, “Disputas por chãos de terra: expansão mercantil e seu impacto sobre a estrutura fundiária da cidade de São Paulo (1765-1848)”, coloca em cena os conflitos ocorridos entre a Câmara Municipal de São Paulo, as instituições religiosas e os particulares em torno da posse de terras e, nesta matéria, os descompassos na esfera jurídica verificados entre o direito colonial e o direito pleno de propriedade instituído a partir da Constituição de 1824. Apostando nos caminhos indicados pelos textos de Jacques Revel e de Giovanni Levi como suporte instigante para a análise social e no recurso a uma documentação seriada como autos cíveis e maços de população, acompanha o processo de transformações dos finais do século XVIII e os primórdios do século seguinte que atingiam em cheio os antigos bens comunais e as áreas de servidão pública da cidade. Sugerida na leitura de um documento, a imagem da colocação de um cadeado num portão que dava acesso a uma aguada “de antiquíssima posse” é evidência mais do que concreta disso.

Já no artigo “Os espaços da ambiguidade: os poderes locais e a justiça na América do século XVII”, Rafael Ruiz propõe uma investigação sobre a prática jurídica no período colonial, na América, particularmente durante o período da União Ibérica. A partir de um conjunto de fontes pouco estudadas entre nós – os textos dos chamados praxistas, como também de teólogos e moralistas – Ruiz, ao contrário de uma perspectiva que se fixa no centralismo, reflete sobre as dimensões determinantes dos interesses locais, justificadas nas doutrinas e opiniões dos autores que estuda e expressas nos diferentes costumes locais. Na perspectiva indicada por Richard Morse sobre a vigência de uma corrente “probabilista” no mundo luso-americano, problematiza o confronto entre o poder totalizante ou universalizante da lei e as circunstâncias particulares e concretas dos fatos e dos casos. Além disso, alcança em sua análise uma perspicaz cronologia própria ao tema: ao probabilismo dominante nos séculos XVI e XVII, teria sucedido, em meados do século XVIII, o direito positivo tal como nós o conhecemos hoje.

Por fim com o texto “Uma percepção do dualismo qumrânico através dos Pesharim”, Clarisse Ferreira da Silva debruça-se sobre os chamados Manuscritos do Mar Morto (ou de Qumran), conjunto de documentos produzidos por uma comunidade judaica que, entre os finais do século II a.C. e o primeiro século da era cristã, estabeleceu-se no deserto da Judeia. Uma sociedade cujo isolamento e organização singular baseavam-se numa doutrina dualista, assentada na concepção de um mundo caracterizado pela luta entre forças opostas e dividido entre a luz e as trevas, o bem e o mal, os justos e os ímpios. Posicionando opiniões de diversos especialistas na área e tendo como base as interpretações e os comentários dos textos proféticos, conhecidos como pesharim, a historiadora, para além de apontar as especificidades da comunidade Qumram e de sua leitura particular das Sagradas Escrituras hebraicas, busca avaliar as fontes de inspiração da doutrina, algumas delas em voga no mundo helenístico da época, bem como seu posicionamento frente às demais correntes judaicas e outros conjuntos de textos.

Em suma, são quatro artigos que versam sobre temas situados em diferentes tempos e espaços da história, mas que, em seu conjunto, apontam para sensíveis reflexões teórico-metodológicas próprias ao historiador quando se defronta com objetos distintos e é levado a dialogar com diferentes tipos de fontes. Com este conjunto no mínimo instigante, espero que também nesta parte, e tomando por empréstimo as palavras dos organizadores do dossiê, os leitores descubram a “inebriante sedução da história”, sensação que por certo irá permanecer na leitura que se segue.

Maria Cristina Cortez Wissenbach

Editora

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